terça-feira, 20 de novembro de 2018

OBSESSÕES MACHADIANAS: COMBORÇARIA OU RIVALIDADE FRATERNAL MASCULINA E INFECUNDIDADE MASCULINA


Por: Anderson Cássio de Oliveira Lopes

Monografia apresentada ao Departamento de Ciências Humanas da Universidade do Estado da Bahia – Campus IX, como pré-requisito parcial para a obtenção do título de Licenciado em Letras, em dezembro de 2013.

RESUMO

Neste trabalho, apresentamos um estudo sobre o narrador e a focalização dos romances Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba, Dom Casmurro, Esaú e Jacó e Memorial de Aires, de Machado de Assis, e, paralelamente, sobre a recorrência temática da comborçaria ou rivalidade fraternal masculina e da infecundidade masculina inscritas nesses romances. Conjugando essas duas linhas de investigação, propusemos uma clave interpretativa dessas obras e, subordinando-se a isso, procuramos demonstrar por que não haveria dúvida razoável quanto à existência de ligação clandestina entre Capitu e Escobar. Discutimos, ainda, o lugar da crítica literária ideológica, fazendo sobressair o fato de que todo sistema ideológico, por intrínseca impossibilidade de aceitá-la sem comprometimento da própria condição de existência, nega e esconde a verdade. Discorremos também sobre as fronteiras que limitam a livre interpretação do leitor, com supedâneo em teóricos como Harold Bloom e Umberto Eco, cujos conceitos são empregados no desnudamento dos enganos pespegados por Helen Caldwell e John Gledson.


INTRODUÇÃO


Em solo brasileiro, é difícil dizer quando foi inaugurada a produção da arte literária, mas poderíamos ser tentados a identificar tal momento com uma intersecção entre literatura e história, ou seja, cá a literatura poderia ter nascido já com a “Carta” de Pero Vaz de Caminha sobre o achamento destas terras, isso em função do reconhecimento de certo pitoresco presente nas descrições operadas na célebre missiva ao rei de Portugal, porém a utilidade imediata e prática que presidira à sua confecção, somada à controvérsia sobre a literariedade do gênero textual epistolar, não nos autoriza a tanto.
De qualquer sorte, no decurso de seus primeiros cinco séculos (embora, em rigor, a chegada do Pedro Álvares Cabral marque apenas o início do processo de construção multissecular que culminaria, no ano de 1822, na constituição propriamente dita de um país soberano chamado “Brasil”), diversas personalidades realçaram-se como produtoras de obras literárias nestas plagas, dentre as quais sobressai a figura de Machado de Assis. Ele é considerado, por grande parte da crítica especializada, o maior ícone da literatura nacional, tendo legado uma obra de inegável relevância, seja pela extensão, seja pela qualidade do seu pensamento, seja, enfim, pela beleza intrínseca de sua escrita concomitantemente irônica, profunda e elegante, embora a qualidade de sua produção, naturalmente, não seja homogênea.
A obra de Machado de Assis, pela proeminência alcançada em nossas letras, vem sendo objeto de intensa investigação há mais de uma centúria (e nem de longe pretenderíamos levantar aqui uma globalizante fortuna crítica da sua produção intelectual, ou esgotar algum aspecto passível de análise literária), recebendo no curso do tempo os mais variados enfoques, ao sabor das modas acadêmicas e novidades analíticas. Notáveis expoentes da crítica literária, debruçando-se sobre a lavoura ficcional machadiana, fizeram ressaltar algumas das principais características de sua prosa, como o pessimismo, a correlação de tramas, a iteração temática em várias obras, a continuação de certas personagens, a preferência pela análise psicológica, a ironia fina, o humor sutil, o desalento em face da trajetória humana, a paciência no dissecar e desnudar as facetas doentias do indivíduo em seu embate com a sociedade e com si mesmo.
Machado de Assis, para além da carreira pública no funcionalismo estatal, donde lhe viera a estabilidade financeira e a ascensão econômica, foi jornalista e dedicou-se à poesia, ao teatro, à crítica, à crônica, ao conto e ao romance, tendo excelido nestas duas últimas fôrmas literárias, o que é corroborado por Moisés (2001, p. 86): “Conquanto pusesse a marca de gênio em tudo quanto produziu, foi no romance e no conto que Machado alcançou o máximo de virtuosismo”. Considerando que é ao romance, pelas exigências inerentes a este gênero textual, que qualquer autor dedica maior fôlego, discorrendo concomitantemente e com mais vagar acerca dos inúmeros motivos que lhe interessam; considerando também que o conto, por sua extensão relativamente modesta, trata geralmente de um único assunto ou episódio crucial, dando margem, portanto, a uma muito maior variação temática de obra para obra – tem-se que o romance é o locus mais propício à investigação de recorrências obsessivas em autor de produção tão vasta e variada quanto às fôrmas literárias, como o é Machado de Assis.
Diante do exposto e em face de sua reputação de maior escritor brasileiro, com o prestígio e a relevância que advém de tal posição, entendemos que obra da maturidade de Machado de Assis merecia ser analisada à luz das ferramentas teóricas da crítica literária atual, o que motivou o presente trabalho. No entanto, sendo tão vasta e abordando, como de fato aborda, amplo número de temas e questões, do momentâneo ao eterno, do local ao universal, é estimável que um inquérito a tal obra concentre-se nos pontos mais significativos ou controvertidos, que de ordinário são os de interesse mais abrangente, alcançando tanto a crítica especializada, quanto o público leitor comum.
Assim, com vistas a alcançar uma clave de leitura para os romances da maturidade do fundador da Academia Brasileira de Letras e, porventura, colher algum contributo passível de conciliar a polêmica que cerca certas personagens desses romances, é que nos ocorrera indagar – em paralelo ao estudo do narrador e da focalização adotados nos romances – qual seria o índice de recorrência das manifestações da comborçaria ou rivalidade fraternal masculina e da infecundidade masculina nas referidas obras e como isso poderia transfigurar-se em uma interpretação consistente desse conjunto de romances, verificando-se, outrossim, a possibilidade de lançar-se alguma achega pessoal sobre a controvérsia em derredor da tessitura literária do Dom Casmurro.
A busca por tal índice partiu do pressuposto de que haveria, na coleção mais significativa dos romances machadianos, chamada de “fase realista” ou, mais propriamente, “obras da maturidade”, dois temas assaz específicos que, pela repetição, poderiam ser etiquetados como “obsessivos” e, com lastro nessas obsessões, seria possível propor uma senha de leitura sistemática de todas essas obras e, de acréscimo, concluir acerca do comportamento de Capitu para com Bentinho e Escobar.
Não será despiciendo desde logo explanar que, neste nosso estudo, “obsessão” não se confunde com a síndrome que domina o espírito do sujeito, objeto das ciências psicológicas ou psiquiátricas, mas é tão somente uma referência à reprodução sucessiva, nas obras literárias, de uma estrutura relacional ou situacional mais ou menos fixa que, assim, funciona como esqueleto constante do corpo de todos os romances, a que se agrega, à guisa de preenchimento, uma variada musculatura e nuanças epidérmicas.
De igual forma, é mister, ainda preliminarmente, distinguir com precisão os temas “comborçaria ou rivalidade fraternal masculina” e “infecundidade masculina”, sem descurar das possíveis variantes.
A expressão “comborçaria ou rivalidade masculina”, no triângulo amoroso objeto da nossa linha de pesquisa, possui um sentido amplo, abrangendo não apenas os sucessos em que de fato houvera a contemporânea posse carnal da mulher pelos dois rivais (a comborçaria masculina típica), mas também aqueles casos em que, a despeito da disputa e do estabelecimento da rivalidade em função de dada mulher, apenas um dos dois homens ou mesmo nenhum deles obtivera o pretendido conúbio amoroso, frustrado por qualquer razão contingente (é uma rivalidade que tende a tornar comborços esses dois homens, daí que lhe chamamos “comborçaria ou rivalidade masculina”). Vale registrar que essa comborçaria ou rivalidade masculina não necessariamente terá de envolver as figuras do marido, da mulher e do amante, nem os dois rivais terão obrigatoriamente consciência de que estão em uma disputa ou em uma “partilha” da mulher.
Cumpre igualmente aclarar o sentido do termo “fraternal”, que aqui também é tomado com uma significação mais vasta, circunscrevendo, para além do liame de irmãos, a relação entre sujeitos ligados por estreitos vínculos de amizade e consideração interpessoal, conquanto a hipocrisia e o interesse menos nobre, por parte de um ou dos dois pólos da “fraternidade”, não estejam excluídos. Aliás, o caráter fraternal da comborçaria ou rivalidade masculina em Machado de Assis estarrece (ou deveria estarrecer) mais que o puro e simples adultério. Ora, se a infidelidade da mulher para com o marido é mais ou menos bem referida na literatura dos séculos, tal não se dá no que concerne à traição entre os melhores amigos ou mesmo entre irmãos (como a do tio para com o pai de Hamlet), de maneira que é mais fácil encontrarmos nos clássicos literários exemplos de sacrifício pessoal em benefício do amigo do próximo (Orestes e Pílades; ou ainda o “fidus Achates” da Eneida) de que episódios que ilustrem aleivosia entre eles, de que um raro exemplo acha-se em uma das novelas do Decamerão, de Giovanni Boccaccio[1].
Enfim, para os efeitos desta investigação, é irrelevante que a fraternidade seja “verdadeira” ou “sincera”, sendo bastante a sua simples aceitação pelas personagens ou pela sociedade que as cerca, de modo que, na “comborçaria ou rivalidade fraternal masculina”, haverá sempre uma grande proximidade, por parentesco ou amizade íntima, entre os dois homens que disputem ou compartilhem o amor ou a posse carnal de dada mulher.
O termo “infecundidade” também merece uma delimitação clara. Aqui não pretendemos postular um anacrônico exame de espermograma para aferir se as personagens masculinas são ou não biologicamente estéreis, embora, com espeque nos elementos e indícios presentes em cada trama considerada, sejamos forçados a avaliar, em um ou em outro caso, qual seria a probabilidade de haver tal esterilidade. Por outro lado, conquanto evidente em algumas tramas, a infecundidade feminina não é objeto da nossa investigação. Desta sorte, no nosso trabalho a “infecundidade” vincula-se designadamente à circunstância de o homem (sobretudo o protagonista), ao encerramento do romance, não possuir filhos ou descendentes.
A nossa investigação foi exclusivamente bibliográfica. Segundo Marina Marconi e Eva Lakatos (2009), a pesquisa bibliográfica ou de fontes secundárias é a que busca o levantamento da bibliografia já publicada, em forma de livros, revistas, publicações avulsas e imprensa escrita, diferençando-se, assim, da pesquisa documental ou de fontes primárias, cujos dados são obtidos de duas maneiras: através da pesquisa de campo ou da pesquisa de laboratório.
A colheita de material para a pesquisa realizou-se a partir da leitura de textos machadianos, dos quais extraímos os assuntos e motivos mais cíclicos e recorrentes, bem assim os elementos substanciais que poderiam ter o condão de robustecer e dar solidez às nossas proposições atinentes às duas temáticas investigadas e à qualificação do narrador. Para o corpus da pesquisa, selecionaram-se todos os cinco romances da chamada “fase realista” ou da maturidade.
O critério para escolha dos romances da maturidade, e não os da juventude ou da “fase romântica”, é o da maior representatividade e relevância, assim considerados em face da sua consagração pela crítica literária no decurso dos tempos. A cada romance atribuímos o peso 20 (vinte), de tal modo que, em conjunto, os cinco romances perfazem o índice máximo de 100 (cem) pontos. Destarte, em uma escala de zero a cem, mensuramos a graduação exata de cada “obsessão” investigada.
No capítulo I, discutimos algo da conceptologia de literatura e de romance. A propósito desta fôrma literária, abordamos incidentalmente e por contraste os conceitos de novela e conto, bem como os da categoria literária do narrador e seus aspectos correlatos. Tecemos, ainda, considerações sobre o romance em seu trânsito da estética do Romantismo para a do Realismo.
O capítulo II, iniciamo-lo com uma discussão sobre a guinada na trajetória romanesca de Machado de Assis, passando em seguida ao exame de sua fortuna crítica. Delineamos o traçado da fundamentação teórica em concomitância com o da fortuna crítica, de modo que a solidez do pensamento de teóricos como Harold Bloom e Umberto Eco é empregada para desbaratar os enganos e alicantinas pespegados por Helen Caldwell, John Gledson e demais críticos que lhes são caudatários.
O capítulo III traz a nossa análise dos cinco romances machadianos da maturidade. Durante a leitura das obras e tendo em mira, sobretudo, a categoria literária do narrador e sua focalização, ponderamos a presença ou ausência da “comborçaria ou rivalidade fraternal masculina” e da “infecundidade masculina”, tendo sido encontradas partes cardinais dos romances que podem ser consideradas ilustrativas da ocorrência desses temas.
No coligir e mensurar os dados, sopesamos a possibilidade de proposição de uma chave de leitura sistemática para todos os romances analisados, sem descurar do concomitante exame da candente controvérsia que cerca a personagem Capitu, de modo que nos posicionássemos, também, quanto isso.


1. A LITERATURA


Por “literatura” concebemos uma atividade de criação de textos artísticos, aos quais se adjudica um valor estético. A palavra (no sentido mais amplo que o de signo linguístico), utilizada para criar ou recriar uma realidade, é a matéria-prima empregada na confecção da obra de arte literária; no entanto, deve-se observar que aqui essa palavra não se emprega de qualquer forma, sendo observada uma especialização, um funcionamento especial nesse uso. Assim é que a palavra, conformando uma elaboração singular acerca do universo de ação ou imaginação do ser humano, constituirá o objeto artístico literário.
A isso alia-se a necessidade de expressar sentimentos, descrever impressões ou simplesmente inventar histórias (até porque a pura e áspera realidade nunca satisfizera o ser humano), necessidade essa que lhe é inerente desde os primórdios da humanidade, resultando, no último caso, em outra das dimensões essenciais da literatura – seu caráter ficcional.
Com efeito, as composições literárias diferenciam-se das narrativas historiográficas comuns porque, enquanto estas últimas se restringem ao exame do “efetivamente” passado, com lastro em fatos comprováveis e, por assim dizer, externos ao sujeito; as primeiras, esquadrinhando os tutanos morais e outros recessos da interioridade humana, voltam seu interesse a ocorrências não passíveis de demonstração ou prova e, ipso facto, apenas subjetivamente captadas ou intuídas – fatos internos ao sujeito[2].
Por outros termos, há fenômenos atinentes à natureza íntima do ser humano, do indivíduo enquanto protagonista de uma existência singular consciente, que são interditos à investigação objetiva por parte do historiador e do cientista em geral – aquilo em que as pessoas reconditamente pensam, seus secretos motivos, desejos, aspirações – e às quais se tem acesso (conquanto sempre precário) por meio de processos especulativos, dedutivos, intuitivos. Quando esses processos são deflagrados a partir do desnudamento que o escritor faz de si e dos demais indivíduos com recurso à imaginação, à fantasia, à alegoria e a uma linguagem plasmada de uma maneira especial, chamando a atenção sobre si mesma – estamos já adentrados ao espaço da ficção literária.
Em tal espaço, o produtor de literatura (que não se confunde com o narrador ou com o eu-lírico, embora com estes mantenha dada vinculação) e o leitor, em um incessante processo de autoconhecimento desencadeado pelo desprendimento da imaginação criadora, acompanham e confrontam os passos ostensivos e também os percursos íntimos de personagens ou situações que, no fundo, são uma projeção aproximada da humanidade, naquilo que ela assume ou camufla na ordem do individual ou do coletivo.
A literatura trata, pois, daquilo que é possível imaginar sem sacrifício da verossimilhança, ao passo que a historiografia ocupa-se do que terá ocorrido de fato. Lígia Costa, ao explanar acerca da Arte Poética do Estagirita, ensina-nos:

Afastada da perfeição, da divindade e da verdade primigênia, a mimese [segundo Aristóteles] afirma-se como a representação do que “poderia ser”, assumindo o caráter de fábula. O critério do verossímil, que merecera a crítica de Platão por ser apenas ilusão da verdade, torna-se, com Aristóteles, o princípio que garante a autonomia da arte mimética. (COSTA, 2003, p. 06)

Portanto, em se tratando da conceptologia da arte literária, comungamos com o conceito de mimesis aristotélico. Em vista disso, não será ocioso salientar que esta diferenciação entre literatura e historiografia não significa rejeição ao reconhecimento de que há inelutáveis intersecções entre ambas – intersecção em que justamente está pautada a eterna dúvida sobre se a arte imita a vida, ou esta àquela. Pólvora (2012), explorando o tema em verbete biográfico sobre o autor do Dom Casmurro, assim se exprime:

Para ele [Machado de Assis], ficcionista e historiador andam de mãos dadas. "Um contador de histórias", escreve numa crônica, "é justamente o contrário de um historiador, não sendo o historiador, afinal de contas, mais que um contador de histórias. Por que essa diferença? Simples, leitor, nada mais simples. O historiador foi inventado por ti, homem culto, letrado, humanista; o contador de histórias foi inventado pelo povo, que nunca leu Tito Lívio, e entende que contar o que se passou é só fantasiar"[3].

