segunda-feira, 16 de abril de 2012

BREVE COMENTÁRIO A PROPÓSITO DO ROMANCE HISTÓRICO, COM FOCO NA "HISTÓRIA DO CERCO DE LISBOA", DE JOSÉ SARAMAGO





Anderson Cássio de Oliveira Lopes





O chamado romance histórico é aquele que, como a designação mesma já induz a perceber, traz para a prosa literária um fato histórico ou, o que é mais comum, o tem como pano de fundo de um enredo ficcional.
Tradicionalmente, os romancistas eram bastante escrupulosos ao arquitetar romances desse gênero, adotando sempre a postura de rigor em face da verdade histórica estabelecida. Assim são, por exemplo, as obras de Alexandre Herculano. Em Eurico, o Presbítero, a ação transcorre num momento histórico sinistro para a cristandade ibérica, quando os islamitas de África invadem grande parte da península e aí instalam um domínio que perdurará por até sete séculos, a depender da cidade considerada; aqui a ficção – centrada, sobretudo, no amor infeliz e algo trágico das personagens Eurico e Hermengarda – prima por não desmentir fatos ou caracteres gerais do arcabouço histórico em que inserida. Análogo procedimento preside à trama do romance O Bobo, com a única diferença residindo na circunstância de que, neste, o pano de fundo histórico é a pugna familiar que culmina na criação do reino de Portugal, a partir do Condado Portucalense, com o cetro à mão de D. Afonso Henriques. Iguais dizeres cabem ao romance O monge de Cister, cujo lastro histórico são os anos subsequentes à Revolução de Avis, que coroa D. João I de Portugal, mestre de Avis, contra as pretensões legitimistas espanholas. Neste cenário, não é difícil vislumbrar que Herculano esforça-se por não contrariar a tradição histórica acerca dos fatos sobre os quais constrói a sua ficção.
Modernamente, todavia, a literatura em derredor de fatos e circunstâncias históricas transformou-se, haja vista que os autores já não revelam a primitiva ânsia de respeitar mui escrupulosamente a verdade histórica, adaptando-a, criticando-a ou mesmo subvertendo-a, ao sabor de sua imaginação. É o caso de José Saramago, o qual, embora ainda empregue a História como lastro para o enredo de alguns de seus romances, fantasia acerca dos mesmos fatos, contesta-os, critica-os, reescreve-os, de tal modo que esse lastro passa a ser um fio por vezes assaz tênue, pelo qual não sem dificuldade se distingue ficção literária de História. Ilustremo-lo com a obra História do Cerco de Lisboa, desse autor.
Neste romance, a ação flui com simultaneidade no presente (final do século XX) e no pretérito. A ação presente é marcada pela narrativa a propósito do corretor de livros Raimundo Silva e, enquanto seus passos são acompanhados pelo narrador, a partir do momento em que Raimundo faz a revisão de um livro sobre o famoso cerco de Lisboa, há uma predominância do tempo cronológico. No que concerne, porém, à narração remetente ao passado histórico (na qual o tempo literário é basicamente psicológico, transcorrendo em idas e vindas intermitentes, ao sabor dos pensamentos, lembranças e apontamentos de Raimundo Silva), focam-se os dias relativos ao sítio e tomada da cidade Lisboa aos muçulmanos pelos portugueses, então liderados por Afonso Henriques, dito D. Afonso I de Portugal. Esse tempo psicológico é complexo justamente porque não flui com a regularidade de um relógio ou calendário, mas sem linearidade e aos saltos. Este procedimento, contudo, nem sempre significa andamento rápido, pois esses saltos não raro têm como destino o mesmo ponto de partida, retomado inúmeras vezes, como ocorrido na altura em que a personagem Mogueime falará pela primeira vez à personagem Ouroana, iniciado aproximadamente à página 226 e retomado quase nos mesmos termos à página 328, dando ao leitor aquele esquisito estranhamento característico do déjà vu, embora sem as mesmas razões, porquanto no romance o diálogo era realmente “já visto”, o que não ocorre no déjà vu, pois neste fenômeno, apensar da forte sensação de já ter visto e vivido aquilo, temos a certeza de que tal fato nunca acontecera.
Saramago, estabelecendo no romance uma contraposição entre tempo cronológico e tempo psicológico, reforça a oposição essencial entre presente e pretérito. Por outros termos, um dos pontos altos da criação literário de Saramago, na trama ora sob exame, manifesta-se na requintada proporção temporal, em que, por um lado, o tempo cronológico está para a ação presente à mesma medida que, por outro lado, o tempo psicológico está para o passado. E nem poderia ser doutra forma, uma vez que o passado subsiste apenas como concepção mental do ser humano. Toda a nossa relação com o pretérito é intelectual e, portanto, psicológica, de modo que o passado é função de recordações desde o presente. Só o que há, em verdade, é o presente, o agora, este instante que passa continuamente e no qual tudo se realiza.
Impende registrar que não se explicita a época exata em que transcorre a ação presente do romance, mas deduz-se, pela menção a tecnologias da era da computação, que se trata do quartel final do século XX, o que pode ser comprovado pela seguinte passagem:

