sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

POESIA ERÓTICA DE FLORBELA ESPANCA

Hoje analisaremos dois sonetos de Florbela Espanca (1894-1930). Ei-los:.

a)     SE TU VIESSES VER-ME...

Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,
A essa hora dos mágicos cansaços,
Quando a noite de manso se avizinha,
E me prendesse toda nos teus braços...

Quando me lembra: esse sabor que tinha
A tua boca...  o eco dos teus passos...
O teu riso de fonte... os teus abraços...
Os teus beijos... a tua mão na minha...

Se tu viesses quando, linda e louca,
Traça as linhas dulcíssimas dum beijo
E é de seda vermelha e canta e ri 

E é como um cravo ao sol a minha boca...
Quando os olhos se me cerram de desejo...
E os meus braços se estendem para ti...

b)     AMAR

Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: Aqui... Além...
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente...
Amar! Amar! E não amar ninguém!

Recordar? Esquecer? Indiferente!...
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!

Há uma Primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!

E se um dia hei de ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder... pra me encontrar...



Nos dois poemas de Florbela Espanca ora sub oculis, o eu-lírico feminino, em manifestação desassombrada de liberdade, sobretudo no trato amoroso e no âmbito da sexualidade, exprime, além dos seus desejos e arroubos eróticos, sua filosofia do amor.

No soneto Se tu viesses ver-me, já no primeiro quarteto vemos um eu-lírico feminino ativo e livre, que manifesta a sua atividade ao declamar o verso “E me prendesse toda nos teus braços...”. Não se trata, pois, de uma mulher passiva que seria presa pelos braços do homem, mas de uma impetuosa que toma a iniciativa de enroscar-se neles.
Aludindo “à tardinha”, ao momento dos “mágicos cansaços”, à noite que vai mansamente engolindo o dia e espalhando suas sombras nostálgicas de remotas volúpias e mistérios, o eu-lírico instaura no poema e no espírito do leitor uma atmosfera de desejo amoroso, que se vai adensando nas estrofes subseqüentes, até culminar no abandono erótico.
No segundo quarteto, esse desejo se alimenta da saudosa recordação de antigos conúbios, antigos beijos saborosos, risos límpidos e inesgotáveis, mãos cariciosas, lábios nos quais residia o prazer, agora sonhado e desejado decerto muito mais do que simplesmente lembrado.
Do primeiro para o segundo terceto há uma deslumbrante imagem erótica – sutilizada pela ampliação da distância entre o verbo (“traça”) e o sujeito da ação (“a minha boca”) – pela qual nos deparamos com uma boca convidativamente escarlate, singularmente cantante e risonha, oferecendo-se no traçado de um beijo melífluo, dulcíssimo, num simultâneo de ósculo amoroso e beijo erótico... Para além de ser prelúdio de enlevos inefáveis, essa boca “linda e louca”, para um leitor notável por sua audácia, pode ser também tomada como uma discreta alusão àquela outra embocadura corporal, aquele quase sempre oculto conjunto de lábios igualmente encarnados e doces que guardam a entrada para o sumo deleite, o portal para os últimos êxtases de Afrodite...
Com efeito, o erotismo chega aos píncaros na qualificação da boca, não por acaso dita “linda e louca”, pois essa aliteração em “L”, forçando a língua a empreender um célere e reiterado movimento de subida e descida, é de imediato associada às mobilizações típicas dos frenesis sexuais, do calor das paixões, da língua assim movimentada em beijos fogosos e precipitados... E quando, em total languidez, os seus olhos se fecham e desabrocham-se-lhes os braços, completa-se a imagem de um caprichoso corpo feminino que, de modo irresistível e franco, abandona-se de todo à delectacio venerea, às infinitas volúpias de Vênus.
No entanto, estando já ultimada em nossa mente a pintura deste provocante painel sensualíssimo, assalta-nos uma melancólica sensação de estúpido desperdício, uma vez que esta fêmea voluptuosa, assim ao delírio carnal entregue de forma tão pronta, permanece sozinha, fantasiando a chegada do parceiro, insatisfeita entrementes...
Já o soneto Amar, à diferença do primeiro, deixa de lado o lirismo suavemente erotizado, a fim de engajar-se numa dissertação sobre a ampla liberdade para amar em todos os lugares (“Aqui... além”), a todos os homens ou pessoas (“Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente...”), culminando na liberdade para, inclusive, “não amar ninguém”. Aqui o eu-lírico, novamente feminino, compreende um tanto perplexamente que a liberdade para amar à vontade e à saciedade cai no indiferentismo, na desimportância de prender ou desprender, recordar ou esquecer, compreendendo que quem ama a todos, no fundo, não ama de fato ninguém – a multiplicidade neutraliza, suprime, inviabiliza o sentimento romântico... Não obstante, volta-se contra o amor exclusivo, monógamo, exclamando ser mentiroso quem diz poder amar a mesma pessoa toda a vida, numa visceral negação (ruptura com a tradição) do mais consagrado pressuposto da escola Romântica.
Naturalmente, embora fale por si, procura generalizar o seu ponto de vista ou a sua situação particular no mundo, buscando persuadir o leitor da “verdade” que lhe quer infundir. Os versos “Quem disser que se pode amar alguém/Durante a vida inteira é porque mente!” são centrais, e os que se lhes seguem não são senão ilustrações do seu raciocínio, da sua filosofia existencial.
De resto, declarando que há “uma primavera em cada vida”, a qual deve ser cantada enquanto florida, há uma firme retomada do carpe diem neoclássico, do aproveitar o dia enquanto é estação propícia, enquanto há juventude e vigor, beleza e amores de toda sorte, pois dentro em breve tudo há de “ser pó, cinza e nada”, tudo passa, tudo acaba, mesmo a melhor das estações.
O poema encerra-se com mais uma ruptura perpetrada em desfavor dos valores que vigoravam na sociedade em que vivera a poetisa, pois se quem ama a todos se “perde”, é na mesma perda que o eu-lírico diz encontrar-se, porquanto julga ser no “perder-se” que se acha a “verdadeira” liberdade de amar a quantos queira, encontrando-se a si própria – segundo alega – no exercício mesmo dessa irrestrita liberação para o amor! É nessa exata medida que o poema – cujo ideário é perfeitamente controverso, não deixemos de registrar – converte-se num libero contra a moralidade dirigente à sua época, quando ninguém, designadamente as mulheres, podia, sem estigmatizar-se, ao amor carnal entregar-se assim tão livremente.
Isto posto, os dois sonetos de Florbela Espanca analisados revelam as distintas vertentes da ruptura levada a efeito por esta grande poetisa portuguesa. No primeiro poema, ela ousou explorar um lirismo erotizado, ainda que suavemente, e também uma busca ativa pela satisfação dos seus desejos, quebrando a passividade amorosa à qual estava relegada a mulher do seu tempo, bem assim a repressão das suas volições atinentes à sexualidade. No segundo soneto, de modo mais desabrido e sem preocupação lírica, sustenta a doutrina do “poliamor”, da verdade amorosa enquanto multiplicidade de parceiros e total aproveitamento amoroso da primavera da existência, bela estação que logo se extingue, rompendo, destarte, com o ideário romântico do amor único, cultivado por toda a vida.