Com sua aguda percepção das coisas, Machado de Assis demarca o terreno que História e ficção lavram em comum, mas aponta também – com sutileza e recurso ao trocadilho – a diferença entre as duas. Para além disso, a literatura é tecida por uma configuração mui especial da linguagem, uma elaboração verbal em que, tomando o próprio arranjo lingüístico como um valor em si mesmo, prevalece a função estética ou poética da linguagem, diferentemente da historiografia, na qual a preponderância é a da função referencial. Aliás, generalizando, o estudo das funções em que se apresenta a linguagem verbal constitui um poderoso instrumento de diferenciação entre a literatura e todas as demais manifestações verbais não literárias.
Como produto da ficção e do labor artesanal com as palavras, a literatura é um fenômeno universal dos povos, no sentido de que se faz presente em todas as sociedades humanas – conquanto em alguns casos, como no das sociedades ágrafas, ela apresente-se apenas na oralidade e, por conseguinte, em uma conformação menos complexa. De qualquer sorte, é no registro escrito da linguagem (enquanto suporte duradouro) que a literatura (do latim littera, “letra”) demonstra sua melhor realização e desponta como um valor elevado para o homem, seja como objeto artístico em sentido estrito, seja como um testemunho cultural em sentido amplo; e é como um produto materializado na escrita que se toma o termo “literatura” neste trabalho.
Outra especificidade da literatura é seu caráter de aparente “inutilidade”, em oposição à serventia imediata das escrituras profissionais, governamentais ou simplesmente úteis à prática cotidiana. A propósito disso, ouçamos a lição de Umberto Eco:

Estamos circundados de poderes imateriais que não se limitam àqueles que chamamos de valores espirituais, como uma doutrina religiosa. (...) E entre esses poderes, arrolarei também aquele da tradição literária, ou seja, do complexo de textos que a humanidade produziu e produz não para fins práticos (como manter registros, anotar leis e fórmulas científicas, fazer atas de sessões ou providenciar horários ferroviários), mas antes gratia sui, por amor de si mesma – e que se lêem por deleite, elevação espiritual, ampliação dos próprios conhecimentos, talvez por puro passatempo, sem que ninguém nos obrigue a fazê-lo (com exceção das obrigações escolares). (ECO, 2003, p. 9)

Em consonância com o pensamento de Umberto Eco, é característico do texto literário não apresentar uma utilidade imediata, um proveito prático instantâneo, alcançando, pois, uma clássica conotação de “arte pela arte”, de busca do prazer e do entretenimento pela criação artística, embora possamos refletir que – do ponto de vista da serventia não-imediata, não-instantânea, não-intencional – essa inutilidade seja relativa, tendo em mente que a “elevação espiritual” e, sobretudo, a “ampliação dos próprios conhecimentos” podem, em verdade, converter-se em serviços assaz úteis prestados pela literatura, designadamente em um mundo que, cada vez mais, exige das pessoas a posse crescente de conhecimentos e de habilidades intelectuais. Aliás, neste contexto, até mesmo o simples “deleite” e o “puro passatempo” podem configurar-se em préstimos de grande valia, mormente em face do tédio e dos quadros depressivos que atingem e adoecem fatias consideráveis da população.
De qualquer sorte, em sua origem e em sua essência, a literatura é marcada por certa gratuidade prazenteira, certa diletante ligação com o sentido do belo e com o descanso das atividades utilitárias, exatamente por isso é que uma obra engajada dificilmente pode ser recebida como literária de fato, até mesmo em face da circunstância de que no texto “engajado” o que prevalece já não é a função poética da linguagem, mas sim a função conativa, de tal modo que, nas obras politicamente engajadas, ao intento genuinamente literário de fazer sobressair a maneira mesma pela qual a mensagem se construiu, superpõe-se o intuito panfletário de influenciar o comportamento do receptor – à laia de anúncios publicitários.
Aliás, em estrita consonância com este cenário, uma obra engajada só possui de literário certo verniz, certas películas superficiais tomadas de empréstimo, pois verdadeiramente se trata de panfleto ou pregação, em frontal inobservância do princípio do gratia sui, o qual, conquanto não seja absoluto, em algum nível deve fazer-se prevalente na obra para que esta mereça a qualificação de “literária”. Tal postura de engajamento, fazendo predominar no texto um desiderato utilitário, está em contraposição ao preceito do ars gratia artis, pelo qual o autêntico monumento literário é um objeto estético que sempre encerra um fim em si mesmo, não podendo ser, enquanto produto artístico, mero meio para se atingir a outro fim qualquer, seja moralizante, pedagógico, ou de “reforma da sociedade”.
Impende consignar aqui, por oportuno, a inexistência de absolutismo nesses conceitos caracterizadores da literatura, ou seja, a literatura não é totalmente ficcional, nem integralmente inutilitária, tampouco a função poética da linguagem é absoluta no labor literário. Em verdade, o fenômeno observado na composição íntima do genuíno artefato artístico literário é uma predominância genérica da imaginação criadora, da gratuidade e da função poética da linguagem, contudo, nem por isso a literatura deixa de veicular alguns materiais da realidade histórica, de apresentar conceitos úteis ou de empregar eventualmente algumas das outras funções da linguagem, conquanto de maneira incidental e subsidiária aos elementos prevalecentes.
Ainda no atinente ao pensamento de Umberto Eco, vimos que a tradição literária constitui uma manifestação de poder, que, sendo imaterial, está longe de ser desimportante. De qualquer sorte, o fato de ser um poder atrai o interesse e a cobiça de partidos políticos, notadamente dos informais, que procuram na atividade de produção ou de crítica literária um meio para encampar e exercer o poder sobre as pessoas, como veremos mais adiante, no capítulo 2, destinado à explanação teórica.


1.1. O Romance

O romance, em sua feição moderna, é uma fôrma literária específica cuja existência, de acordo com alguns autores, seria relativamente recente (se o compararmos com as fôrmas clássicas praticadas há milênios, como a ode, a epopéia, dentre outras), datando mais ou menos do século XVIII a sua ascensão, a partir da qual angariou proeminência nas letras. Essa ascensão do romance coincide mais ou menos com o período em que a epopéia entra em declínio (embora essas duas fôrmas não se confundam), como também com a época das grandes transformações na estrutura das sociedades ocidentais, notadamente a falência do sistema produtivo feudal ou “Antigo Regime” – no qual as posições de poder e comando estavam subordinadas à nobreza hereditária –, substituído por um sistema político e econômico baseado na livre iniciativa e atrelado ao modelo capitalista de produção, em franca expansão ao tempo; coincide, por fim, com o advento da escola artística denominada “Romantismo”, a qual se propunha, dentre outras coisas, a romper com os padrões clássicos grego-romanos que vinham sendo reafirmados desde a centúria anterior pelo movimento estético conhecido como “Arcadismo” ou “Neoclassicismo”.
O próprio nome “romance”, desde a Alta Idade Média, designava os falares românicos anteriores à constituição das línguas neolatinas modernas, como o português, o espanhol, o francês, o provençal, de modo que as histórias fantasiosas contadas em tais falares (como as novelas medievais de cavalaria) muitas vezes recebiam a genérica denominação dos mesmos falares ou eram chamadas de “novelas”. Aliás, parece que daí decorre certa confusão histórica entre os termos “romance” e “novela”, sobretudo se tomarmos em consideração as principais línguas da Europa ocidental, de forma que o técnico assentamento dos traços definidores do “conto”, da “novela” e do “romance”, enquanto específicas fôrmas literárias modernas, não é fácil nem isento de controvérsias, em especial em face das inúmeras experimentações artísticas por que vem passado a literatura nos últimos séculos a esta parte.
Em verdade, entre o conto e o romance modernos não há maiores confusões, porém, marcar em definitivo as estremas do conto com a novela ou, sobretudo, as desta com o romance é que se nos afigura complexo, haja vista os dissensos manifestados pelos teóricos da área; de maneira que, por mais que nos perfilemos a uma proposta conceitual em derredor da matéria, somos obrigados a reconhecer que essa é uma tarefa ainda não por completo cumprida pela teoria literária do Ocidente, não obstante haver várias tentativas sérias nesse sentido.
A narrativa do romance possui muitos elementos estruturais em identidade com a do conto e a da novela, como a escrita em prosa (em contraposição aos versos, típicos das fôrmas literárias poemáticas), a existência de ação, que transcorre em um espaço, em função de um tempo; de personagens, de um enredo, de um narrador, de uma linguagem mais ou menos conotativa ou figurativa em alternância com a denotatividade. O romance, no entanto e a nosso ver, é mais complexo que o conto e a novela, possuindo, ainda, como diferencial em relação a eles, o fato de trazer para o âmbito literário um painel globalizante, capaz de abarcar toda uma realidade, como nos ensina o crítico literário brasileiro Massaud Moisés (2003, p. 165), para o qual “o romance pode, mais do que o conto, a novela e a poesia (mesmo a de caráter épico, segundo o nosso entendimento da matéria), apresentar uma visão global do mundo”.
Para ampliarmos a nossa compreensão do que seja o romance, por contraste, vamos à definição que o citado crítico dá à novela:

A novela ocupa, do ponto de vista histórico, posição menos relevante que a do conto e do romance. Identificada com as manifestações populares de arte, atende ao desejo de aventura e fuga realizado com o mínimo de profundidade e o máximo de anestésico: raro se nivela, em matéria de requinte estético, às fôrmas em prosa vizinha. (MOISÉS, 2003, p. 112)

Em conformidade com as palavras desse crítico, o romance também se diferencia da novela por ser ele uma narrativa de mais largo lastro analítico, de maior densidade psicológica, aprofundando em temas e situações relevantes da condição humana nele retratados ou recriados, quiçá com tiradas filosofantes e com foros de sapiência e erudição, ao passo que a narrativa da novela estaria presa ou associada ao aventuroso, ao superficial, ao que acima de tudo distrai e entretém com facilidade, sem maior compromisso intelectual, nem destacada busca de compreensão ou autoconhecimento.
Entretanto, não é bem assim que leciona Aguiar e Silva. Para esse teórico português, não obstante a ausência de raízes grego-romanas e o pouco apreço intelectual que marcara sua origem e desenvolvimento inicial, o romance é praticado há séculos e já as narrativas aventurosas centradas na instituição medieval da cavalaria eram “romances”, embora não com a feição moderna:

Aparecem assim nas literaturas europeias da Idade Média extensas composições romanescas, frequentemente em verso, em que podemos discriminar duas grandes correntes: por um lado, o romance de cavalaria; por outro, o romance sentimental.
O romance de cavalaria, cujo modelo se constituiu com as obras de Chrétien de Troyes, espelha uma mundividência cortês e idealisticamente guerreira, estruturando-se a sua intriga em torno de duas isotopias fundamentais: o amor e a aventura. (SILVA, 2007, p. 673)

Já aí as divergências impõem-se. Enquanto Massaud Moisés chama de “novela” as narrativas aventurosas, como aquelas pertencentes aos ciclos da cavalaria medieval, Aguiar e Silva as designa por “romance”. Em aditamento, o crítico português expõe a existência de composições romanescas (medievais) em verso, ao passo que, segundo Moisés, o romance, a novela e o conto modernos são fôrmas literárias em prosa, sem vinculação direta e imediata com certas fôrmas poéticas que existiram na Idade Média ibérica e lá eram chamadas “romances” ou “rimances”. As dissonâncias entre esses dois importantes teóricos não se restringem a isso. Continuemos com as lições de Aguiar e Silva:

A literatura narrativa medieval não se circunscreve ao romance. Entre outras formas menores (...), merece particular relevo a novela, narrativa curta, sem estrutura complicada, avessa a longas descrições, que «se esforçava por contar um facto ou um incidente impressionantes, de tal modo que se tivesse a sensação de um acontecimento real e que esse incidente nos parecesse mais importante do que as personagens que o vivem». (SILVA, 2007, p. 674-675)

Aqui, contrariamente a Massaud Moisés, Aguiar e Silva apresenta a novela como sendo uma “narrativa curta”. Contudo, o brasileiro confere tal atributo, não à novela (que segundo ele pode ser até mais extensa que o romance, dada a possibilidade de encadeamento de ilimitados episódios aventurosos), mas ao conto literário, desenvolvido, ainda segundo Moisés, em função de uma unidade temporal, espacial, temática, de ação e de conflito, sendo caracterizado pelo número reduzido de personagens e por ser uma história curta, perfeitamente acabada e, ipso facto, não passível de ulteriores desdobramentos:

O conto é, pois, uma narrativa unívoca, univalente: constitui uma unidade dramática, uma célula dramática, visto gravitar ao redor de um só conflito, um só drama, uma só ação. Caracteriza-se, assim, por conter unidade de ação, tomada esta como a seqüência de atos praticados pelos protagonistas, ou de acontecimentos de que participam. (MOISÉS, 2003, p. 40)

De acordo com Moisés, a reunião de todas essas unidades constitutivas do “conto” fá-lo desembocar em algo que é o resumo de todas elas: a unidade de assunto. Portanto, o conto, à distinção da novela ou do romance, não discute inúmeros assuntos, mas apenas um, de tal maneira que o fato de a história ser curta é antes acidental que de essência, apenas corolário desta unidade fundamental.
Voltando ao romance, diz ainda Aguiar e Silva:

Como afirma um estudioso destes problemas, o romance barroco representa uma espécie de grau zero do romance, e é precisamente com a dissolução desse «ópio romanesco» que aparece o romance moderno, o romance que não quer ser simplesmente uma «história», mas que aspira a ser «observação, confissão, análise», que se revela como «pretensão de pintar o homem ou uma época da história, de descobrir o mecanismo das sociedades, e finalmente de pôr os problemas dos fins últimos». (SILVA, 2007, p. 677-678)

O romance, em Aguiar e Silva, é discutido do ponto de vista das épocas sucessivas, de modo que ele tece considerações sobre o “romance medieval”, o “romance barroco” e o “romance moderno”. É só quando chega a este último que o ensinamento de Aguiar e Silva concerta-se com o de Massaud Moisés, em especial no tocante aos objetivos pretendidos pelo romancista moderno ao criar sua obra romanesca, elevando-se e adensando-se a análise, sendo mais exato e arguto nas observações ou mais profundo nas confissões. Todavia, Aguiar e Silva não discute com especial atenção os romances de autores “engajados”, como faz Moisés. De qualquer sorte, conquanto se estire em considerações sobre o romance nas três épocas acima mencionadas, fazendo incursões diferenciadoras pela novela, Aguiar e Silva esquiva-se de propor para o romance uma definição ou uma conceituação precisa e inequívoca, porventura por senti-las controvertidas ou potencialmente polêmicas, talvez desnecessárias.
Quem também se debruça sobre o assunto é o teórico Salvatore D’Onofrio (2004, p. 116), o qual nos ensina que a partir da Idade Média, no contexto das histórias ficcionais produzidas popularmente nas áreas de formação das línguas românicas, “a palavra romance passou a indicar uma longa narrativa sentimental, forma cultural que viveu à margem da literatura oficial durante a época do classicismo”. Ele sustenta que esta fôrma literária possui uma existência antiqüíssima, porém sem receber a devida consideração da crítica, principalmente por estar associada à produção literária das pessoas de menor cultura formal e intelectual. Analisemos suas palavras.

Como podemos verificar, quer a narrativa sentimental, quer a narrativa realista, embora sem o nome de romance, têm origens muito remotas. Ocorre que esse tipo de ficção em prosa viveu por longo tempo ofuscado pelos gêneros literários clássicos e não recebeu a devida apreciação crítica: todas as teorias poéticas da época do classicismo se preocuparam apenas com os textos versificados. Somente com o declínio da poesia épica, a partir do início do século XVIII, a ficção em prosa, assumindo o papel da epopéia de expressar a totalidade da vida, passou a adquirir o estatuto de gênero literário. (D’ONOFRIO, 2004, p. 116-117)

Como podemos inferir das palavras de Salvatore D’Onofrio, o romance moderno em essência ainda é quase a mesma narrativa ficcional, praticamente a mesma fôrma literária surgida séculos antes, com a diferença que, com a decadência da poesia épica, passou a usufruir de uma elevação de seu estatuto literário e da consideração crítica. Com efeito, e em que pese ao fato de não possuir ainda esta designação, a narrativa romanesca há muito existia e interessava-se tanto por aquelas histórias bem ancoradas na realidade, quanto por outras mais sentimentais ou cavaleirescas, já lá atrás ostentando o vasto espectro de sua ocupação, embora o romance moderno intensifique e amplie a tematização de toda sorte de angústias e interesses, desejos e aspirações dos homens, como as questões de cunho psicológico, sociológico, político, científico, amoroso, religioso, filosófico, enfim, a globalidade de motivos que dizem respeito à vida humana.
Procurando diferenciar romance e novela, diz Salvatore D’Onofrio (2004, p. 119) que esta é “uma narrativa de estrutura aberta, na qual é sempre possível acrescentar mais um episódio, fazer intervir mais uma personagem, deslocar a ação num outro espaço e num outro tempo”, ao passo que aquele seria “uma narrativa de estrutura fechada: a história tem começo, meio e fim bem definidos”. Assim, D’Onofrio, tomando o carácter de estrutura aberta ou fechada como diferencial decisivo, dá-nos uma precisa conceituação de romance, distinguindo-o da novela. Pode ser uma definição sujeita a controvérsias e refutações, mas é clara e positiva, não pecando por omissão, vagueza ou obscuridade.


1.2. O Romance Segundo a Estética do Realismo

O Realismo é uma escola literária ou um movimento estético nascido no século XIX como forma de reação àquilo que seus adeptos consideravam “os exageros” do Romantismo, ou mesmo ao simples cansaço deste último. Foi um movimento abrangente (alcançando também, e até primeiramente, as artes plásticas) e exerceu vasta influência tanto na prosa, quanto na poesia. Porém, em face do escopo do nosso trabalho, havemos de concentrar-nos nas suas manifestações romanescas, até porque, quando do advento do Realismo, já o romance gozava de amplo prestígio enquanto fôrma literária. Adicionalmente, discutiremos o romance no Realismo (escola literária que guarda similitudes com o Naturalismo coevo, embora não a exata igualdade; ambas são parecidas sob muitos aspectos e procedimentos, não sendo o Naturalismo muito mais que uma exacerbação, um paroxismo dos postulados realistas, exagero ligado ao determinismo genético, cultural e histórico) também em cotejo com aquele praticado na escola Romântica.
Ao delimitar e conceituar Romantismo e Realismo, é comum a crítica especializada indigitar, como principal divergência entre ambas, a subjetividade, o egocentrismo, o idealismo, a retomada de tradições medievais, o gosto pelo sombrio e o pouco compromisso com a realidade concreta, atribuídos ao primeiro, em contraposição à objetividade, à impessoalidade, ao resoluto compromisso com a reportagem fidedigna da realidade material da sociedade, à semelhança das ciências naturais, cominados ao segundo. Assim, nestes termos sucintos, a crítica literária passa a impressão de que o Romantismo seria pura invencionice idealizadora, ao passo que o Realismo seria retratação fiel do mundo, das pessoas e de suas relações, apenas transpostos para a obra pelo processo da criação artística.
Para Alfredo Bosi (2003, p. 173), tendo em mira a construção de personagens nas fôrmas em prosa, “do Romantismo ao Realismo, houve uma passagem do vago ao típico, do idealizante ao factual”. Além disso, ele acusa nos realistas a operação de um distanciamento metódico de suas personagens e dos demais componentes da ação, pela existência de uma busca de impessoalidade na descrição do meio e no tratamento das pessoas que nele transitam, à semelhança dos homens dedicados às ciências naturais.

Há um esforço, por parte do escritor anti-romântico, de acercar-se impessoalmente dos objetos, das pessoas. E uma sede de objetividade que responde aos métodos científicos cada vez mais exatos nas últimas décadas do século”. (BOSI, 2003, p. 167)

Não está em desacordo com Moisés (2004, p. 379), segundo o qual “os realistas preconizavam um enfoque objetivo do mundo, em oposição ao subjetivismo romântico”, nem com Afrânio Coutinho, que assim pontifica a propósito de tal movimento literário:

Em conclusão, o Realismo é a tendência literária que procura representar, acima de tudo, a verdade, isto é, a vida tal como é, utilizando-se para isso da técnica da documentação e da observação contrariamente à invenção romântica. Interessado na análise de caracteres, encara o homem e o mundo objetivamente, para interpretar a vida. Utilizando-se das impressões sensíveis, procura retratar a realidade graças ao uso de detalhes específicos, o que faz que a narrativa seja longa e lenta e dê a impressão nítida de fidelidade aos fatos. (COUTINHO, 2001, p. 189-190)

Para além de traçar essas especificidades gerais do Realismo, opondo-as às do Romantismo, Afrânio Coutinho cuida ainda do desenvolvimento dessa escola no contexto particular do Brasil, como também de questões estruturais estritamente vinculadas ao fazer literário, aí igualmente contrapondo, do modo implícito, Romantismo e Realismo.