...estão faltando no seu tombo as tecnologias da informática, mas o dinheiro, desgraçadamente, não chega a tudo, e este ofício, é altura de dizê-lo, inclui-se entre os mais mal pagos do orbe. Um dia, mas Alá é maior, qualquer corrector de livros terá ao seu dispor um terminal de computador... (p. 26).

O narrador do romance é de terceira pessoa e, por conhecer os passos e os pensamentos das personagens, pode ser caracterizado como onisciente, posto denegue essa onisciência em passagens estilizadas e reflexivas, como a seguinte:

...com os lençóis plenamente expostos e já frios, sem vestígios da inquieta insónia, menos ainda dos sonhos que o exausto sono acabou por trazer, fragmentos só, imagens insensatas aonde a luz não chega, indevassáveis até para os narradores, que as pessoas mal informadas acreditam terem todos os direitos e disporem de todas as chaves, se assim fosse acabava-se uma das boas coisas que o mundo ainda tem, a privacidade, o mistério das personagens. (pp. 121–122).

O excerto trazido à colação, por si só, não infirma a onisciência do narrador, apenas revela uma das muitas estratégias de que se vale este para seduzir e prender o leitor no laço narrativo.
Noutra perspectiva, este narrador onisciente que reconhece não saber de tudo pode ser visto como mais uma das costumadas irreverências à divindade típicas da obra de Saramago, pois de Deus diz-se que é onisciente, tal como do narrador que relata até mesmo o que vai pela cabeça das personagens, porém, tal como este, também Ele não saberia de tudo, se assim fosse acabava-se uma das boas coisas que o mundo ainda tem, a privacidade, o mistério das pessoas de carne e osso.
O espaço, de modo análogo ao ocorrido com o tempo, é complexo: geográfico no tocante à ação presente, concentrado na moderna cidade de Lisboa, mais precisamente na modesta residência da personagem Raimundo Silva, na editora em que trabalha e nas ruas que ligam um endereço a outro. Todavia, quando a narrativa volta-se à época da sua tomada pelos portugueses, o espaço é psicológico e existe segundo a projeção das imagens mentais do protagonista, vislumbradas e dadas a conhecer pelo narrador ou pelo mesmo Raimundo a partir do momento em que resolve contar uma nova história do cerco de Lisboa.
O protagonista do romance é o citado Raimundo Benvindo Silva, revisor, e é descrito parcimoniosamente como sendo um solteirão entrado nos cinquenta anos, cujas experiências pregressas são de todo ignoradas, porventura desimportantes ou quiçá insossas. “Não tem irmãos, os pais morreram-lhe nem cedo nem tarde, a família, se resta alguma, anda dispersa...” (p. 35).
A ação romanesca inicia-se com um diálogo entre Raimundo e um autor que acaba de lhe entregar para revisão uma obra de cunho historiográfico a respeito do cerco de Lisboa. Ao executar o seu trabalho de revisor, porém, Raimundo cometerá algo impensável a quem tem por obrigação corrigir os erros dos autores, que é perpetrar, com deliberação, conquanto inexplicavelmente (pois nenhum ganho lhe adviria disso, antes pelo contrário), um erro contra a verdade histórica incontroversa relativa ao sítio armado contra Lisboa pelas hostes de Afonso Henriques; erro esse que consiste em dizer que os cruzados não secundarão os portugueses na tomada de sua futura capital aos mouros.