Em conformidade com a estética geral do Realismo, os ficcionistas realistas brasileiros dão maior interesse à pintura de personagens, à caracterização e à descrição de sua vida, do que à organização da trama. (COUTINHO, 2001, p. 196)

Não podemos declarar que algum desses estudiosos laborasse em erro ao discutirem Romantismo e Realismo, notadamente se o que tomamos em consideração é toda a literatura ocidental, com olhos tanto na poesia, quanto na prosa. Todavia, se convergirmos a nossa visão especificamente para o romance brasileiro arraigado no século XIX, algumas das teorizações sobre Romantismo e Realismo, por eles expostas, passam a não ser muito condizentes com a verdade. O que de fato separa a estética romântica da realista, nesta perspectiva particular, é menos o compromisso com a retratação fiel ou a idealização da realidade, e mais a concentração do interesse em estações específicas da vida dos protagonistas e é neste exato sentido que, a nosso ver, a nupcialidade funciona como divisor de águas: o Romantismo cuida, por assim dizer, dos “antecedentes”, das peripécias e obstáculos ao enlace dos enamorados adolescentes ou ainda na primeira juventude, ao passo que o Realismo ocupa-se com os “conseqüentes”, com a vida em comum depois do “sim” matrimonial (seus tédios, seus desconfortos, suas insatisfações) ou das primeiras experiências sexuais clandestinas (seus medos, suas angústias). Em face disso é que o adultério é um tema tão rotineiro no romance sob esta estética literária, como também o concubinato e outras ocorrências tidas ao tempo como desregramento sexual.
A fase do “namoro” e noivado, objeto predileto do romance no Romantismo, é justamente o estádio em que, ainda jovens e inexperientes, e flutuando na sublimidade daquilo que Stendhal chama de “amor-paixão”, os heróis e as heroínas de fato idealizam sua situação presente e, sobretudo, a futura, e essa é a realidade daquele momento, de forma que a narrativa que faltasse ao tom idealizador e não conferisse ao amor-paixão adolescente a supremacia sobre todas as coisas, neste cenário, faltaria à verdade da situação psicológica que pretende narrar. Tanto é assim, que depois da cerimônia nupcial dão-se normalmente apenas algumas indicações sobre a felicidade geral dos esposos ou diz-se algo não muito além de alguma variante do “e foram felizes para sempre”, porque é exatamente essa a expectativa moral dos recém-casados.
Por seu turno, saltando mais ou menos rapidamente a fase de “namoro” e noivado dos protagonistas e indo logo para a constância mesma do concubinato ou do casamento, objeto da predileção do romance no Realismo, em especial se o conúbio ou enlace deveu-se a concupiscências irrefreáveis, conveniências de família e interesses alheios ao amor, tem-se o estádio em que, mais amadurecidos e experientes, sujeitos menos ao amor platônico que à sensualidade, os heróis e as heroínas de fato já não idealizam tanto, mas calculam, enredam, seduzem; abre-se-lhes o leque de mazelas existenciais como o tédio, as paixões clandestinas, a necessidade da dissimulação, o adultério, a vaidade desmedida, as ambições sem limites, a busca de satisfações brutais e todo o cortejo de aflições e enfermidades tão conhecidas desses escritores, como do público.
Uma demonstração disso pode ser obtida da confrontação de romances românticos tais como A Moreninha ou O Moço Loiro, de Joaquim Manuel de Macedo; A Escrava Isaura, de Bernardo Guimarães; ou a maioria dos romances urbanos de José de Alencar; com romances realistas como Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba, Dom Casmurro, de Machado de Assis, O Cortiço, Casa de Pensão e O Mulato de Aluísio Azevedo; O Missionário, de Inglês de Sousa; A Normalista, de Adolfo Caminha.
Ora, qualquer pessoa, com idade entre os 15 e os 18 anos, costuma ser assaz diferente dela mesma, depois que ultrapassa os 25 ou 30, sobretudo se houver um casamento de permeio. Serão outras as concepções de vida, as expectativas de futuro, as necessidades imediatas, o acúmulo intelectual e a experiência pessoal.
Dessa forma, entendemos que as diferenças entre a estética do Romantismo e a do Realismo, no romance brasileiro do século XIX, ligam-se menos ao maior ou menor apego à retratação fiel do mundo e do ser humano ou mesmo à impessoalidade do narrador, e mais ao interesse concentrado em distintas estações da vida dos protagonistas, antes ou depois dos esponsais, ainda adolescentes ou já mais maduros, com os sonhos e ilusões, problemas e desejos desta ou daquela etapa da vida.
De qualquer sorte, o enquadramento de romances na fixidez de uma escola literária nunca foi isento de problemas, uma vez que a obra, por si mesma, sempre encontra meios de escapar, um pouco que seja, às gavetas teóricas preestabelecidas, onde habilmente os teorizadores procuram guardá-las.


1.3. O Narrador

O narrador e a focalização constituíram-se nas categorias literárias fundamentais em cuja função materializou-se o processo investigativo deste trabalho. Quanto ao conceito e à instituição do narrador literário, assim se posiciona Silva (2010, p. 695): “Dentre as personagens possíveis de um romance, há uma que se particulariza pelo seu estatuto e pelas suas funções no processo narrativo e na estruturação do texto – o narrador”.
Conquanto em princípio compreenda o narrador como mais uma dentre tantas personagens que povoem um romance, sem ressalvas quanto ao narrador onisciente verbalizando em terceira pessoa (heterodiegético), Silva retoma o tema, ao discutir a possibilidade de um romance sem narrador (ou com narrador ausente), firmando este posicionamento:

O problema não pode consistir em estabelecer uma dicotomia entre textos narrativos com locutor-narrador e textos narrativos sem locutor-narrador, mas sim em distinguir entre textos com um narrador autonomizado como instância doadora da narrativa, não coincidente com o autor textual, e textos narrativos com um narrador de “grau zero”, de impossível diferenciação relativamente ao autor textual (...). Só nos textos do tipo primeiramente referido é que o narrador se apresenta como personagem. (SILVA, 2010, p. 697)

Portanto, em conformidade com a lição de Silva, o narrador é figura cardeal, nunca ausente da diegese romanesca, mas com um estatuto variável em função do grau de autonomia, sendo certo que goza de maior soberania o narrador autodiegético (que é o narrador-personagem e também protagonista, em primeira pessoa), ao passo que o narrador heterodiegético (aquele que não é personagem, em terceira pessoa), em uma focalização sem restrições, consubstancia-se no de menor independência, confundindo-se, pois, com o autor textual (mas nunca com o autor empírico, inconfundível, segundo o mesmo Silva).
No tocante, aliás, a essa diferenciação entre narrador, autor textual e autor empírico, assim se pronuncia Silva:

O narrador, como esclarecemos ao analisar a problemática do emissor na comunicação literária, não se identifica necessariamente com o autor textual e muito menos com o autor empírico – identificação esta típica de um biografismo ingénuo ou preconcebido –, pois ele representa, enquanto instância autonomizada que produz intratextualmente o discurso narrativo, uma construção, uma criatura fictícia do autor textual, constituindo este último, por sua vez, uma construção do autor empírico. (SILVA, 2010, p. 695)

Como se vê, Silva alarga a distância que separa o escritor (autor empírico) e o agente que de fato narraria a trama literária (narrador), pondo entre ambos a figura do “autor textual”, que seria concomitantemente uma criatura do ficcionista e o criador do narrador, sendo este último a entidade responsável pela fiação do tecido textual. Semelhante alargamento, de resto, minora consideravelmente o comprometimento ideológico e, acima de tudo, a responsabilidade pessoal do escritor em face da sua obra, para além de restringir e mesmo volatilizar – quase a um ponto evanescente – o estatuto da onisciência autoral, sendo, por isso mesmo, uma postulação não isenta de controvérsia. Não compramos, por seu valor de face e no particular, esta teoria veiculada por Silva, até porque, em uma escala de distâncias, a alegação de “biografismo ingénuo ou preconcebido” está mais perto do simples insulto ou da intimidação autoritária, do pedante bloqueio ao contraditório, do que de um respeitável argumento científico.
Massaud Moisés, aliás, manifesta-se contrariamente a tal postulado, sustentando, por sua vez, a total responsabilidade do escritor (que ele designa simplesmente como “autor”, não cogitando de “autor textual” outro que não o próprio escritor) para com o narrador e a obra em sua globalidade ou pontos particulares, vendo, nos diversos aspectos da focalização narrativa, meros artifícios pelos quais o prosador pretende debalde ocultar-se. Vejamos:

Em última instância, o ficcionista é onisciente ainda quando concede às personagens a faculdade de conduzir a narrativa segundo seu prisma óptico. É que os pontos de vista constituem expedientes, disfarces teatrais, com que o autor dissimula que conhece tudo quanto ocorre nas suas obras, ao menos por ser quem as construiu. Decerto, a colaboração do inconsciente deve ser ponderada, mas o ficcionista não labora em transe. Mesmo nas ocasiões em que a personagem atua fora das balizas imaginadas pelo criador, este continua onisciente, na medida em que acaba por se dar conta, guiado pela intuição, do conteúdo que se lhe apresenta como novo e surpreendente. Enfim, onisciente porque a obra nasce dele, entendendo-se onisciência não como sinônimo de consciência plena, lucidez crítica, mas como conhecimento amplo, pela memória, pela imaginação e pela reflexão, dos materiais da ficção: o Homem, a Natureza, o Tempo e a História. (MOISÉS, 2003, p. 72)

Esposamos neste trabalho uma posição vizinha do que aí vai sustentado por Massaud Moisés, por nos parecer mais consentâneo com a realidade da criação literária. Isso porque, se por um lado parece-nos inviável para a crítica literária tomar por pressuposto uma distinção muito tênue (quase uma indistinção) entre o ficcionista e o narrador, por outro lado, afigura-se-nos abusivo e temerário – pela interposição de estratos e mais estratos de “autorias” e “criadores” construídos teoricamente, abstratamente – afastar de tal maneira uma obra de seu autor, que o faça dela desaparecer quase por completo, permanecendo apenas como uma abstração longínqua e intangível. Isso seria a morte da responsabilidade e do mérito individuais, que, assim, cederia lugar ao coletivismo. Não cede. Sempre haverá na obra uma projeção do universo do seu autor, do seu gênio, do seu jeito único de estar no mundo e refleti-lo. O autor não está morto (como quisera Rolland Barthes), nem a obra, uma vez pronta, é anônima, como desejam outros. Isso não significa projeção direta, necessariamente biográfica, do autor em sua obra, mas projeção daquilo que o angustia, que vive irrequieto dentro dele e reclama alguma forma de escape, de expressão, de sublimação.
Não professamos a crítica literária de linha biográfica (por considerar que podemos, por exemplo, analisar As Mil e uma Noites não obstante lhe desconheçamos o autor), mas não a repudiamos por completo, por vislumbrarmos aí alguma utilidade eventual, subsidiária, no estudo de certos aspectos da obra. Aliás, no tocante ao biografismo, como em tantas outras questões, convém fugir a posicionamentos extremados – nem biografismo total, nem biografismo nenhum.
De resto, um dos mais relevantes estudiosos da vida e da obra machadiana, a brilhante Lúcia Miguel-Pereira, assume uma linha de análise eminentemente biográfica e nem por isso sua contribuição deve ser desprezada. “Quanto a mim, creio ser impossível compreender a obra de Machado sem estudar-lhe a vida, sem procurar entender-lhe o caráter” (MIGUEL-PEREIRA, 1949, p. 13). Divergimos quanto à assertiva da completa impossibilidade de compreensão da obra machadiana (ou de qualquer outra autoria) sem estudar a vida e o caráter do seu autor, todavia concordamos que este conhecimento pode auxiliar o intérprete e ser um instrumento a mais na composição do aparato teórico a ser empregado no processo de análise crítica das obras do autor do Memorial de Aires.
Entretanto, no concernente à focalização, ressaltamos a pertinência da proposição encontrada no mesmo Silva (2010), notadamente as díades “focalização heterodiegética versus focalização homodiegética e autodiegética”, “focalização externa versus focalização interna”, “focalização omnisciente versus focalização restritiva”, “focalização interventiva versus focalização neutral” e “focalização fixa versus focalização variável e múltipla”, por cuja virtude desabrocham-se possibilidades objetivas de estudo do narrador e do ponto de vista, categorias literárias a que imputamos a responsabilidade pela riqueza e pela variedade dos romances da maturidade machadianos, em contraposição à estrutura temática básica recorrente.
Chama-se “focalização heterodiegética” àquela que traz um narrador não participante na diegese textual, o que geralmente ocorre nas narrativas verbalizadas em terceira pessoa; ao passo que “focalização homodiegética” é aquela na qual o narrador é também personagem e, portanto, partícipe na diegese, cabendo mencionar um tipo especial de focalização homodiegética, dita “autodiegética”, que é aquela em que a personagem que narra é também protagonista e não apenas simples comparsa ou personagem secundária.
Na “focalização interna”, o narrador invade o mundo interior e a subjetividade de uma ou mais personagens, dando a conhecer os seus pensamentos e motivos mais recônditos; enquanto que na “focalização externa” o narrador atém-se aos aspectos exteriores, comportamentais e atitudinais, a tudo quanto seja visível e audível, digamos, “testemunhável” nas personagens.
Na “focalização omnisciente” o narrador revela conhecimento global e irrestrito, tanto do aspecto externo, quanto interno das personagens e das ações presentes no universo espácio-temporal instaurado pela narrativa; ao passo que na “focalização restritiva” não há essa onisciência, adotando geralmente o narrador apenas o ponto de vista de uma personagem.
A “focalização interventiva” é aquela em que o narrador interrompe a narrativa, seja para tecer considerações ou julgamentos diretos, seja no sentido de interpelar o leitor, chamando-lhe a atenção para isto ou aquilo; já a “focalização neutral” é, ao contrário, aquela em que o narrador, buscando um afastamento do texto e uma ocultação de si mesmo, e concentrando-se na exposição dos fatos e atos diegéticos, não interrompe o fio do relato, abstendo-se, tanto quanto seja possível, da emissão direta de juízos e da interpelação do leitor. 
Por fim, na “focalização fixa” as focalizações precedentemente definidas mantêm-se constantes no curso da narrativa, como uma focalização que permanece onisciente do início ao fim; por outro lado, na “focalização variável e múltipla” há variação e multiplicidade de focalizações na mesma narrativa, que pode, verbi gratia, encetar-se onisciente e depois transmudar-se em restritiva ou caracterizar-se por uma multiplicidade de focalizações restritivas.


2. DA GUINADA NA TRAJETÓRIA ROMANESCA MACHADIANA, DA SUA FORTUNA CRÍTICA E DA FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA


Como dito, a obra de Machado de Assis é rica e vária, mas chama a atenção o número de vezes em que glosou o mote do adultério. Este, como tema literário, remonta aos primórdios mesmos da literatura. Já na Ilíada, obra com a qual Homero “inaugurara” a literatura ocidental, o tema impõe-se, pois ali se relata que a causa primária da Guerra de Tróia foram os amores adulterinos havidos entre Páris, príncipe troiano, e Helena, rainha de Esparta, esposa do rei Menalau, amores esses que culminaram no rapto de Helena por Páris, ao qual o marido ultrajado reage reunindo aliados e promovendo a guerra, em resguardo da sua honra agravada.
Na literatura francesa, de imensa voga no curso dos séculos da modernidade, a temática do adultério também é constante, auferindo especial destaque a publicação do romance Madame Bovary, por Gustave Flaubert. Por convenção, tem-se que esta obra debuta o Realismo, enquanto estética literária, no Ocidente. Machado de Assis foi, sem dúvida, influenciado por esta voga, seja porque transitou vivamente pelo Realismo (ainda quando questiona e contesta alguns dos seus postulados, sobretudo o excesso de descrições, os determinismos e a escassez de pudor), seja porque tratou do adultério com recorrência, muito embora, em Machado, tanto o Realismo quanto o adultério sejam tratados com uma coloração e um estilo assaz próprios, a imprimir um relativo distanciamento do romance flaubertiano, como dos demais realistas-naturalistas. Aliás, muito já se discutiu a propósito do adultério na obra machadiana. Alfredo Bosi o discute nos seguintes termos:

Da história vulgar de adultério de Brás Cubas-Virgília-Lobo Neves à triste comédia de equívocos de Rubião-Sofia-Palha (Quincas Borba), e desta à tragédia perfeita de Bentinho-Capitu-Escobar (D. Casmurro) só aparecem variantes de uma só e mesma lei: não há mais heróis a cumprir missões ou a afirmar a própria vontade; há apenas destinos, destinos sem grandeza. (BOSI, 2003, p. 180)

Já aí percebemos que Bosi também vislumbra certa regra de composição e certa recorrência temática nos romances machadianos, porém, de sua análise, emerge o desaparecimento do herói tradicional, do ente majestoso capaz de proezas supra-humanas, como substância das narrativas. Além disso, essa mesma recorrência, variando, serve, para Bosi, de baliza ao juízo valorativo, ao julgamento estético das obras, ao afirmar a implícita superioridade da “tragédia perfeita”, em relação à “triste comédia de equívocos” e à “vulgar história de adultério”.
Todavia, da leitura dos cinco romances aqui estudados, sentimos que falar em “adultério”, “triângulo amoroso” ou “ménage à trois” é muito genérico, haja vista a peculiaridade com que se apresenta nas histórias de Machado de Assis, o qual se interessava por arranjos triangulares bastante específicos. Daí porque a nossa investigação perseguiu a “comborçaria ou rivalidade fraternal masculina”, temperada pela “infecundidade masculina”.
Em Portugal, o filão do adultério foi explorado de modo marcante por Eça de Queirós, ao dar a lume O Primo Basílio. No que concerne a esta obra, motivou em 1878 um duplo trabalho de crítica literária por parte de Machado de Assis, que a analisou com certa severidade, chegando a acoimar de “um títere” a personagem Luísa, em cujos amores ilícitos está centrada a trama queirosiana.
Como se isso não bastasse, há ainda, na crítica de Machado de Assis, uma pouco velada argüição de subserviência doutrinária, segundo a qual Eça de Queirós, aderindo à militância realista-naturalista sem quaisquer ressalvas, teria copiado os procedimentos de composição romanesca e as diversas teorias deterministas que, na literatura então emergente, eram sustentadas pelo francês Émile Zola, adepto do naturalismo literário – por isso mesmo é que a personagem Luísa não teria moto próprio.
Ao que tudo indica, é a partir daí, dessa crítica à composição literária sob a batuta do determinismo, que Machado de Assis estabelecerá a sua idiossincrática visão sobre a comborçaria ou rivalidade fraternal masculina, retomando-a seguidamente, sob variadas perspectivas, mas sempre notadamente impregnada dos ressaibos da infecundidade masculina.
Esta polêmica instaurada entre Machado de Assis e Eça de Queirós, tendo por ponto de partida a crítica machadiana a O Primo Basílio, foi objeto de recente trabalho de Gisélle Razera. Sua abordagem, diferentemente da nossa, é a da literatura comparada. Amparando-se nos conceitos da “angústia da influência”, proposto por Herald Bloom, e da “polêmica velada”, avançado por Mikhail Bakhtin, ela sustenta e procura demonstrar que as Memórias Póstumas de Brás Cubas são, ao fim e ao cabo, uma réplica ao romance protagonizado por Luísa e Basílio.

Nas páginas do Cruzeiro, Machado externou opinião contrária ao método de composição usado por Eça de Queirós em O Primo Basílio e também se manifestou antagônico a alguns pressupostos do Realismo. Considerando a concepção de angústia da influência, proposta por Herald Bloom e o conceito de polêmica velada formulado por Mikhail Bakhtin, postula-se que, ao escrever as Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis praticou alguns dos movimentos revisionários descritos por Bloom, operando reparos em pontos do método de composição que julgou falhos em O Primo Basílio e, por intermédio de Brás Cubas, questionou alguns dos pressupostos da representação realista zoliana. (RAZERA, 2011, p. 07)

Em verdade, tomando como ponto de partida a discussão proposta por Razera, podemos inferir ou pensar que as Memórias Póstumas de Brás Cubas seriam um prolongamento de resposta, ou antes, a demonstração prática, na materialidade da obra de arte, da resposta teórica já desencadeada com a crítica literária veiculada na revista O Cruzeiro em 1878. Naturalmente, impunha-se, nesse movimento revisionário, demarcar distinções. A principal delas, segundo Razera, apresenta-se sob a forma de inovação quanto ao narrador.

Entre tantas inovações que Memórias Póstumas de Brás Cubas inaugurou na prosa machadiana, o método de narração talvez tenha sido a mais significativa: um narrador em 1ª pessoa que conta a sua vida a partir da própria morte, um defunto-autor. (RAZERA, 2011, p. 129)

De fato, desde esse momento, repousa no narrador uma das senhas mais profícuas para a compreensão da riqueza e da variedade na obra machadiana. Porém, a nosso ver, esse estudo do narrador permanecerá sem uma consistência globalizante, em estado de incompletude, se se fixar em apenas um dos romances e se não for conjugado com a análise da cristalização de uma estrutura recorrente e de uma temática que, pela iteração, torna-se obsessiva, na fase artística que se abre com a publicação das Memórias Póstumas de Brás Cubas.

A forma de representação narrativa de Brás Cubas, além de simbolizar o momento da viravolta machadiana, traz consigo outras informações: quando Machado de Assis pôs em movimento o narrador Brás Cubas, um morto a contar a sua história, afrontou uma série de pressupostos do Realismo que se tentava implantar, a começar pela exigência da verossimilhança. Conforme observado por Schwarz, desde o início das Memórias Póstumas de Brás Cubas foi evidenciada uma vontade de chamar a atenção. “O tom é de abuso deliberado, a começar pelo contra-senso do título, já que os mortos não escrevem”. (RAZERA, 2011, p. 131)

Essa refutação de Machado de Assis a alguns dos postulados do Realismo (mais desabridamente, do Naturalismo) não significa total rejeição à nova escola literária – tampouco completa renúncia a todos os preceitos do Romantismo, que ainda despontarão em um ou outro momento, embora com relativa raridade, nos romances da nova fase. Significa que ele passará à prática de um realismo à sua maneira, preferindo a alusão e o subentendido à descrição porfiada dos espetáculos grotescos ou despudorados que os naturalistas lançavam ao rosto do leitor; preferindo uma heroína “forte”, complexa, como Virgília ou Capitu, a uma que acusa de “fraca”, “títere”, como Luísa; preferindo, enfim, a análise dos caracteres à descrição minuciosa de ambientes e objetos, a seu ver, acessórios.
Assim procedendo, Machado de Assis estaria talvez a ser ainda mais realista do que Eça de Queirós e os demais militantes da nova escola, à medida que não se deixaria embair pelas impressões epiteliais. É, pelo menos, o que sustenta Luciane Reinke em recente dissertação de mestrado, com supedâneo nas teorias reproduzidas por Theodor Adorno:

Estaria assim o autor elegendo o romance como uma forma de resistência à reificação, à coisificação do indivíduo no mundo contemporâneo. O rompimento com o realismo e a criação de novas formas de linguagem seriam uma saída para alcançar o verdadeiro significado da essência do que se apresenta, quebrando o processo de mistificação. (REINKE, 2012, p. 12)

Há, porém, problemas com essa proposta. Basta um exame perfunctório da biografia e, sobretudo, da prosa literária machadianas para vislumbrarmos a implausibilidade do alvitre de Luciane Reinke, isso por não constar que Machado de Assis, à semelhança dos autores panfletários, haja em algum momento utilizado a obra de arte literária, notadamente seus romances, como simples meio para contrapor “resistência à reificação” ou a qualquer categoria abstrata que exista apenas enquanto esquema mental de ideologias políticas. Por estar embriagada da doutrina socialista de Theodor Adorno, Luciane Reinke projeta o seu próprio marxismo nos romances do autor do Quincas Borba, o que, na melhor das hipóteses, leva a uma leitura pouco feliz dos artefatos literários em questão, tendo em vista que Machado de Assis é pouco ou nada permeável a tais utopias ou a seus postulados – di-lo bem o conto A Sereníssima República. De resto, a quebra dos processos de mistificação passa, definitivamente, pela quebra das ideologias mistificadoras.
Reinke, nesse mesmo trabalho, depois de pedir licença à mistificação dominante nos nossos cursos de ciências humanas, estuda o narrador machadiano a partir da análise de um conto (Galeria Póstuma) e três romances (Iaiá Garcia, Esaú e Jacó e Memorial de Aires). Sua hipótese avança no sentido de que haveria uma continuidade de personagens até culminar no Conselheiro Aires, narrador e personagem secundária do último romance de Machado de Assis. Ao proceder à sua investigação, ela não buscou apontar estruturas recorrentes, que é nosso objeto, mas tencionou

[...] compreender a importância dos personagens Luís Garcia, Conselheiro Aires e Joaquim Fidélis, base para a constituição do narrador do Memorial de Aires. Para isso, verificou-se pela comparação que Machado de Assis configurava tipos semelhantes ao Conselheiro Aires, dos romances Esaú e Jacó (1904) e Memorial de Aires (1908), através dos personagens Luís Garcia, do romance Iaiá Garcia (1879) e Joaquim Fidélis, do conto Galeria Póstuma (1883-1884). (REINKE, 2012, p. 05)

O seu foco, portanto, é a construção de uma personagem a partir de um continuum de predecessores. Para ela, vai ocorrendo não uma acumulação, mas sim um refinamento dos caracteres das personagens em sucessivos contos e romances, até chegar-se a uma personagem definitiva, que, na seqüência por ela examinada, seria o narrador do Memorial de Aires. Narrador que, ainda segundo ela, é suspeito porque emprega um tom irônico:

No Memorial de Aires, o narrador Conselheiro Aires mostra através de tom irônico que sua sinceridade pode ser colocada à prova:
“Quando eu era do corpo diplomático efetivo não acreditava em tanta coisa junta, era inquieto e desconfiado; mas se me aposentei foi justamente para crer na sinceridade dos outros. Que os efetivos desconfiem!”
Não se pode confiar em um narrador que afirma para o leitor desconfiar dele. Por isso, é necessário suspeitar do seu discurso. (REINKE, 2012, p. 17)

Permitimo-nos divergir de Reinke, também neste ponto. Primeiro, porque o narrador, na passagem trazida à colação, não exorta os leitores a que desconfiem dele, porém, isso sim, exorta os diplomatas que estão em funções a manter acesas as lâmpadas da desconfiança (como em tempo ele próprio o fizera, só deixando de fazê-lo na condição de diplomata aposentado), naturalmente em face das delicadas atribuições que cumprem, intermediando as relações, por vezes tensas, entre os Estados ou entre seus chefes; segundo, e sobretudo, porque, para pôr em dúvida a credibilidade do narrador, entendemos que um tom irônico, se de fato presente, por si só não é bastante, sendo imprescindível imputar, concretamente, a tal narrador ou a qualquer personagem a cujo discurso não se queira conferir confiabilidade, alguma contradição ou incongruência, confrontando o seu enunciado ou a sua fala com alguma evidência ou indício material veiculado pela narrativa e que faça prova ou conduza o pensamento em sentido contrário, sob pena de essa afirmação de desconfiança configurar-se em uma arbitrariedade que depõe contra o caráter mesmo de objetividade que se espera de uma análise científica e vir sob medida para satisfazer interesses pessoais ou ideológicos.
De resto, uma desconfiança não perfeitamente fundamentada, ou de todo infundada, abre espaço para que, no limite, a análise seja baseada na instauração de um cepticismo generalizado, que pode voltar-se contra toda e qualquer manifestação comunicativa, sem excluir o próprio discurso acadêmico dos autodenominados “teóricos” e “analistas”.
Aliás, desconfiar dos “teóricos” e “analistas” que manifestem desconfiança pré-moldada, ou desconfiem sem amparo em elementos concretos trazidos pela obra examinada, é restaurar o crédito literário das mesmas obras e ampliar as possibilidades de leitura consistente, pela restrição mesma das molduras preconcebidas por eles para ajustar os possíveis sentidos aos seus compromissos ideológicos.
De mais a mais, a ironia, antes de ser um dado objetivo que ampare uma desconfiança contra a atuação do narrador construído pelo ficcionista para conduzir a história contada, é um rico recurso literário, ao qual lançam mão os mais bem-sucedidos escritores, sem prejuízo da fiabilidade. Para o crítico estadunidense Harold Bloom, a ironia é uma espécie de metáfora e, portanto, carrega em seu bojo uma polissemia viva, a qual, posto não seja imprescindível, é um dos notáveis elementos presentes nos grandes monumentos literários. Bloom lamenta a proliferação de ideologias políticas nas faculdades de letras, a acarretar nas criações atuais, dentre várias conseqüências que considera funestas, a indigência ou mesmo o desaparecimento dos elementos constituintes da genuína prosa literária, a exemplo das figuras de linguagem como a ironia, que cedem espaço ao vulgar engajamento panfletário. Diz ele:

No fim da trilha da ironia perdida existe um passo derradeiro, depois do qual o valor literário será irrecuperável. A ironia é apenas uma metáfora, e a ironia de dois períodos literários distintos, raramente, será a mesma. Porém, se não houver um renascimento da visão irônica, algo mais do que aquilo que outrora chamávamos “literatura de ficção” será perdido. (BLOOM, 2001, p. 23)

Segundo esse eminente crítico, uma extirpação da ironia (em favor dos “engajamentos”) traz consigo um dano irreparável ao valor estético das obras de ficção. Aliás, para ele, a qualidade artística dessas obras pode mensurar-se pelo nível de ironia nela destilada pelo escritor e recepcionada pelos leitores.

Para ser percebida pelo leitor, a ironia requer certa atenção, além da habilidade de contemplar idéias opostas, conflitantes. Uma vez destituída de ironia, a leitura perde, a um só tempo, o propósito e a capacidade de surpreender. Se buscarmos, na leitura, algo que nos diz respeito, e que pode ser por nós usado para refletir e avaliar, constataremos que esse algo, provavelmente, terá um conteúdo irônico, mesmo que muitos professores de literatura desconheçam o que seja ironia, ou onde a mesma possa ser encontrada. A ironia liberta a mente da presunção dos ideólogos, e faz brilhar a chama do intelecto. (BLOOM, 2001, p. 23-24)

De acordo com Bloom, como vemos na passagem acima, a ironia presente no tecido literário é não apenas um brilhante exercício da inteligência, mas também desempenha uma função de relevo no que concerne ao caráter de novidade e surpresa aduzido pelas produções literárias. Em conformidade com ele, sem provimento de ironia é inviável cogitar a literatura.

Do meu ponto de vista, a criação literária sempre contém um certo grau de ironia, e por isso Oscar Wilde fez a advertência de que toda poesia ruim é sincera. Mas a ironia não é uma condição precípua da linguagem literária, e o significado nem sempre é um andarilho exilado. No sentido mais amplo do termo, “ironia” implica dizer algo cujo real significado difere do conteúdo óbvio, às vezes chegando mesmo a sugerir o oposto do que é dito. (BLOOM, 2001, 182)

Aqui o grande crítico relativiza um pouco a importância da ironia para a literatura. Se de início asseverava que a obra de ficção não deixa de estar sujeita a algum nível de ironia, flexibiliza depois tal assertiva com a ressalva de que a ironia não é condição necessária e obrigatória do texto literário, nem está presente em todo ele, e o faz em boa hora, porque, com efeito, nem tudo que se afirme no artefato literário terá significação oposta ou bem diferente do que lá está expressamente dito, sobretudo em si tratando das fôrmas em prosa. Não o tem, no mais das vezes, pois do contrário toda a narrativa ganharia contornos de surrealismo ou de incoerência psiquiátrica. Importa, portanto, situar com precisão os pontos cruciais em que a ironia apresenta-se de fato nas obras, daí porque, antes de tudo, um bom crítico literário deve saber distinguir denotação e conotação, identificando qual delas prevalece em cada passagem do texto, pondo em evidência aquilo que o seu autor, por razões as mais diversas, preferira camuflar ou apenas sugerir, mediante o recurso a figuras conotativas ou alegóricas, em especial a ironia.
Por outros termos, essa ressalva de Bloom assegura-nos que os sentidos possíveis do texto literário, embora sejam múltiplos, não são “um andarilho exilado”, ou seja, não estão em todo e qualquer lugar onde os “engajamentos” e os compromissos prévios com “militâncias e ativismos” pretendam encontrá-los, além de ser uma arma poderosa para arrostar os adeptos das mais variadas ideologias. Esses militantes e ativistas infiltrados na academia, segundo Bloom, distorcem a obra literária, a fim de enquadrá-la nos seus esquemas preconcebidos de representação, ou de substituição da realidade. No combate que trava contra as análises literárias ancoradas em ideologias, diz Bloom:

Thomas Mann, o mais irônico dos grandes escritores deste século, já parece perdido. As biografias que surgem são alvos de resenhas que destacam o homoerotismo do autor, como se o único interesse que ele possa despertar é a constatação de ter sido gay, aliás, o que lhe assegura um lugar no currículo dos programas de Letras. É como priorizar no estudo de Shakespeare a sua suposta bissexualidade; o delírio da atual onda contrária ao puritanismo parece não ter limite. (BLOOM, 2001, p. 23)

Como vimos, Harold Bloom opõe-se obstinadamente às análises que, deixando de lado o exame objetivo das categorias literárias propriamente ditas (como a qualidade do recurso expressivo empregado para caracterizar as personagens, dando-lhes vida palpitante; para criar um narrador marcante e inusitado; para estabelecer um tempo e um espaço significativos; para tecer um enredo envolvente), enveredam-se pelo socialismo, pelo feminismo, pelo homoerotismo, pelo racialismo e por outras ideologias que, na sua visão perspicaz, infestam as apreciações literárias desde os decênios iniciais do século XX, distorcendo-as.
A ironia, quando presente na ficção romanesca de Machado de Assis, é um recurso fino e altamente valorativo, não se prestando, por isso mesmo, a ser mero mecanismo para desqualificação de seus admiráveis narradores, como irrefletidamente postula Luciane Reinke.
Seguindo uma linha interpretativa semelhante à de Gisélle Razera, embora sem mencionar expressamente a “angústia da influência” ou a “polêmica velada”, Carla Vianna, em sua tese de doutoramento, vislumbra no romance Quincas Borba nova resposta de Machado de Assis a O Primo Basílio.

Como já tratamos anteriormente, O Primo Basílio, romance publicado por Eça de Queirós em 1878, provocou intenso debate entre a crítica literária, tanto na brasileira quanto na portuguesa, uma vez que essa obra mobilizou o público leitor dos dois países. Diante do êxito de público alcançado por essa obra do autor português, Machado de Assis não passou incólume, já que veio a público problematizar questões estéticas presentes no romance mediante a veiculação de duas intervenções críticas que causaram celeuma na intelectualidade da época. Os textos críticos de Machado de Assis suscitam algumas interrogações que orientam a análise desenvolvida na presente discussão, uma vez que podemos perceber na narrativa de Quincas Borba uma provável relação intertextual com o mesmo romance que foi polemicamente criticado por ele. (VIANNA, 2012, p. 225-226)

Mais do que entrever o vínculo de intertextualidade entre esses dois romances, Carla Vianna fornece um dado relevante para a linha de investigação a que nos propusemos neste trabalho, qual seja: desde que polemizou com Eça de Queirós em 1878, a propósito da publicação de O Primo Basílio, Machado de Assis como que estabelecera uma estrutura básica fixa para as suas próprias produções, estrutura essa reproduzida de maneira indefectível nos seus romances publicados subseqüentemente, deixando a substância da variedade, em contraponto, a cargo do narrador e da focalização.
As ligações que os estudiosos citados já demonstraram existir, aproximando O Primo Basílio ora das Memórias Póstumas de Brás Cubas, ora do Quincas Borba, servem à nossa pesquisa, à medida que revelam uma continuidade entre os próprios romances machadianos da maturidade, continuidade essa que, a nosso sentir, existe de uma maneira bastante especial nos cinco romances que analisaremos a seguir.
No livro História Concisa da Literatura Brasileira, a obra de Machado de Assis merece especial atenção por parte de Alfredo Bosi. Analisando as Memórias Póstumas de Brás Cubas, ele ressalta os procedimentos de linguagem ali utilizados pelo autor a fim de, ante o sentimento dos contrastes, suscitar o humor pela subversão dos códigos tradicionais. Para ele, esta seria a mais bem-sucedida ruptura obrada por este romance:

Quem diz de uma paixão de adolescente que “durou 15 meses e 11 contos de réis”; ou do espanto de um injustiçado que “caiu das nuvens”, convindo em que é sempre melhor cair delas que de um terceiro andar; ou ainda, da fatuidade que “é a transpiração luminosa do mérito”, está na verdade operando, no coração de uma linguagem feita de lugares-comuns, uma ruptura extremamente fecunda, pois, roída a casca dos hábitos expressivos, o que sobrevém é uma nova forma de dizer a relação com o outro e consigo mesmo. (BOSI, 2003, p. 181)

Ainda no referido livro, tomando o Conselheiro Aires como fio condutor, Alfredo Bosi analisa conjuntamente os romances Esaú e Jacó e Memorial de Aires, vislumbrando neles o que seria, a seu ver, a filosofia machadiana:

Nem ódio nem amor. Lê-se, em Esaú e Jacó, uma confissão de fatalismo que explica a indiferença professada nas frases acima: “não se luta contra o destino: o melhor é deixar que nos pegue pelos cabelos e nos arraste até onde queira alçar-nos ou despenhar-nos”.
Menos do que “pessimismo” sistemático, melhor seria ver como suma da filosofia machadiana um sentido agudo do relativo: nada valendo como absoluto, nada merece o empenho do ódio ou do amor. Para a antimetafísica do ceticismo, a moral da indiferença. (BOSI, 2003, p. 182)

Para Bosi, como vimos, a filosofia de Machado de Assis seria o indiferentismo, que se sobreporia ao pessimismo acusado por outros críticos e consubstanciar-se-ia na ausência de ódios ou amores e na bovina resignação aos desígnios do destino. Não impugnaremos acirradamente esta formulação de Bosi, até porque ela, enquanto filosofia do Conselheiro Aires, está bem escorada em subsídios concretos veiculados pelos dois citados romances, embora não seja inatacável, levando-se em consideração que é possível discutir o interesse com que Aires acompanha o desenrolar dos fatos postos nas duas tramas. Percorreremos, porém, um caminho interpretativo um pouco distinto do de Bosi, haja vista que não identificamos a pessoa de Machado de Assis com a figura do Conselheiro Aires, nem entendemos que este seja, dentre todas as personagens de todos os romances, o privilegiado porta-voz daquele, sem embargo de reconhecer que toda personagem, a fortiori se se trata da que conduz a narrativa, traz algo de seu criador, propaga algumas de suas concepções, entretanto um não é o outro.
Não abstraímos uma filosofia geral machadiana a partir do exame de uma personagem específica, ainda que alçada à condição de narrador ou presente em mais de uma narrativa, mas construímos uma visão holística de seu romance da maturidade com base no estudo de todas as suas principais personagens, com ênfase na relação que mantenham com as duas temáticas cá investigadas, juntamente com a posição e o feixe de características dos cinco narradores.