...é evidente que acabou [Raimundo Silva] de tomar uma decisão, e que má ela foi, com a mão firme segura a esferográfica e acrescenta uma palavra à página, uma palavra que o historiador não escreveu, que em nome da verdade histórica não poderia ter escrito nunca, a palavra Não, agora o que o livro passou a dizer é que os cruzados Não auxiliarão os portugueses a conquistar Lisboa, assim está escrito e portanto passou a ser verdade, ainda que diferente, o que chamamos falso prevaleceu sobre o que chamamos verdadeiro, tomou o seu lugar, alguém teria de vir contar a história nova, e como. (p. 50).

A consciência de haver descumprido o seu dever de ofício, aliada à certeza da previsível punição profissional, põe-no tenso, temeroso, de ordem a não conciliar regularmente o sono, como pode ser aferido na passagem já acima citada, extraída das páginas 121 e 122, em que o narrador, ao fornecer tais informações, nega entretanto a sua onisciência.
Esta adulteração deliberada do livro alheio, que deveria antes corrigir, mudará por completo a vida de Raimundo, embora não pelas razões esperadas. É que, chamado a explicar-se perante os superiores hierárquicos, posto que sofra alguma humilhação, Raimundo é perdoado, não se lhe sendo imposta punição disciplinar pela infração profissional praticada em prejuízo dos negócios e da boa fama da editora. No entanto, a presença na reunião de uma mulher desconhecida chama a atenção de Raimundo e, malgrado seu, perturba-lhe o espírito e o coração. Trata-se de Maria Sara, contratada para exercer o recém-criado cargo de chefe dos revisores, a quem, a partir de então, Raimundo e demais colegas de igual função estariam subordinados e deveriam submeter suas revisões. A ela competiria zelar para que não se repetissem equívocos da natureza daquele cometido por Raimundo, intencionais ou não. E é ela igualmente quem, na primeira oportunidade em que conversa em reservado com Raimundo, incita-lhe a escrever uma nova história do cerco de Lisboa, na qual efetivamente os cruzados recusassem auxílio aos portugueses.

...foi tudo isso, repito, que se condensou na sugestão que decidi fazer-lhe, E que é, A de escrever uma história do cerco de Lisboa em que os cruzados, precisamente, não tenham ajudado os portugueses, tomando portanto à letra o seu desvio, para empregar a palavra que lhe ouvi há pouco... (pp. 109–110).

Raimundo, assim incitado, põe mãos à obra e começa a escrever a nova história do cerco de Lisboa, despreocupado já da verdade estabelecida, não só quanto à participação dos cruzados como também quanto aos discursos do rei e outros pormenores, adaptados tanto na forma quanto no conteúdo. Para incrementar a ficção, nela inscreve Raimundo as personagens Mogueime e Ouroana, par romântico da nova versão da história, com inspiração em si mesmo e em Maria Sara.

Mogueime aproximou-se da mulher [Ouroana], a alguns passos, sentou-se numa pedra, a olhar. Ela não se voltou, tinha-o visto de relance quando ele vinha, reconhecia-o pela figura e pelo jeito de andar, a condizer, mas ainda não sabia como ele se chamava, apenas que era português, numa ocasião ouvira-o falar galego. O mover cadenciado das ancas da mulher perturbava Mogueime. Aliás, trazia-a de olho desde que o cavaleiro morrera, e mesmo muito antes, mas um soldado raso, de mais a mais medieval, não se atreveria a andar de pé-de-alferes com a mulher do próximo, ainda que barregã. (p. 226).