2.1. A Polêmica em Derredor do Dom Casmurro

No exterior, coube à estadunidense Helen Caldwell, militante do partido político feminista, realizar, na obra machadiana, uma das “interpretações” de maior impacto. De fato, Caldwell (e na sua trilha os críticos que se lhe tornaram tributários), ao publicar em 1960 o discurso The Brazilian Othello of Machado de Assis, inverte, ou, antes, subverte por completo a trama do Dom Casmurro, com o intuito de promover uma campanha de absolvição de Capitu (que passaria a ser considerada uma pobre e inocente mulher apaixonada pelo marido representante do perverso patriarcado) e, naturalmente, a consectária acusação contra Betinho, tido como um machista burguês enfermamente cioso e caluniador que, acossado por sua consciência e procurando apaziguá-la, teria resolvido escrever suas memórias, nas quais distorceria maquiavelicamente os fatos, imputando à inocente esposa morta uma culpa só existente em sua transtornada mente de advogado ciumento.
Bem, antes de discutirmos com mais detença a citada obra de Helen Caldwell, é necessário investigar que espécie de discurso é o seu (o feminismo) e com que desiderato foi elaborado – o esforço ingente para “inocentar” Capitu e “condenar” Bentinho parece mui singelamente decorrer do fato de este ser “homem” e aquela, “mulher”.
No entanto principiemos pelas noções mais simples. Embora de início ocupe o universo da ficção, o artefato literário, uma vez acabado e vindo a lume, passa a fazer parte do mundo como um objeto real (posto encerre características peculiares, inclusive a dependência de um leitor), com existência autônoma e com a faculdade de exercer influência sobre a realidade que o gerara. Essa condição de objeto do mundo torna possível o estudo sistemático da obra literária, abrindo-se um ramo de exploração do conhecimento à maneira científica, preenchido pela atividade da crítica literária. Esta, tanto quanto possível em razão das suas especificidades, deve ser conduzida com a imparcialidade da ciência, em contraposição às paixões da ideologia.
A oposição visceral entre ciência e ideologia existe por virtudes de duas formas bem distintas e específicas de interagir intelectualmente com o mundo. As duas parecem ser necessárias à condição humana, tendo em vista que nenhuma delas, isoladamente – ou mesmo as duas em conjunto –, jamais conseguira dar resposta satisfatória a todas as angústias e incertezas, curiosidades e desejos do ser humano – animal complexo e contraditório, que tanto se nutre da realidade, quanto da ilusão.
Uma dessas formas de interação intelectual com o mundo investiga, descreve, analisa e procura entender a realidade como ela de fato é, independentemente da torcida pessoal dos investigadores – e aí estamos na zona de atuação da ciência, cujo objetivo é a obtenção de conhecimento sobre essa realidade; a outra busca elaborar um eloqüente discurso sobre a realidade, não tal como é, mas tal como os discursadores sonham ou desejam que ela seja – e aí estamos diante da atividade ideológica, cujo objetivo é a obtenção e o exercício de poder sobre as pessoas. Precisamente em virtude disso é que todo sistema ideológico, por intrínseca impossibilidade de aceitá-la sem comprometimento da própria condição de existência, nega e esconde a verdade.
A atividade ideológica, por sua vez, pode ser subdividida em dois ramos: um que busca o poder por meio da exploração de atividades religiosas; outro que o procura mediante a exploração de atividades políticas. Essa subdivisão não implica rigorosamente nenhuma oposição entre os dois ramos, mas apenas a existência de algumas especificidades sobre a fundamentação de cada crença (metafísica, no primeiro caso; utopia política, no segundo). Sim, a ideologia pressupõe, sempre, uma crença dogmática: em uma divindade; em um partido; em uma teoria apenas enunciada, mas nunca demonstrada; etc.
Em todas as sociedades modernas, mas notadamente onde já se estabeleceu a democracia, o ramo político da atividade ideológica é constituído por dois gêneros de partidos, reunindo sectários mais ou menos apaixonados e militantes: por um lado, a ramificação dos partidos políticos que buscam a formalização institucional a fim de que os seus membros disputem diretamente o poder pelos meios legais disponíveis (em geral eleições por sufrágio universal); por outro lado, a ramificação dos grêmios políticos que dispensam a formalização, preferindo disputar alternativa e informalmente o poder no seio de instituições de prestígio como as universidades e as igrejas, por exemplo. Esses dois gêneros de grêmios e partidos, para melhor exercerem o poder, naturalmente coligam-se uns com os outros em razão das afinidades e interesses comuns. Os partidos políticos do segundo tipo, os não formalizados, são de regra os mais radicais em suas postulações, pelo fato mesmo de que, para eles, o exercício do poder prescinde da formação de maiorias ou consensos e será tanto mais expressivo quanto maior for o domínio que exercer sobre a maioria psicologicamente amordaçada ou cerebralmente entanguida. Aliás, o exercício vertical desse poder é especialmente forte dentro do próprio partido, sujeitando os militantes a passar por processos de “lavagem cerebral”, que assim se tornam mais fanatizados ou enragés, tendo por principal conseqüência justamente a perda de nuanças psicológicas e a minoração da complexidade individual, de modo que se fazem bem mais previsíveis as suas ações e palavras, sentimentos e considerações, por serem uma reprodução de chavões partidários – e não são poucos os críticos literários que, assim diminuídos em sua primitiva potencialidade para o livre exame de qualquer questão posta, tornam-se meros reprodutores de chavões desse jaez.
Dentre os partidos políticos informais específicos, podemos apontar o “feminismo”, “o movimento homossexual”, “o movimento negro”, “o marxismo”, dentre outros tantos que fazem incursões políticas pelas mais diversas área das chamadas “ciências humanas” (crítica literária inclusa), como parte essencial de sua estratégia na luta pelo poder – e na seara da crítica literária no Brasil não há melhor lugar para exercitar a empolgação do poder do que o assim considerado “melhor romance” (Dom Casmurro) do reputado “melhor escritor” (Machado de Assis), como bem percebera Helen Caldwell.
Fora dessa “vontade de poder”, aliás, perde sentido a faina dos críticos literários das últimas décadas no propósito de fazer crer – como se se tratasse de processo judicial a ser vencido per fas et per nefas – na inocência da personagem Capitu, quando o que de fato lhes cabe, no particular, é desvendar fleumaticamente os mecanismos lingüísticos que constituem a função poética da linguagem literária e dão lastro à estética verbal da obra machadiana; revelar o sentido geral de sua obra e a maneira pela qual ele constrói e faz mover as personagens que a povoam; descrever a técnica expressiva e narratológica (casada à antiga[4] com a sutileza e a profundidade do pensamento) por meio da qual o grande literato produz o prazer estético e implementa as múltiplas possibilidades de construção de sentido para o seu texto. Por infelicidade, um trabalho assim não se coaduna com os queridos e desejados palanques político-partidários ou com o vaidoso e gratuito exibicionismo, chocando-se, pois, com as ocupações da crítica literária atual, cujos analistas, em estrugente maioria, são antes devotos da demagogia política, da erudição gratuita, da invencionice disparatada, que da simples ciência, do simples esclarecimentos dos fatos e sucessos literários. E sendo obrigado a citá-los (aos analistas), a título de “revisão de literatura” ou “fundamentação teórica”, ninguém passa incólume por essa discurseira ruidosa – talvez nem nós, que contra isso cá nos insurgimos com alguma veemência.
Naturalmente, embora se apresentem com um verniz acadêmico, nenhum desses partidos, formais ou informais, exerce atividade científica – e entendemos que a crítica literária deve ser uma atividade científica, na esteira do que, discutindo o advento da crítica literária no Brasil do século XIX e o sucedâneo da simples impressão pela apreciação rigorosa, sustenta Regina Zilberman: “a mudança da concepção sobre a atividade crítica, classificada como fazer científico, fundada em princípios e fiel a uma metodologia” (ZILBERMAN, 1989, p. 89). Não está Regina Zilberman sozinha. Também Silviano Santiago assim concebe (conquanto ele mesmo não consiga praticá-la) a crítica literária moderna, como podemos inferir destas palavras:

[...] a produção crítica e ensaística dos não especialistas se revelou insuficiente face às novas exigências de rigor teórico defendidas pela crítica universitária, atualizada pelos critérios de pesquisa em métodos de leitura (SANTIAGO, 2004, p. 165).

Esse caráter científico é uma das linhas divisórias entre o labor do poeta ou prosador (que cria a ficção literária desde seu modo singular de sentir e observar o mundo) e o trabalho do crítico literário que a analisa e examina objetivamente. Está aí implicado que nem todo discurso (ainda que eventualmente brilhante) que o crítico consiga artificiosamente tecer a propósito da obra é a verdade, ou simples leitura coerente, da obra em questão. Não raro é pura fantasia ideológica ou idiossincrática. Que Camões transfigure poeticamente um acidente geográfico em Gigante Adamastor é normal, aceitável e até desejável em literatura; que, no momento da análise literária, o cientista da literatura queira dar largas asas à imaginação e imitá-lo – como faz John Gledson a pretexto de interpretar deliradas alegorias – é algo com o qual não podemos resignar-nos, por mais engenhosa que seja tal “viagem” interpretativa, a qual, portanto, diz respeito apenas à pessoa do intérprete, à projeção que este faz de si mesmo, mas não à obra supostamente interpretada, além de atentar contra o princípio da objetividade que deve nortear o trabalho analítico.
Bem, voltando à oposição entre atividade científica e ideológica, esclareçamos que não é que um mesmo sujeito singular não possa desenvolver, paralelamente ao seu labor científico, uma ação religiosa ou política. Pode. O que acontece é que, quando tal sujeito estiver no exercício de uma atividade religiosa ou política, não estará fazendo ciência, e vice-versa. Ciência e ideologia são atividades não só contrapostas, mas mutuamente excludentes. Helen Caldwell discursa sobre o romance Dom Casmurro na qualidade de militante do partido feminista, de acordo com os interesses dessa agremiação informal, que não se confundem com a análise objetiva da crítica literária.
Vejamos a imagem de Bento Santiago por Caldwell (2002, p. 20): “Sem demora ele aparenta ser um homem sutil e, além de tudo, um advogado, cujas palavras convém ao leitor pesar cuidadosamente”.
Desde o início do seu discurso, Caldwell procura infirmar a credibilidade da personagem Bento Santiago, também narrador do romance, com argumentos que passam pela atribuição de sutileza a ele e pela frisada notação de que se trata de um advogado, sendo certo que, segundo afirma Caldwell, é conveniente desconfiar das pessoas exercentes de semelhante profissão. Analisando tal argumento, de logo vemos que Caldwell raciocina por meio de estereótipos e generalizações problemáticas e inconsistentes. Esse tipo de raciocínio, pela sua eficiência em arrebatar multidões, é reeditado continuamente nos discursos políticos ou apenas preconceituosos. Políticos de diversos matizes e épocas o empregaram. Para verificá-lo, basta substituirmos o termo “advogado”, presente no argumento de Caldwell, por termos como “homossexual”, “negro”, “judeu”, “burguês”, dentre outras dezenas de possibilidades; então, ninguém duvidaria de que estaríamos, respectivamente, diante de discursos hoje tachados de “homofobia”, “racismo”, “nazismo” e “marxismo”. Helen Caldwell, discursando sobre a personagem Bento Santiago, dá aos advogados o tratamento que um hitlerista daria um judeu – ou que um stalinista daria a um burguês – pressupondo-os, apenas pela sua condição de profissionais do Direito, sujeitos merecedores da desconfiança geral.
Para demonstrar sem paixão que Bentinho é indigno de confiança, Helen Caldwell deveria buscar, nas entranhas do Dom Casmurro, os elementos objetivos que pudessem sustentar sua análise, mas não o faz, preferindo, como vimos, enveredar-se pelo caminho do discurso de desqualificação subjetiva por estereótipos e generalizações apressadas, de tal modo que a circunspecção do narrador do Dom Casmurro, vista e sentida a cada capítulo do romance sem jamais se contradizer, mantém-se incólume.
Depois de assim racionar a propósito de Bentinho, Helen Caldwell increpa-o de “suspeito”, em face dos seus ciúmes:

Permitam-nos examinar os três “elementos principais” em Dom Casmurro e compará-los com suas contrapartes em Otelo. Uma vez que a culpa ou inocência de Capitu dependem inteiramente do testemunho de Santiago, cujo ciúme, por si só, já torna seu testemunho suspeito, irei postergar o elemento Desdêmona para os últimos capítulos e tomar no momento presente os elementos Otelo e Iago. (CALDWELL, 2002, p. 32)

Bentinho de fato é um tanto ciumento, o texto literário do Dom Casmurro assim o afirma; e Helen Caldwell dá-lhe crédito neste como em outros pontos que lhe parecem favoráveis à defesa da “sua cliente”, mas não lho dá, quando a narrativa desfavorecesse a suposta inocência de Capitu, no que incorre em incoerência – ou esperteza – que de qualquer sorte afronta a economia interna do texto machadiano.
Ora, pois! Precisamente ao avesso de que deseja fazer crer Helen Caldwell no seu discurso político androfóbico com verniz de crítica literária, em termos rigorosamente lógicos, o fato de um dos cônjuges manifestar ciúmes, por si só, não torna o outro necessariamente inocente ou culpado (até porque alguma graduação do ciúme, em algum momento, faz-se presente em quase todos os liames amorosos do mundo civilizado. Indo além: o ciúme, tal como se apresenta ao longo da prosa machadiana da maturidade, jamais é um tema autônomo, subsistente por si mesmo, não sendo senão, via de regra, um desdobramento ou uma nuança subsidiária da temática geral da comborçaria ou rivalidade fraternal masculina, de modo que os ciúmes dos maridos nunca são gratuitos). Desta forma, tal inocência, ou culpa, não sendo determinável unicamente com arrimo em manifestações de ciúme, deve ser, com critério e minúcia, averiguada na realidade concreta sob exame[5].
Para Helen Caldwell, que se põe na posição de advogada de Capitu[6] e cujo estratagema de defesa consiste na judicialização da análise literária, reconvindo de modo a fazer de Bentinho “o verdadeiro réu”, toda a narrativa resume-se a “nisto devemos crer” e “nisto não devemos crer”, olhando para o romance como um consumidor olha para as prateleiras do supermercado e escolhe os produtos que deseja levar para casa, ignorando todos os demais, como também a seqüência e a organização geral das prateleiras, porém, ainda assim, pretender fornecer a interpretação global do romance.
Ela parte do pressuposto de que o narrador é suspeito, sem, contudo, apontar, no romance em questão, quais as passagens que infirmam a sua idoneidade narrativa ou que o desmentem. Entendemos que, para o analista literário, não basta afirmar “isso” ou “aquilo” sobre a obra, sendo imprescindível indigitar, na própria obra, onde está o “isso” e o “aquilo” – no caso, ela deveria apontar e demonstrar quais seriam as passagens do romance que teriam sido adulteradas pelos ciúmes de Bentinho, ônus do qual não se desincumbe.
Ainda quanto à problemática do ciúme, Silviano Santiago diz – em um reducionismo estarrecedor e embasando-se subservientemente na citada obra de Helen Caldwell, então no fastígio e a que Silviano não consegue arrostar – que a história de Bentinho, Capitu e Escobar “é antes estudo do ciúme, e apenas deste” (SANTIAGO, 1978, p. 31). É necessário analisar diretamente o Dom Casmurro, a fim de saber se ele é de fato só isso ou se é algo mais, que os antolhos não permitiram ver ao crítico.
Outro ponto para lá de inconsistente no discurso de Helen Caldwell é a leitura do Dom Casmurro como simples transposição do Otelo, como se fora mera reedição da tragédia de Desdêmona. De fato, o narrador-personagem do Dom Casmurro alude algumas vezes à peça de Shakespeare, a que, aliás, assistiu (de resto, já pelo menos desde as tramas urbanas de José de Alencar era comum, contanto que não fossem de humilde posição econômica, as personagens romanescas assistirem à encenação de peças européias nos teatros da Corte brasileira). Porém, de qualquer sorte, tal narrador alude ou cita outras tantas obras ou autores, a exemplo de romances de Walter Scott, ou passagens bíblicas, ou ainda a Divina Comédia. Estas alusões, tout court, não tornam a obra de Machado cópia de nenhuma outra.
De mais a mais, não há entre o Dom Casmurro e o Otelo, definitivamente, nem a mais leve e ligeira sombra da correspondência postulada pela leitura anglocêntrica de Helen Caldwell.
Primeiro, porque Capitu, por sua indubitável obliqüidade e dissimulação, não se confunde nem um pouco com a inocência cândida e certa de Desdêmona. Ora, enquanto esta – movida unicamente pelo amor que Otelo lhe inspirara, ao contar-lhe as tribulações e vicissitudes da vida guerreira – sacrifica-lhe a residência na pátria, a bênção paterna (casando contra o gosto e a vontade do pai), a presença dos amigos, as afinidades de raça e de faixa etária, os ricos pretendentes, a confortável e privilegiada condição de filho único de um nobre senador Veneziano, tudo para acompanhar o amado marido nas incertezas e incomodidades da guerra – aquela, sem nenhum sacrifício e mobilizada por um feixe complexo de pretensões, sentimentos e interesses, contrai um casamento vantajoso, aprovado e aplaudido por todos os seus parentes e amigos.
Segundo, porque, no enredo machadiano, não há nem sombra de uma intriga capciosa, armada por um sujeito perverso e despeitado, fingido e maquiavélico, como é o alferes Iago, que por meio da incriminação de uma mulher sem dúvida inocente, pretende dar vazão ao seu rancor gratuito, à sua maldade orgânica e à sua ambição sem mérito.
Terceiro, porque nem mesmo os ciúmes de Bentinho são exatamente iguais ou simplesmente comparáveis aos furiosos e extremados zelos de Otelo, seja no caráter, seja na extensão, seja na agudeza[7].
Sentimos, como já dito, um vasto anglocentrismo no discurso da feminista norte-americana, que interpreta o conjunto da composição de Machado de Assis quase exclusivamente à luz da literatura inglesa, notadamente pela obra de Shakespeare, o que constitui um reducionismo com o qual dificilmente poderíamos compactuar. Vejamos:

O Otelo de Shakespeare aparece no argumento de vinte e oito narrativas, peças e artigos. Otelo não foi a única peça de Shakespeare da qual Machado se serviu: Romeu e Julieta serve de trama para um romance e nove contos; o personagem Hamlet aparece um pouco por contaminação – mesmo quando se está tratando de Otelos; Ofélia, Jaques, Caliban, Lady MacBeth e outros personagens ressurgem miraculosamente nos subúrbios do Rio de Janeiro. Mas detenhamo-nos, neste trabalho, em Otelo e Dom Casmurro. (CALDWELL, 2002, p. 18-19)

Caldwell não está muito distante de formular, contra Machado de Assis, uma acusação de plágio. Acusação improcedente, pois os dados apresentados por ela não são demonstrativos de suas afirmações, sobretudo porque lhes falta referencial de relatividade. Se Machado de Assis houvesse escrito umas quarenta ou cinqüenta “narrativas, peças e artigos”, o número “vinte e oito” e a expressão “um romance e nove contos”, apontados por Caldwell (e desde que verdadeiros), poderiam ser significativos e até, talvez, corroborar em parte suas asserções. Ocorre, porém, que as “narrativas, peças e artigos” machadianos contam-se na casa das várias centenas, quase um milhar (só contos são cerca de duzentos e é bem maior o número de trabalhos publicados profissionalmente ou em colaboração com periódicos), de tal maneira que esse dado (vinte e oito, mais um, mais nove), cotejado com o todo (várias centenas ou um milhar), torna-se pouco relevante, não se prestando à comprovação de que fosse Machado de Assis simples tributário do célebre dramaturgo inglês – e nem sabemos se seus números são verdadeiros, pois Caldwell não transcreve as passagens dos escritos machadianos que lhes dão lastro.
De resto, essas obras de Shakespeare não “servem de trama” para as obras do brasileiro, mas são apenas referidas ou aludidas, aliás, menos do que tantas outras obras, de tantos outros autores, de variada nacionalidade, que o anglocentrismo de Caldwell não lhe permitira entrever. Nem há autor que seja absolutamente original – todos mais ou menos degustam as iguarias do banquete literário dos grandes autores do passado ou das tradições orais do povo, e o próprio Shakespeare não é exceção, sobretudo porque a composição de suas principais tragédias, no mínimo, é francamente tributária de histórias que há séculos corriam o continente europeu.
Em verdade, na “análise” de Caldwell o grande dramaturgo inglês torna-se onipresente na obra machadiana, não porque ele de fato o seja, mas porque a paranóia da feminista anglocêntrica assim o torna, para satisfação de seus interesses partidários. No concernente ao romance Dom Casmurro, em particular, Helen Caldwell, a partir de algumas menções e alusões, como dissemos acima, interpreta-o quase como uma simples e subserviente adaptação do Otelo, de Shakespeare:

O título desse capítulo é “Uma ponta de Iago”; desse ponto em diante, o Otelo-Santiago toma para si também o papel de Iago, manipulando seus próprios lenços para atiçar o furor de seu próprio ciúme. O Iago inicial – José Dias – reverte gradualmente sua opinião sobre Capitu, trabalha a favor de sua união com Bentinho. (CALDWELL, 2002, p. 25)

Aqui, como no mais, Helen Caldwell analisa o Dom Casmurro não como ele é (respeitando sua coerência interna), mas como ela desejaria que ele fosse, de modo a atender às exigências de sua militância política. Nesse sentido, causa espécie o caráter perfunctório e fantasioso da leitura da personagem José Dias realizada por ela – para não falarmos de Bentinho, objeto central de sua androfobia. Ora, oportunamente veremos, quando levarmos a efeito a investigação sobre este romance, um pouco de quem seja o agregado José Dias, que em nada se confunde com Iago.
Da mesma forma, a Capitu que emerge do discurso de Helen Caldwell tem bem pouco ou nada que ver com aquela personagem que povoa a diegese do romance machadiano. Vejamos:

Como uma boa esposa luso-brasileira, ela nunca “contraria” Santiago.
Mas a verdadeira motivação de todos os atos de Capitu é o seu amor, seu ilimitado amor por Santiago, e o orgulho que tem desse amor. É o seu amor que fortalece a união conjugal. (CALDWELL, 2002, p. 107)

Aqui, uma vez mais!, estamos diante não do que efetivamente há no Dom Casmurro, mas daquilo que, pela interpretação delirante que faz com amparo no seu anglocentrismo e na ideologia do seu partido político, Helen Caldwell gostaria que nele existisse, como forma de igualar, à força, Capitu e Desdêmona. Veremos oportunamente se Capitu é ou não uma cândida e apaixonada heroína romântica, e se seus passos são ou não guiados tão só por um “ilimitado amor”, ou se tal sentimento é mesmo “a verdadeira motivação de todos” os seus atos, como quer fazer crer o partido feminista norte-americano. Reconhecemos, entretanto, que Capitu é uma personagem fascinante e é natural que muitos críticos, enamorados dela, queiram ser seu advogado ou fazer dela símbolo partidário, na impossibilidade de levá-la ao altar em segundas núpcias...
O estratagema de Helen Caldwell para inflar artificialmente a dúvida e amortecer até as mais varonis conclusões da crítica literária objetiva consiste no seguinte: destacar de forma seletiva um ou outro ponto um tanto mais elíptico da narrativa, ainda que pouco ou nada relevante (até porque seria de todo inverossímil que, em um relato memorialístico, o narrador se recordasse de tudo); atacar, da maneira mais apaixonada, os principais estudos pregressos, ainda que apenas com argumentos baseados em estereótipos; afirmar, de forma categórica, passional e com toda a convicção, exatamente o inverso do que reside expressamente escrito em cada página da obra, assassinando sua coerência interna; inventar, arbitrariamente, uma identidade entre o Dom Casmurro e a tragédia de Otelo e Desdêmona; e, last not least, ignorar sistematicamente o peso de todas as evidências e estudos em sentido oposto, inflando artificial e exacerbadamente eventuais pequenas incertezas associadas ao estilo do autor, à técnica narrativa empregada e ao próprio fazer literário.
Essa alucinação interpretativa, a despeito de ser totalmente infeliz e improcedente, pôde alcançar sucesso acadêmico no Brasil ou porque simplesmente veio do estrangeiro (não vencemos ainda o nosso velho “complexo de vira-latas”) ou porque encontrou apoio irrestrito na coligação de partidos políticos informais que já então dominavam amplamente as faculdades de ciências humanas, impondo a alunos e professores a sua visão ideológica, ainda quando escandalosamente dissociada da verdade.
Aliás, o acirrado e profundo mergulho em doutrinas ideológicas, o não pensar senão sob as estritas balizas de uma ideologia absorvente e paranóica – base onde fora gestada a irracionalidade que levara Helen Caldwell a deflagrar, contra o romance machadiano, esse grave crime interpretativo chamado O Otelo Brasileiro de Machado de Assis – é, guardadas as devidas proporções em termos de conseqüências práticas, rigorosamente o mesmo fenômeno que no curso dos tempos vem motivando o cometimento de crimes hediondos contra a humanidade, a exemplo das matanças ocorridas nas incontáveis “guerras santas” dos últimos séculos ou dos genocídios perpetrados por Stálin, Mao Tsé Tung, Hitler e outros criminosos de menor espectro, mas igual irracionalidade alucinada de base ideológica.
Enfim, analisamos aqui a “crítica literária” feminista pela importância que auferira com a publicação, por Helen Caldwell, do Otelo Brasileiro de Machado de Assis. Em que pese às críticas que cá lhe fizemos – as quais dizem respeito à sua atuação no âmbito literário –, entendemos que o feminismo é um partido político cuja existência é tão legítima quanto a de qualquer outra agremiação ideológica (política ou religiosa), contanto que não exorbite de sua área de atuação; porém, seja como for, não condescendemos com a ingerência do proselitismo político ou religioso na atividade científica.
Por outro lado, se houvesse uma “crítica literária catolicista”, com semelhante repercussão e a subseqüente influência acadêmica angariada pela crítica feminista, seria aqui igualmente considerada, e é provável que então tivéssemos que analisar a seguinte leitura do Dom Casmurro, em que Capitu quase desapareceria: “Esta obra é uma grande parábola sobre a necessidade de todos sermos tementes e obedientes a Deus, para gozarmos da Sua bem-aventurança e fugirmos a Seu castigo. Dona Glória prometera seu filho a Deus, porém, tentada pelo Inimigo, roubou-o ao serviço divino e deu-o ao mundo. Deus, para castigar a ofensa e utilizando-se da vizinha da família como instrumento da punição, fez que o filho de dona Glória padecesse na vida mundana a mesma ausência de filhos próprios que teria no casto serviço da Santa Madre Igreja de Deus, substituindo-se, contudo, a honra deste pela desonra de marido enganado”. Esta suposta leitura catolicista, aqui confeccionada apenas para efeito de ilustração, seria tão boa quanto a leitura feminista de Helen Caldwell ou qualquer outra das centenas de leituras ideológicas que um cérebro imaginoso é capaz de construir – todas igualmente arbitrárias e destituídas da objetividade científica.
Aliás, ad argumentandum, essa interpretação catolicista está muitíssimo menos desautorizada no romance do que a feminista ou a marxista, tendo em consideração a não desprezível presença, no Dom Casmurro, de personagens, figuras e alusões ao universo eclesiástico cristão. Entretanto, o que aí vai já basta à verificação de que, engolfado em uma prévia doutrina de representação utópica do mundo, é relativamente fácil, para um político ou ativista de talento mediano, ir deformando pouco e pouco a obra literária até fazê-la enquadrar-se no seu sistema ideológico pré-moldado. Porém, essa conduta sempre esbarra no fato de que um grande monumento literário, como o Dom Casmurro, traz em si uma imensa capacidade de resistência às interpretações fantasiosas ou deformadoras, razão pela qual vem sobrevivendo bem aos sucessivos ataques dos militantes políticos infiltrados nas letras.
E por falar em doutrina prévia de representação utópica do mundo, assim é que um Roberto Schwarz, tal qual Helen Caldwell (mudando apenas de partido político informal: saindo o feminista e entrando o marxista), nos livros Ao vencedor as batatas, Um mestre na periferia do capitalismo e Duas meninas, procura encaixilhar a obra machadiana nos esquemas mentais da ideologia marxista, de tal modo que ele, de fato, não lê o que foi escrito por Machado de Assis, senão o que ele gostaria que Machado de Assis houvesse expressado nessas obras, se este não fosse infenso às teorias utópicas – “teorias do papel, válidas no papel, mancas na prática” (ASSIS, 2007, p. 150) – como o nosso superno prosador escreve no conto A Sereníssima República. Eis a verdadeira grandeza de Machado de Assis, o qual, com perfeição e parcimônia, consegue com duas palavras e uma metáfora dar, ironizando-as, a exata definição das doutrinas políticas nefelibatas, como a do marxismo ao qual está em subsunção a leitura de Roberto Schwarz. Isso porque não emerge dos romances machadianos nenhum propósito primordial no sentido de criticar alguma espécie de “elite” ou de “patriarcado”, mas suas narrativas desnudam com finura e mordacidade o ser humano em si mesmo, independentemente de qualquer recorte “social” arbitrário.
No entanto Helen Caldwell, incansável, afirma ainda que o enredo dos romances machadianos possuiria como base única “o drama resultante de naturezas contrastantes”, atribuindo ao próprio Machado tal asserção:

Essa é a história de Santiago – uma história de traição pela mulher com o melhor amigo. Mas Machado de Assis (em contraste com sua criatura Santiago) não tinha o hábito de escrever romances de intriga. A base de seus romances, como ele mesmo afirma em mais de uma ocasião, é mostrar o drama resultante da inter-relação de naturezas contrastantes. Ele acredita evidentemente ser esta a única base para o enredo. (CALDWELL, 2002, p. 31)

Nosso trabalho procurou contribuir no sentido de avaliar que, se de fato há uma estrutura básica única para o enredo machadiano, sobretudo na maturidade romanesca, ela poderia estar na recorrência temática da comborçaria ou rivalidade fraternal masculina e da infecundidade masculina, e não naquilo que alega a feminista.
Conquanto carente de base racional e da imparcialidade científica, o discurso de Caldwell exerceu (e ainda exerce) grande influência nos subseqüentes trabalhos de crítica literária voltados para a obra machadiana, em especial para o Dom Casmurro, em uma prova de que a paixão é realmente mais forte que a razão, como diria Medéia. O resultado disso são análises literárias eivadas de contradição, ainda quando realizadas por críticos de primeira água, como Alfredo Bosi. Para este, na análise de faz do romance de Bentinho, Escobar e Capitu:

Falta o adolescente Bentinho que, traído pela mulher amada e pelo melhor amigo, virou Dom Casmurro. Na verdade, um romance de Machado não se deve resumir: e como fazê-lo se o que neles importa não é o fato em si, mas a constelação de intenções e de ressonâncias que o envolve? Ainda que Capitu não houvesse cometido o adultério (e o romance não dá nenhuma prova decisiva), tudo nela era a possibilidade do engano, desde os olhos de ressaca oblíquos e dissimulados, que se deixavam estar nos momentos de raiva “com as pupilas vagas e surdas”, até às mesmas idéias que já em menina se faziam “hábeis, sinuosas, surdas, e alcançavam o fim proposto, não de salto, mas aos saltinhos”. (BOSI, 2003, p. 181)

Como conciliar a afirmação de que Bentinho fora traído “pela mulher amada e pelo melhor amigo”, com esta outra, de que o romance não dá nenhuma “prova decisiva” do adultério? Ou bem se assevera que Bentinho foi traído, não havendo, portanto, dúvida quanto ao adultério; ou se declara que não há “prova decisiva” da ocorrência deste, e, portanto, não se pode afirmar a existência de traição. Aliás, dupla traição (conquanto a perfídia de Escobar, curiosamente e ao contrário da de sua amante, jamais haja merecido maior debate ou simples direito a advogado). É de ressaltar que cá não questionamos o “Ainda que Capitu não houvesse cometido o adultério”, uma ressalta pertinente em análise literária, mas a contraditória afirmação subseqüente, a qual, no particular, configura-se hoje uma concessão quase obrigatória ao discurso de Caldwell, embora a ela nem todo crítico literário brasileiro submeta-se, como é o caso de Massaud Moisés:

Figura trágica, Capitu é o símbolo da dissimulação: criminosa e vítima ao mesmo tempo, atada a qualidades que a perderam, é mais um anátema que bênção a sagacidade com que manobra o seu pequeno mundo doméstico. Incapaz de amar, mesmo a Escobar, de quem teve o filho que Bentinho não lhe podia oferecer, a síndrome da maternidade apenas disfarça o trágico destino de sibila, a cumprir ordens míticas. (MOISÉS, 2001, p. 95)

Como vimos, Massaud Moisés, na passagem reportada, ao salientar a impossibilidade reprodutiva de Bentinho, sepulta qualquer dúvida concernente aos amores subterrâneos de Capitu e Escobar e, assim, não desposa a tese revolucionária da feminista norte-americana Helen Caldwell. De resto, a filiação de Ezequiel é um ponto sobre o qual a crítica literária tem estabelecido renhida controvérsia, que enfrentaremos mais detidamente em capítulo próprio. No mais, Moisés assevera ainda a incapacidade de Capitu para o amor, afirmação que tromba frontalmente com o discurso de Helen Caldwell, para a qual, como já vimos, Capitu é uma amantíssima esposa luso-brasileira, movida unicamente por amor e vítima inocente dos ciúmes doentios do marido insensível.
No entanto, em que pese à contradição, Alfredo Bosi fala expressamente na ausência de “prova decisiva” do adultério de Capitu (e já agora não temos mais como escapar à judicialização da análise literária). O que é “prova decisiva”? Ele não explica. A princípio parece algo subjetivo, mas podemos pensar que prova decisiva é aquela que não deixa margem para dúvidas, uma espécie de “prova cabal”. Existe isso? No mundo das abstrações matemáticas acostumamo-nos a crer que exista (embora um céptico empedernido, ainda aí, afirme suas dúvidas), mas, e no mundo material? Será que aquilo que aparece diante dos nossos olhos é prova cabal, decisiva e indubitável seja lá do que for? Nossos sentidos são indefectíveis? Será que se todos os magistrados exigissem a exibição de prova cabal, algum réu seria condenado em algum lugar do mundo? Apesar de ninguém o discutir, será que existe “prova decisiva” de que Virgília cometera adultério com Brás Cubas? Será impossível que o “defunto autor” haja inventado tudo aquilo que lá vai narrado nas Memórias Póstumas de Brás Cubas só por vindita, já que fora preterido em sua pretensão matrimonial? Afinal de contas, o que ali vai é a “sua versão dos fatos”, como dizem os chicaneiros travestidos de críticos literários... Em verdade, em se querendo duvidar, não restará nem uma única certeza neste mundo – nem no outro. Nem mesmo o “cogito” cartesiano salvar-se-á.
Os exames de DNA, enquanto “prova decisiva”, estão muito em voga e diante deles, se positivos, nenhum homem escapa de pagar pensão alimentícia. Sobre tais provas, diz o cientista Sérgio Danilo Pena:

A sonda F10 (...), adaptada para um procedimento não-radioativo com quimioluminescência, detecta de 15 a 20 fragmentos variáveis de DNA maiores que 4 kb por indivíduo (...) e sozinha permite uma probabilidade média de exclusão de 99,98%. A associação da F10 com duas outras sondas multilocais [DNF24 e (CA)n] permite uma poder de exclusão superior a 99,999999%. (PENA, 1997, p. 234)

Isso é prova cabal? Não é, embora seja o que disso mais se aproxime no mundo material como agora o conhecemos. No primeiro percentual apresentado pelo lúcido cientista, há em média dois erros a cada dez mil investigações e, mesmo no segundo, ainda resta cerca de um erro a cada cem milhões de casos, e isso considerando que nenhum pesquisador da equipe jamais adulterará um exame desses (confiar na ética do ser humano nunca foi sem problemas). Porém, com arrimo em um exame assim, dezenas de homens são diariamente condenados ao pagamento de prestação alimentícia. Por quê? Porque nenhum julgador racional, para firmar sua convicção, procura “prova cabal” – só quem trabalha com semelhantes exigências são, novamente, os cépticos mal-intencionados e os advogados chicaneiros, com vistas a tentar de alguma maneira beneficiar-se do milenar instituto do in dubio pro reo.
Ora, certa margem de dúvida e de incerteza é inerente às coisas deste mundo, por isso mesmo é que, ao invés da prova cabal, a postura geral do juiz prudente, em qualquer caso, é procurar saber se, perante o conjunto dos testemunhos e indícios materiais coligidos, há dúvida razoável, não desprezível, quanto à autoria dos fatos imputados ao réu, ou uma probabilidade não insignificante de ser ele inocente, considerando a normalidade da vida de um ser humano e o concurso de circunstâncias que regularmente envolvem suas ações. Não havendo uma dúvida ou uma probabilidade assim, não resta senão resignar-se às evidências.
Deixando de lado, pois, a insensata procura por uma impossível “prova cabal”, que não pode ser encontrada nem sequer em um exame de DNA (o qual adquire credibilidade apenas por tornar insignificante e desprezível a margem de incerteza), veremos, no caso de Capitu e Escobar, com amparo positivo no exame minucioso das circunstâncias e razões trazidas pela prosa machadiana, se há ou não dúvida razoável quanto à existência da possível ligação amorosa clandestina.
Augusto Meyer, notável admirador e estudioso da obra de Machado de Assis, assim se pronuncia sobre Capitu, atribuindo-lhe a ela, e não a Bentinho, o estigma da insensibilidade:

Capitu atravessa o livro numa névoa de mistério. (...) A subterraneidade profunda que o leitor adivinha através da imagem superficial, passa apenas por três momentos de erupção incontida: quando se revolta contra a teimosia de D. Glória, quando se despede do cadáver de Escobar e quando, enfim, diante da acusação viva que é o filho, confessa – confessa? – num relancear de olhos a sua culpa. No entanto, êsses três momentos fugitivos em nada alteram a impassibilidade da sua hipocrisia, que é de uma consistência estrutural. (...) Capitu mente como transpira, por necessidade orgânica. (MEYER, 1947, p. 60-61)

Segundo ele, Capitu é uma personagem nebulosa, e a narrativa, mostrando-a assim, corrobora o caráter dissimulador e escorregadio da nora de dona Glória. Augusto Meyer aponta a raridade e a brevidade dos instantes em que Capitu, diante do narrador-personagem (e, ipso facto, do leitor), emerge do subterrâneo e revela-se tal como é, logo se recolhendo de novo à sua estratégia de ação e de autodefesa, que passa necessariamente pelo fingimento, à maneira de Tartufo. No entanto, segundo podemos inferir de suas palavras, há dúvida quanto ao fato de o último gesto de Capitu ser ou não uma confissão de culpa, não obstante seja certo, para Meyer, que o engano e a arte do logro em Capitu, de tão praticados e assimilados, tornaram-se algo natural nela, uma segunda pele, incorporando-se-lhe de tal modo que ela com facilidade alcança manter-se impassível, ainda quando diante da acusação mais tremenda.
Em ensejo propício veremos, com espeque nas próprias narrativas machadianas, qual é o feixe de motivos dessa exibição de impassibilidade (desde já adiantamos que não é apenas por “necessidade orgânica”, pois ela dificilmente mentiria assim se não houvesse algo mais em causa) e a importância desses “momentos de erupção incontida”.
Ganharam nomeada nas últimas décadas as publicações de John Gledson sobre a obra de Machado de Assis, sobretudo a propósito do Dom Casmurro. O seu pressuposto fundamental é no sentido de que o narrador deste romance é um “enganador”. Essa afirmação de Gledson é tão absolutamente crucial, tão cardinal, que um crítico literário sério, ao formulá-la, dedicar-lhe-ia até mesmo metade do livro, só para documentá-la bem e ampará-la com toda a firmeza, tão formidáveis são suas conseqüências e seus desdobramentos na análise. Todavia, e surpreendentemente, não o faz, de modo que essa afirmação capital jaz em profundo estado de leviandade.
Para além disso, como aludimos algumas páginas antes, sua interpretação baseia-se em alegadas “alegorias” por sob as quais o romancista teria escamoteado a verdade.
Vejamos se há razões para isso. Quanto ao narrador, diz ele:

Primeiro, ele é, evidentemente, um enganador que está tentando nos persuadir de uma dada versão dos fatos de sua história; mas, visto que também tenta persuadir a si próprio (e talvez por ser um bom advogado), podemos confiar nos fatos da maneira como nos são fornecidos (se o termo “fato”, um tanto vago, puder ser aceito por enquanto). (GLEDSON, 1991, p. 21)