Esta cena fica como que suspensa, a narrativa prossegue em dias anteriores à morte do mencionado cavaleiro, fidalgo alemão que roubara, de passagem pela Galiza, Ouroana à família. A cena será retomada próximo ao final do romance, quando, num diálogo simples e lacônico, ambos ajustam vida comum.
A partir da altura na qual Raimundo acede à sugestão de Maria Sara e começa a nova história, a ação romanesca assume dois planos mais positivos, uma vez que de início a narrativa concentra-se no presente, com esparsas alusões ao citado Cerco: um que persiste a tratar de Raimundo e seu interesse crescente pela nova diretora; e outro situado na Lisboa moura prestes a fazer-se cristã pela guerra.
No entanto, ainda prevalece o primeiro plano e Raimundo, tímido e um tanto acovardado, mostra-se incapaz de tomar iniciativas no que concerne a Maria Sara, a qual, mais resoluta e desenvolta, resolve telefonar-lhe. Não o encontrando em casa, deixa-lhe recado. Conversam no dia seguinte por telefone e ela, como sempre, releva-se mais decidida e incisiva, abrindo-se em primeiro lugar:

...Nada conheço de sua vida particular, se é, Casada, Sim, ou, De qualquer maneira comprometida, como antigamente se dizia, Sim, Imaginemos que sou realmente casada, ou que tenho um compromisso, impedi-lo-ia isso de gostar de mim, Não, E se eu fosse realmente casada, ou tivesse outro compromisso, impedir-me-ia isso de gostar de si, se tal tivesse de acontecer, Não sei, Então tome nota de que gosto de si, pausa longa, Isso é verdade, É verdade, Ouça, Maria Sara, Diga, Raimundo, mas antes fique a saber que sou divorciada há três anos, que acabei há três meses com uma ligação, que não comecei outra, que não tenho filhos, que quero tê-los, que vivo em casa de um irmão, que a pessoa que o atendeu é minha cunhada...(p.238).

Neste ponto cumpre ressaltar o tipo de personagem masculina que amiúde protagoniza os romances de Saramago. Raimundo é inibido, solteirão, no limiar do terço final da existência, inseguro e inexperiente em matéria de mulheres (exceto um ou outro intercurso pago) e sem nenhumas perspectivas amorosas. Seu passado é uma grande inanidade que faz o leitor conceber uma prolongada insipidez rotineira. Com exceção do princípio de velhice, é a mesma situação de Mogueime. Em Todos os Nomes, As Intermitências da Morte, Memorial do Convento e em outras obras de Saramago o protagonista possui perfil muito semelhante ao deste Raimundo Silva. Invertendo o procedimento dos romancistas do Romantismo, que idealizavam as heroínas, o homem saramagueano é que é idealizado no sentido da pureza, da castidade e da límpida capacidade para o amor, depurada por uma elástica privação sexual. Suas heroínas, ao contrário, são arrojadas como esta Maria Sara, experimentadas em relacionamentos, com ou sem maiores compromissos, antes de entrarem em cena, mas têm o coração perfeitamente lavado, perfumado e disponível quando encontram o protagonista do romance, presumível homem do resto de suas vidas.
O narrador esmera-se na descrição poética das primeiras carícias e passos amorosos de Raimundo e Maria Sara. Vale destacar um excerto do relato dessas primícias:

...parecia que o mundo exterior se pusera à espera de um milagre novo, porém ninguém deu por ele quando aconteceu, aqui, quando os sexos destes dois se sentiram pela primeira vez, quando pela primeira vez gemeram juntos, quando surdamente gritaram, quando todas as comportas do dilúvio se abriram sobre a terra e as águas da terra, e depois a calma, o largo estuário do Tejo, dois corpos lado a lado vogando, de mãos dadas, um diz, Oh, meu amor, o outro, Que nada no futuro seja menos do que isto, e de repente ambos tiveram medo do que disseram e abraçaram-se, o quarto estava escuro, Acende a luz, disse ela, quero saber se isto é verdade. (p. 295).

São páginas de poesia amorosa em prosa. Há romantismo e sentimentalismo nesse enlace, embora modernizado e com liberdade sexual. Consumado o amor de Maria Sara e Raimundo, este agora se dedica com seriedade e persistência à finalização da nova história do cerco de Lisboa, reportando as estratégias militares, o sofrimento da população moura sitiada e na iminência de ser dizimada, a proeminência adquirida por Mogueime na rebelião dos soldados portugueses em busca de justiça e igualdade de condições com os estrangeiros na divisão do espólio da cidade a ser conquistada, em suma, o romance encerra-se quando Raimundo, já numa íntima familiaridade com Maria Sara, dá por acabada a sua obra de reinvenção histórica.


REFERÊNCIA

SARAMAGO, José. História do Cerco de Lisboa. São Paulo: Companhia das Letras. 1989.