Prima facie, chama a atenção o destacado emprego do advérbio “evidentemente”, dando a entender que é claríssima – e, por conseguinte, indiscutível e axiomática, porque por todos facilmente percebida – a sua alegação de que o narrador é um enganador. Já aí estamos diante de uma intimidação ao leitor, que, como é natural, não quererá ser o único a não ver aquilo que é tão auto-evidente que só uma obtusidade mórbida poderia deixar de percebê-lo. Ocorre que tal situação do narrador não é tão evidente assim, como pretende fazer crer Gledson, o qual, porventura, utiliza tal método intimidatório a fim de desobrigar-se da incumbência de fornecer subsídios concretos com que fundamente a sua suposição – sem os quais, de resto, semelhante alegação permanece inteiramente infundada (ou fundada no incrível estereótipo do advogado, repetindo Helen Caldwell).
No decurso de seus presunçosos e enfadonhos livros, Gledson não aponta, na obra machadiana, uma única contradição, incongruência ou incoerência significativa por cujo condão pudéssemos afirmar convictamente que o narrador do Dom Casmurro engana-se ou engana-nos com tal ou qual declaração, deste ou daquele capítulo. Ao invés disso, tomando solertemente o engano como já misticamente “provado”, segue argumentando que o narrador dá-nos apenas determinada “versão dos fatos” – como se a narrativa não nos desse o fato enquanto verdade literária, e houvesse outra versão possível, que desmentisse a primeira (o adultério de Virgília e Brás Cubas também é apenas uma “versão dos fatos”?). Ora, em literatura de ficção, ao inverso do que ocorre no universo comum em que vivem as “pessoas reais”, não há uma versão dos fatos, passível de ser desmistificada por ulteriores versões; há unicamente os fatos apresentados ou aludidos na obra, os quais podem ser interpretados, mas nunca desmentidos, pois são tudo, peremptoriamente. O ulterior advento de uma nova “versão dos fatos”, em formato de obra literária, será outra criação, da qual a primitiva permanecerá de todo independente; e se vier em formato de crítica literária, será puro delírio, pois esta não possui o condão de modificar a estrutura e a coerência interna da obra.
Aliás, muitas ideologias políticas descrêem de fatos, acreditando apenas na existência de versões – como os nazistas, para os quais uma mentira repetida mil vezes tornava-se uma verdade. Lego, ou, antes, triste engano, pois os fatos em si mesmos jamais poderão ser alterados. Uma mentira ou uma versão enganosa deles, ainda quando repetida um milhão de vezes e crida por um milhão de anos, nunca deixará de ser o que é – uma mentira. Uma vez vindo à tona a verdade, todos os precedentes séculos em que vigera a versão falaz dos fatos tornam-se objeto de admiração escarninha ou até de piedade – que o digam os defensores do geocentrismo ptolomaico. Essas ideologias trouxeram seu ideário também para a análise literária, na qual igualmente descrêem dos fatos (as obras em si), para dar crédito apenas a suas inventadas versões (as interpretações fantasistas que fazem dessas obras com base em seu receituário político ou religioso).
John Gledson mantém-se firmemente cativo desses procedimentos ideológicos, dispensando-se de arrolar provas e descuidando-se da realidade que o cerca (o artefato literário). Por exemplo: a sua suposição de que o narrador escreve para persuadir a si mesmo e ao leitor, ele também não a sustenta com elementos que haja expressamente encontrado no romance, e de novo, como sempre, Gledson esquiva-se de demonstrar, conscienciosamente, com supedâneo em quais dados concretos, presentes na obra, elabora as suas suposições e constrói as suas mirabolantes ilações.
Como se tudo isso não bastasse, John Gledson fornece-nos prova bastante de que ele mesmo é que é um embusteiro, desmerecedor de confiança, pois suas palavras são francamente contraditórias e incoerentes. Demonstremo-lo: tendo deixado genericamente expresso que o narrador do Dom Casmurro é um enganador cujo intuito é convencer o leitor e a si mesmo, um instante depois afirma que “podemos confiar nos fatos da maneira como nos são fornecidos”. Ora, ou bem Bentinho é um enganador (e, portanto, não podemos confiar nos fatos tais como os apresenta), ou ele não o é (e, portanto, podemos confiar). Em termos rigorosamente lógicos, não é possível uma terceira situação para ele. Tertium non datur. No mínimo, é prova de confusão mental pedir que confiemos nos fatos tais como aduzidos por um reputado enganador.
Suas graves contradições e incoerências, porém, não param por aí. Tendo afirmado que “evidentemente” Bentinho é um enganador (e neste “evidentemente” não cabe dúvida, pois a nitidez é total), dois parágrafos adiante, discutindo agora uma possível intervenção direta de Machado de Assis na narrativa (autodiegética) do Dom Casmurro, declara, no particular, que “pouco ou nada, no Dom Casmurro, é tão nítido assim, mas a intervenção do autor ainda está presente de modo subjacente em toda a obra” (GLEDSON, 1991, p. 21).
Ora, ou é bem verdade que o caráter do protagonista pode ser percebido “evidentemente” na narrativa, ou é bem certo que nesta há “pouco ou nada” que seja nítido (nem se alegue que justamente o caráter do protagonista possa incluir-se nesse “pouco ou nada”, pois seria absurdo), mas nunca as duas coisas ao mesmo tempo, que, mutatis mutandis, equivale a dizer que uma mulher está grávida e, simultaneamente, que ela não está grávida... Ou ela está, ou não está; ou o romance deixa perceber com nitidez a questão mais relevante ou não o deixa. Não há uma terceira hipótese. Tertium non datur, de novo. Essas contradições e incoerências reiteram-se no decurso das cansativas páginas de John Gledson, corroborando inelutavelmente, não o caráter enganador da personagem machadiana encarregada da narração, mas a total inépcia do crítico literário em questão.
Outro vezo de Gledson é interpretar o romance machadiano tomando uma ou outra passagem particular como sendo uma “alegoria”, para cuja interpretação apega-se, com total arbitrariedade, a uma palavra ou frase que, sem embargo da irrelevância na economia da narrativa, são adrede ou randomicamente pinçadas da obra e com isso embarca Gledson em uma larga e laboriosa invencionice, viajando para galáxias longínquas, mui distantes da ação da narrativa. Exemplifiquemos: ele diz existir uma grande alegoria no Dom Casmurro, mais precisamente no episódio em que Bentinho e Manduca estabelecem uma polêmica com base em suas respectivas preferências por russos e turcos na Guerra da Criméia. Amparando-se tão-somente nessa simples alegação de existência de alegoria e sem se escorar em absolutamente nenhum elemento concreto trazido pela narrativa machadiana, John Gledson transforma a Guerra da Criméia (presente no romance) na Guerra do Paraguai (de todo ausente dele), a Rússia em Brasil e Argentina, a Turquia em país governado por Solano López (GLEDSON, 1991, p. 120-126), de tal modo que só nos resta indagar que tipo de alucinação é a sua, uma vez que para montar esta “alegoria”, diferentemente das outras, ele nem sequer se vale de uma única palavrinha solta no texto, o que é mais chocante.
Outro delírio de Gledson: a partir do nome de Massinissa (um otimista dirá que aqui, pelo menos, ele arranca desde uma palavra presente no romance, o que já é um avanço em comparação à alegoria da Guerra do Paraguai), um dos quatro bustos decorativos da sala da casa de Bentinho, mencionado de passagem no início e ao final do romance, Gledson afirma: “Não só Capitu é comparável a Sofonisba (e de maneira mais minuciosa que pela simples boa vontade na aceitação do veneno), mas igualmente Bento a Massinissa” (GLEDSON, 1991, p. 139).
Como acabamos de ver, a simples menção da existência deste objeto de decoração na casa do protagonista, tout court, já basta para o crítico ir desencavar a história de Massinissa e cravar, arbitrariamente, que este é Bentinho, o marido que serve veneno à mulher, e Capitu é Sofonisba, a esposa que aceita ser envenenada... Pouco importa, para Gledson, que Bentinho nem sequer saiba quando nem onde a família adquirira tais objetos (isso, na sua explicação mirabolante, em que é contumaz, seria a intervenção direta de Machado de Assis da narrativa autodiegética...). É de cogitar sobre o que diria Gledson se a sua escolha proposital ou aleatória recaísse arbitrariamente em outro qualquer objeto irrelevante referido no romance, ou mesmo em um dos outros bustos, o de Nero, por exemplo. Aí decerto ele diria, fazendo uma vasta incursão pela história do Império Romano e tratando de interpretar trabalhosamente a suposta “alegoria”, que Bentinho é Nero, o imperador incendiário, e Roma é Capitu, a esposa que aceita ser incendiada...
Mas no quesito invencionice, a título de interpretar fantasiadas alegorias, John Gledson é insuperável, porventura por isso mesmo faça tanto sucesso nas Letras destes tristes trópicos. Vejamos mais um caso, no qual ele consegue transformar Ezequiel, cuja participação no romance cinge-se praticamente a “perder” a mãe, em “alegoria” do fim do Império Brasileiro!

De fato, uma indireta referência final ao imperador sugere que Ezequiel possa ser identificado com o Império moribundo, em vez de o ser com uma esperança no futuro. Trata-se do seu interesse pela arqueologia, disciplina pela qual d. Pedro II também era apaixonado, paixão revelada especialmente no fim do reinado, quando fazia viagens à Grécia, à Palestina e ao Egito (em fins de 1876). (GLEDSON, 1991, p. 140)

John Gledson parece não ter grande noção daquilo que os latinos designavam por “non sequitur. O interesse da personagem Ezequiel pela arqueologia está longe de significar, de forma necessária ou mesmo remota, referência indireta a d. Pedro II, só porque este, dentre mil outros e sem nenhuma preferência capital, também apreciava o assunto, mas é tal o pressuposto do crítico inglês. Daí a identificar Ezequiel com o próprio Império Brasileiro e tomar a morte próxima desta personagem como uma “alegoria” para o fim do regime monárquico nacional foi um pulo. Nesse exercício de forjar “alegorias” arbitrárias parece mesmo haver o inconfessável desejo de encontrar pretexto para intermináveis incursões eruditas e demonstrações de conhecimento de fatos históricos. Essas incursões e demonstrações são perfeitamente legítimas e bem-vindas, contanto que o artefato literário sub oculis assim o exija para a sua melhor compreensão e maior esclarecimento, mas são aborrecidas e falazes, quando gratuitas ou desmedidas. Enfim, por meio das análises de John Gledson ficamos a conhecer muito sobre a História Geral ou do Brasil, porém quase nada sobre os romances machadianos...
Nem a nossa crítica às falácias de John Gledson deve ser tomada como negação da existência de alegorias nas obras literárias. Elas aí existem, mas a sua afirmação demanda uma demonstração conscienciosa por parte do intérprete, sem a qual o significado passa a ser aquele “andarilho exilado” de que fala Harold Bloom. Ora, como temos visto, as associações arbitrárias que subjazem à superstição popular são menos discricionárias e inverossímeis que aquelas que fundamentam as alegorias de Gledson... É de imaginar o olhar irônico de Machado de Assis, o riso ao canto da boca, se, por infortuna, lesse semelhantes críticos!


2.2. Até Aonde Vai a Liberdade do Intérprete

O escritor e crítico literário Umberto Eco, dentre tantos cuidados, também se pusera a analisar o fenômeno da interpretação de textos em geral e de monumentos literários em particular. Não é o caso de realizarmos aqui um inventário da vasta gama de assuntos tratados na obra deste grande estudioso italiano. Ater-nos-emos a alguns pontos nodais de Interpretação e Superinterpretação, de Os Limites da Interpretação e de alguns ensaios por ele publicados, abordando dos tópicos cá discutidos.
De logo notamos que Umberto Eco ocupa-se da explicitação de conceitos atinentes à distinção entre o uso e a interpretação de textos. O uso, segundo Eco (2005), concerne ao fato de o leitor desconsiderar as intenções e a coerência interna do texto, empreendendo uma livre associação de idéias a partir de palavras ou frases isoladamente pinçadas do tecido escrito, notadamente o literário. O exercício da interpretação, ao revés, compele o intérprete ao respeito às intenções e à coerência interna do texto, devendo ser-lhes fidedigno. Tal exercício traz em si a implicação de que a obra consubstancia-se em alguns termos literais aos quais o intérprete não pode fugir.
O uso, sobretudo tendo como objeto uma obra literária, torna-se um problema, quando rotineiramente arroga para si o status de interpretação, hipótese em que se converte em abuso, ensejando a construção de delírios, alucinações e paranóias, travestidos de análise literária. Com tal fundamento, identificamos que é exatamente este o subjacente fenômeno diretor dos procedimentos de análise ou proposta de leitura literária adotados pelos militantes dos partidos políticos informais anteriormente citados, pois eles não investigam o artefato literário em si, nem lhe pretendem de fato desvendar as significações, mas o utilizam como mero meio de reafirmação ou propagação de sua doutrina partidária e de seu poder político, cuidando, porém, de ataviar tal procedimento com algumas roupagens da crítica literária.
Avançando, Umberto Eco concentra-se na definição da conduta que deve nortear a genuína interpretação das obras literárias. Entendamos o seu pensamento.

A leitura das obras literárias nos obriga a um exercício de fidelidade e de respeito na liberdade da interpretação. Há uma perigosa heresia crítica, típica de nossos dias, para a qual de uma obra literária pode-se fazer o que se queira, nelas lendo aquilo que nossos mais incontroláveis impulsos nos sugerirem. Não é verdade. (ECO, 2003, p. 12)

A “perigosa heresia crítica” da qual fala Umberto Eco é filha de investidas ideológicas ao campo das ciências humanas, investidas que, na seara da crítica literária, ancora-se em uma atual visão degenerescente das propostas da Estética da Recepção. Esta última linha de proposição de sentido do texto literário pretende realçar, não sem razão, a importância e o contributo do leitor (seja enquanto leitor-modelo, concebido teoricamente pelo próprio autor do texto, seja enquanto leitor empírico, com seus instrumentos pessoais de interpretação) no processo de estabelecimento dos possíveis sentidos desses artefatos, isso já desde o estádio de concepção das obras, o que não significa, como corruptamente faz a mencionada heresia, uma liberdade irrestrita de leitura. Os possíveis significados dos monumentos literários decerto são muitos, talvez potencialmente incomensuráveis (não o nega Umberto Eco), contudo, nem por isso podem ser levados a todo e qualquer lugar a que desejem conduzi-los o instinto incontido e as paixões irrefreáveis dos críticos literários irrefletidos, imponderados ou a serviço de ideários preconcebidos.
Umberto Eco ainda põe ênfase na circunstância de que isso seria “típico de nossos dias”, o que provavelmente é uma alusão ao radicalismo conceptual e interpretativo das pessoas submetidas (ao longo de toda a carreira acadêmica) ao fanatismo de múltiplos movimentos ideológicos incrustados nas instituições de ensino do nosso tempo – daí a visão degenerescente que têm da Estética da Recepção, à qual aludíamos, como de tudo o mais –, embora isso não seja propriamente apanágio do século XX e início do XXI, haja vista que os séculos imediatamente precedentes também conheceram as suas radicalizações e os seus fanatismos.
Eco aprofunda sua análise, pontificando:

Os textos literários não somente dizem explicitamente aquilo que nunca poderemos colocar em dúvida mas, à diferença do mundo, assinalam com soberana autoridade aquilo que neles deve ser assumido como relevante e aquilo que não podemos tomar como ponto de partida para interpretações livres. (ECO, 2003, p. 13)

Em conformidade com o pensamento de Umberto Eco, é a própria obra literária (intencio operis) que permite ou não a existência de polissemia, de dúvida quanto ao todo ou a quaisquer de suas passagens, autoriza ou não as leituras propostas pelos receptores (e essa “intenção da obra” não se confunde com a intencio auctoris e, por outro lado, está relativamente distante da intencio lectoris), por isso mesmo é que não podemos hesitar sobre a existência do adultério de Virgília, sob uma paranóica alegação de que a narrativa das Memórias Póstumas de Brás Cubas tratar-se-ia apenas de uma “versão dos fatos”. E, neste contexto, será que podemos pôr em cheque a comborçaria envolvendo Bentinho e Escobar em derredor de Capitu? O Dom Casmurro, aquele livro escrito por Machado de Assis, assim o permite, assim o autoriza? Veremos oportunamente se o próprio romance traz, como diz Umberto Eco, algum elemento “relevante” por cujo meio reste perfeitamente autorizada uma interpretação que absolva “a apaixonada e amorosa” Capitu e ponha o “caluniador” Bentinho no banco dos réus, como querem Helen Caldwell e os demais críticos que lhe são caudatários.
Vejamos, ainda, como Umberto Eco exemplifica um dado irrelevante e, portanto, não autorizado pelo romance para servir de suporte à sua interpretação:

No início dos Três mosqueteiros, diz-se que d’Artagnan chegou a Meung montado em um sendeiro de catorze anos, na primeira segunda-feira de abril de 1625. Quem tiver um bom programa em seu computador pode estabelecer imediatamente que aquela segunda-feira era dia 7 de abril. Uma maravilha para trivia games entre devotos de Dumas. Mas pode-se basear em tal dado uma superinterpretação do romance? Eu diria que não, pois o texto não torna o dado relevante. (ECO, 2003, p. 14)

Aqui, o paralelo com as interpretações oferecidas por John Gledson impõe-se. Será que a menção ao busto de Massinissa ou a afirmação en passant de que Ezequiel detinha certo gosto pela arqueologia são informações que, na montagem do quebra-cabeça central da trama, são tornadas especialmente importantes pelo romance Dom Casmurro, a ponto de erigirem-se em base para a sua interpretação? Tal como Umberto Eco, diremos “que não, pois o texto não torna o dado relevante”. No romance machadiano, aliás, o busto de Massinissa é até muito menos relevante do que, exempli gratia, o de Júlio César, pois este é mais mencionado e por meio dele ficamos (capítulo XXXI) a saber do encanto e da admiração de Capitu, ao ter notícia de que o triunfador da Guerra das Gálias presenteara uma senhora com uma jóia no valor de seis milhões de sestércios, o que diz algo não desprezível sobre o seu caráter interesseiro e arrivista.
Ora, o tal busto de Massinissa e o gosto de Ezequiel pela arqueologia, por si mesmos, estão para o Dom Casmurro assim como ser sete a primeira segunda-feira de abril está para os Três mosqueteiros – uma informação para lá de secundária no contexto na obra, indigna, pois, de dar suporte à sua interpretação abrangente.
Por fim e com certo remoque, Umberto Eco critica os delírios consubstanciados nas interpretações ideológicas com base na psicanálise, no marxismo, no homossexualismo, dentre outros. Fá-lo nestes termos:

A quem nos dissesse que d’Artagnan fora impelido por uma paixão homossexual por Porthos, que o Inominado fora induzido ao mal por um irrefreável complexo de Édipo, (...) que Panurgo fez o que fez por ódio ao nascente capitalismo, poderíamos sempre responder que nos textos aos quais se faz referência não é possível encontrar nenhuma afirmação, nenhuma sugestão, nenhuma insinuação que permita que nos abandonemos a tais derivas interpretativas. O mundo da literatura é um universo no qual é possível fazer testes para estabelecer se um leitor tem o sentido da realidade ou é presa de suas próprias alucinações. (ECO, 2003, p. 14-15)

Umberto Eco, tal como Harold Bloom, procura traçar rígida fronteira entre o campo da denotação e o da conotação (aliás, reconhecer onde há prevalência da denotação e onde a preponderância é da conotação, no texto literário, é uma atividade à qual os críticos atuais, em maioria, não estão aptos, como em tempo depreendêramos da análise de Harold Bloom sobre a incapacidade de reconhecimento de ironias por parte deles), sendo certo que apenas no pertinente à conotatividade pode haver autorização para edificações hermenêuticas a critério do analista literário. Isso implica sentenciar que, no tocante às afirmações literais, denotativas, presentes nos textos, não há o que se inventar nem discutir, não há interpretação fora do que estiver expressamente dito, sob pena de o intérprete dar provas de estar sob o efeito “de suas próprias alucinações”, não passando no teste de leitura do qual trata Umberto Eco. Por isso mesmo é que as interpretações de Helen Caldwell, John Gledson, Luciane Reinke et caterva denunciam a perda do “sentido da realidade”, pois nelas eles asseveram aquilo que simplesmente não é autorizado pela materialidade do texto literário machadiano; distorcem-no, corrompem-no, enveredando-se pelos caminhos aos quais os lavam suas respectivas alucinações ou paranóias.

O paranóico não é o individuo que percebe que ‘enquanto’ e ‘crocodilo’ aparecem curiosamente no mesmo contexto: o paranóico é o indivíduo que começa a se perguntar quais os motivos misteriosos que me levaram a reunir estas duas palavras em particular. O paranóico vê por baixo de meu exemplo um segredo, ao qual estou aludindo (ECO, 2005, p. 57).

A leitura de John Gledson ilustra perfeitamente a paranóia a que se refere o pensador e teórico italiano. A partir de palavras soltas, como “Massinissa” e “arqueologia”, Gledson interroga-se sobre quais “motivos misteriosos” teriam levado Machado de Assis a empregar em dado momento do romance Dom Casmurro esses termos, qual seria o segredo por trás de tais escolhas, e com base tão somente nisso já se põe paranoicamente à caça de explicações... Ocorre que as explicações já são conhecidas de antemão, fornecidas por suas crenças políticas ou informações historiográficas, de tal forma que seu trabalho de interpretação consiste em usar o texto literário como mero meio para a reafirmação de crenças prévias ou, na mais generosa das hipóteses, para fazer exibicionismo de dados da historiografia.
Luciano Amaral Oliveira, em um trabalho intitulado Os Limites do Poder do Leitor, onde estuda e demonstra a relevância do significado denotativo das palavras postas nos textos, insurgindo-se contra a total desconsideração desse significado, propõe um exemplo simples, mas que ilustra com brilhantismo duas coisas: por um lado, o tipo de articulação que deve existir entre texto e leitor na produção de sentido enquanto construção interpretativa, a qual não prescinde do sentido literal dos termos presentes no texto, como ponto de partida, nem do concurso do leitor, com seu prévio cabedal de conhecimentos do mundo e experiências intelectuais, de modo que leve a bom termo uma leitura que não desrespeite a imperiosa necessidade de coerência; e, por outro lado, a espécie de alucinação que acomete os críticos que defendem, com fanatismo, os direitos irrestritos do leitor. Ei-lo:

Uma analogia apropriada à relação do texto com o leitor na construção da coerência pode ser feita com a relação da maçã com quem a come na construção do sabor da maçã. O poeta Jorge Luis Borges (2004, p. 12) faz o seguinte comentário acerca de algo que Berkeley escreveu:
Falando sobre o bispo Berkeley (que, permitam-me lembrar, foi um profeta da grandeza dos Estados Unidos), lembro que ele escreveu que o gosto da maçã não estava nem na própria maçã – a maçã não pode ter gosto por si mesma – nem na boca de quem come. É preciso um contato entre elas.
A analogia que proponho é a seguinte: a maçã equivale ao texto; o comedor da maçã equivale ao leitor; e o sabor da maçã equivale à coerência do texto. Assim como o sabor da maçã não está nem nela nem na boca de quem a come, mas no encontro entre as duas, a coerência do texto não está nem nele nem nos olhos de quem o lê, mas no encontro dos dois.
É pouco provável imaginarmos alguém comendo uma maçã e dizendo que ela tem gosto de jaca ou de picanha argentina temperada com sal e alho assada na brasa. (OLIVEIRA, 2009, p. 5)

Diante do quanto temos posto e exposto até aqui e aproveitando esse esclarecedor exemplo de Oliveira, não nos resta senão concluir – a propósito da interpretação de John Gledson (transmutando Guerra da Criméia em Guerra do Paraguai, Bentinho em Massinissa e Capitu em Sofonisba, a esposa envenenada) ou de Helen Caldwell (transformando Bentinho em uma mistura de Otelo e Iago e Capitu em Desdêmona) – que ambos morderam uma maçã, mas sentiram o gosto de “picanha argentina temperada com sal e alho assada na brasa”, tão poderosa é a alucinação da militância política.
Ainda em relação a John Gledson, cumpre discutir o caráter historiográfico de suas análises. Afora as incongruências e contradições, confusões e incoerências já apontadas, tudo em Gledson é (não raro forçando muito a mão) associar palavras, personagens ou episódios machadianos com a História Geral ou do Brasil (ou, ainda, com anacrônicos estereótipos de “classe social” ou categoria profissional), no que é inferior a Lúcia Miguel-Pereira, a qual os associa com a história pessoal do autor, sem necessidade de forçar ou torcer os fatos – não sabemos até que ponto Machado de Assis conhecia os acontecimentos históricos indigitados por Gledson, mas decerto não desconhecia as ocorrências de sua própria vida, no que a crítica literária biográfica da brasileira é superior à historiográfica do inglês, sobretudo a propósito de um autor como Machado de Assis, que não escreveu romances históricos nem epopéias.
Todavia, essas duas vertentes da crítica literária – historiográfica e biográfica – são igualmente problemáticas, à medida que vão de preferência buscar respostas fora do universo artístico instaurado pela obra, o que não se nos afigura a melhor proposta de análise literária, embora elas possam servir e ter algum valor enquanto instrumento auxiliar da crítica, contanto que a História e a biografia sejam aí encaixadas sem violência, com naturalidade e pertinência, como faz Lúcia Miguel-Pereira.
Como visto até aqui, a obra machadiana, notadamente o Dom Casmurro, tem suscitado interpretações as mais díspares. Isso posto, procedendo à presente pesquisa, coletamos dados passíveis de lastrear a chancela ou a refutação das conflitantes e controvertidas postulações dos teóricos e críticos expostos.


3. OS ROMANCES MACHADIANOS DA MATURIDADE


3.1. Memórias Póstumas de Brás Cubas

Este romance de 1881, o primeiro da maturidade machadiana e reputado um divisor de águas na sua produção literária, escrito “com a pena da galhofa e a tinta da melancolia” (ASSIS, 2010, p. 15), traz, em seu esqueleto e estrutura básica, tanto a comborçaria fraternal masculina, quanto a infecundidade masculina, e é em função dessa dupla temática que entenderemos o fundamento da galhofa e o da melancolia, respectivamente. Considerando, por outro lado, que essa temática é recorrente nos romances subseqüentes – assim o sustentamos ab ovo – é na figura do narrador e na especificidade da focalização que encontraremos o diferencial deste e dos demais romances, cotejados uns com os outros.
O sui generis narrador das Memórias Póstumas de Brás Cubas é alguém que, depois de morto, delibera escrever as suas memórias, protagonizando a trama. Trata-se, pois, de um narrador autodiegético. Ele tece o romance segundo uma focalização restritiva, porque, embora morto, não é onisciente, nem tem acesso à subjetividade das demais personagens senão por fina análise e arguta dedução desde um ponto de vista exterior, segundo podemos observar em várias passagens, a exemplo do episódio narrado no capítulo “O Vergalho”, envolvendo a personagem Prudêncio. Este fora escravo da família Cubas e sempre apanhara maus-tratos do pequeno Brás. Depois de adulto e alforriado, Prudêncio adquirira um escravo para uso próprio. Pois bem, no aludido episódio, capítulo LXVIII, o “defunto autor”, após testemunhar por acaso uma ação de Prudêncio, que espancava e xingava o adquirido escravo, deduz com singular finura (e não menos singular ironia) as razões íntimas de seu ex-escravo, o qual estaria a maltratar sem piedade aquele outro escravo como modo de desforrar-se, “com alto juro”, dos antigos maus-tratos que ele, Prudêncio, em pequeno apanhara de Brás Cubas. Nos próprios termos do relator, aquilo “era um modo que o Prudêncio tinha de se desfazer das pancadas recebidas – transmitindo-as a outro” (ASSIM, 2010, p. 110).
Mais um eloqüente exemplo dessa argúcia analítica do narrador atuante sob focalização restritiva, novamente temperada com uma extraordinária mordacidade irônica, está no capítulo LXX, tendo por objeto a constituição moral dona Plácida e a necessidade que tinha ela de encontrar algo que lhe apaziguasse a consciência do proxenetismo, ao receber, e admitir, o ofício de acoutar e mediar “o pecado” de Brás Cubas e Virgília.
A narrativa, em outro plano, instaura também uma focalização interna, haja vista que o narrador – sempre com certo ar escarninho de defunto que já tudo diz desdenhar – investiga e divulga as suas próprias motivações subjetivas; mas essa focalização interna diz respeito apenas ao mesmo Brás Cubas, derivando para focalização externa no concernente às demais personagens.
Para além disso, a focalização é interventiva, por virtude de o narrador a todo momento interpelar o leitor (como ocorre nos já discutidos casos de Prudêncio e dona Plácida), fazendo digressões ou expondo o seu juízo pessoal acerca dos fatos e acontecimentos, que são uma das especificidades mais marcantes do estilo machadiano. De resto, muitas dessas ocorrências são, elas mesmas, marginais à seqüência da narrativa e, não raro, constituem-se em meros pretextos para a emissão dos anteditos juízos. Nem por isso esses acontecimentos e digressões deixam de estar muitas vezes entre as passagens de maior interesse literário, enquanto finura de pensamento ou lavor de linguagem.
Por último, vemos que esta é, ainda, uma focalização majoritariamente fixa, mantendo-se praticamente inalterada no transcorrer da narrativa.
Como uma das peculiaridades desse narrador, muito já se salientou a circunstância de ser ele um “defunto autor”, fato apontado como a grande originalidade ou diferencial do romance. Não o negamos, tendo sub oculis a literatura em língua portuguesa como um todo. Porém, no cotejo específico com os demais romances da maturidade do próprio Machado de Assis, a seguir estudados, este não parece ser o maior diferencial deste narrador, senão um artifício engenhoso e inusitado, bem-sucedidamente adotado com o fim de captar a confiança do leitor – em que pese ao aparente paradoxo do recurso ao fantástico. Aliás, enquanto artifício, os ficcionistas românticos não procediam de maneira muito diferente ao simular uma troca de cartas ou empreender outros expedientes com o desiderato de fazer crer o leitor na “verdade” da história narrada, quiçá para além dos limites da ficção literária.
Nesse sentido, não são poucas as passagens em que o narrador Brás Cubas, para ser crido em sua sinceridade, insiste na situação de achar-se morto e, por conseguinte, não possuir compromisso fora da verdade. Reforça a afirmação, declarando também não ter já receio algum da opinião pública, nem algum dos incontáveis interesses que movem os homens no mundo e, portanto, procura fazer acreditar na inexistência de razões para ele não dizer a mais límpida e acabada verdade. É o que vemos, exempli gratia, neste notável capítulo XXIV:

Talvez espante ao leitor a franqueza com que lhe exponho e realço a minha mediocridade; advirta que a franqueza é a primeira virtude de um defunto. (...) O olhar da opinião, esse olhar agudo e judicial, perde a virtude, logo que pisamos o território da morte; não digo que ele se não estenda para cá, e nos não examine e julgue; mas a nós é que não se nos dá do exame nem do julgamento. Senhores vivos, não há nada tão incomensurável como o desdém dos finados. (ASSIS, 2010, p. 60-61)

Esplêndida é a manobra lingüística do narrador, bem assim a finura com que encadeia e arremata o seu pensamento, de tal modo que o fim proposto (ser crido em sua franqueza) perde interesse imediato perante a forma e a agudeza por cujo meio tudo é dito. E, no fim das contas, se o seu relato merecer credibilidade, não será pela circunstancial razão de achar-se morto, mas pela verossimilhança auferida na contextura dos fatos narrados.
Todavia, se ser “defunto autor”, como afiançamos, não é o diferencial desse narrador no conjunto dos romances machadianos da maturidade, mas um singular e paradoxal recurso para atrair credibilidade para as suas declarações, onde estará esse diferencial? A nosso juízo, ele está na posição que Brás Cubas ocupa no triângulo da “comborçaria fraternal masculina”, ou seja, o relator das Memórias Póstumas de Brás Cubas coincide com a personagem que ocupa o vértice destinado ao amante, ao sujeito que engana e atraiçoa, e que, sentindo-se causa de uma grande “infração e vencedor de outro homem, fica legitimamente orgulhoso” (ASSIM, 2010, p. 168), como confessa no capítulo CXXXI. A posição de amante, dando-lhe fumos de superioridade em relação ao rival e atiçando-lhe a vaidade e a presunção, lastreia a sua postura zombeteira – a “pena da galhofa”.
Brás Cubas faz-se o amante de Virgília, casada com Lobo Neves. A emulação entre Brás Cubas e Lobo Neves tem início antes dos esponsais deste com Virgília, porque o primeiro também pretendia a mão legítima da casadoira e bela rapariga – e a cadeira de deputado daí decorrente, por força da influência política do futuro sogro. No universo deste romance, aliás, dificilmente podemos vislumbrar algum ato desinteressado das personagens, as quais se mobilizam quase que exclusivamente com o fito de satisfazer seus próprios interesses, apetites e paixões.
Porém, como dizíamos, Brás Cubas também pretendia a mão de Virgília, tendo a escolha conjugal, no entanto, recaído sobre Lobo Neves, daí a pouco feito deputado. Nem por isso houvera algum laivo de animosidade aparente entre ambos, antes pelo contrário, tornaram-se amigos e já no capítulo L vemos Brás Cubas receber um convite cortês de Lobo Neves, a fim de que comparecesse à residência deste “para uma reunião íntima” (ASSIS, 2010, p. 82). É justamente o estreitamento da amizade de Lobo Neves e Brás Cubas que dará a este as possibilidades de exercer a sedução que redundaria “na queda” de Virgília. Verdade é que ela já de si não fosse nenhuma santa, por isso mesmo que não contrapôs resistência ao requesto de Brás Cubas, tendo-se, ao revés, mostrado aquiescente desde o princípio, quando ele lhe pressionara a mão com força durante uma valsa que dançaram na tal “reunião íntima”.
No capítulo LVIII vemos Lobo Neves a fazer confidência a Brás Cubas, em uma demonstração de amizade e confiança que culminará no convite para que Brás Cubas o acompanhe como secretário, na primeira vez que Neves fora distinguido politicamente com uma nomeação para a presidência de uma província do Império brasileiro de então. Esta amizade só cessará, quando, anos depois, Lobo Neves receber uma carta anônima denunciadora dos amantes, momento a partir do qual tratará Brás Cubas apenas com a formalidade necessária a evitar o escândalo, mas sem a amizade ou a confiança priscas. Até então, todavia, será tão grande a intimidade de Brás Cubas no domicílio de Lobo Neves, que é lá mesmo que ocorre a consumação da posse clandestina de Virgília, como vemos confessado no capítulo LXVII:

Para mim era aquilo uma situação nova do nosso amor, uma aparência de posse exclusiva, de domínio absoluto, alguma coisa que me faria adormecer a consciência e resguardar o decoro. Já estava cansado das cortinas do outro, das cadeiras, do tapete, do canapé, de todas essas coisas, que me traziam aos olhos constantemente a nossa duplicidade. Agora podia evitar os jantares frequentes, o chá de todas as noites, enfim a presença do filho deles, meu cúmplice e meu inimigo. (ASSIS, 2010, p. 109)

O adultério ocorrera na residência da família durante um bom lapso de tempo (conquanto cause certa surpresa que, de dentro da casa, ninguém mais o percebesse ou suspeitasse, sem embargo de que a carta anônima que o delatara pudesse ter partido desde lá), até que determinadas desconfianças públicas compelissem os amantes a providenciar um espaço próprio, uma casinha retirada que servisse de ninho para os seus amores subterrâneos.
Como vimos do último excerto, a freqüência de Brás Cubas no lar dos Neves era diária, ao menos para tomar “o chá de todas as noites” (também no Dom Casmurro os casais Bentinho e Capitu, Escobar e Sancha, manterão uma proximidade crescente, até tornar-se de igual maneira nímia e diária). Há, no comportamento e nas atitudes de Lobo Neves, mais que simples cortesia ou cálculo de político, pois a par disso ele de fato dispensa um tratamento fraternal a Brás Cubas, o qual se vale justamente da confiança advinda dessa fraternidade, que lhe franqueara o acesso ao domicílio familiar, para colher como amante a esposa do outro. Se Virgília trai os votos do matrimônio, Brás Cubas trai os historicamente não menos consagrados votos da amizade e da hospitalidade, extraindo desse logro e dessa dobrada aleivosia o maior e mais refinado prazer, em que pese ao travo deixado pela consciência da duplicidade do seu comportamento. Muito clara, portanto, a comborçaria fraternal masculina como uma das bases desta trama romanesca.
Contudo, Virgília, à semelhança de Capitu e diferentemente da Luísa de O Primo Basílio, é uma personagem complexa. Seus movimentos são por vezes singulares e até imprevisíveis. Ouçamos a reflexão de Brás Cubas e a conclusão a que chega, depois da morte e sepultamento de Lobo Neves, já no avançado capítulo CLII:

Não podia sacudir dos olhos a cerimônia do enterro, nem dos ouvidos os soluços de Virgília. Os soluços, principalmente, tinham o som vago e misterioso de um problema. Virgília traíra o marido, com sinceridade, e agora chorava-o com sinceridade. Eis uma combinação difícil que não pude fazer em todo o trajeto; em casa, porém, apeando-me do carro, suspeitei que a combinação era possível, e até fácil. (ASSIS, 2010, p. 184)

O amor do amante, ao que parece e como bem entreviu o arguto narrador, não significara para ela um compulsório e total desamor do marido, tendo podido conciliar complexamente dentro de si sentimentos que usualmente seriam considerados antinômicos ao ponto do inconciliável.
Aliás, vislumbramos aí, por artes da personalidade não-linear de Virgília, uma espécie de refinamento na comborçaria fraternal masculina machadiana, em que a mulher partilhada equilibra-se entre os dois comborços, sem que nenhum deles deixe de merecer a sua cota de sinceridade momentânea (aqui alguns pensariam em puro cinismo de Virgília, mas entendemos que a complexidade de um ser humano comum é incompatível com rótulos unívocos).
Outro fator digno de nota, no tratamento machadiano deste tema, é que só uma perspectiva de amante, que da comborçaria tudo conhece desde sua própria posição privilegiadíssima e para cuja vista não são dirigidos os véus da dissimulação geral (à diferença do marido), permite sondar e descobrir certas verdades profundas de um relacionamento à margem da moralidade vigente – e veremos, em ocasião própria, que o Dom Casmurro traz uma situação isomorfa a esta, quando Bentinho analisa o comportamento de Sancha no velório de Escobar; contudo, a diferença do ponto de vista de Bentinho, em cotejo com o de Brás Cubas, determina a diferença da conclusão a que chega cada narrador.
Não há, porém, clandestinidade sem sustos. Tiveram-nos Virgília e Brás Cubas, em especial a partir do aparecimento da antedita carta anônima, que os acoimava. O susto máximo narra-se no capítulo CIV, quando o marido traído quase colhe os adúlteros em flagrante delito. Ei-lo:

Dona Plácida, que espreitava a ocasião idônea para a saída, fecha subitamente a janela e exclama:
– Virgem Nossa Senhora! Aí vem o marido de Iaiá!
O momento de terror foi curto, mas completo. Virgília fez-se da cor das rendas do vestido, correu até a porta da alcova; (...) Esse curto instante passou. Virgília tornou a si, empurrou-me para a alcova, disse a Dona Plácida que voltasse à janela; a confidente obedeceu.
(...)
Virgília, que estava a um canto, atirou-se ao marido. Eu espreitava-os pelo buraco da fechadura. O Lobo Neves entrou lentamente, pálido, frio, quieto, sem explosão, sem arrebatamento, e circulou um olhar em volta da sala.
(...)
Virgília punha o chapéu, atava as fitas, arranjava os cabelos, falando ao marido, que não respondia nada. A nossa boa velha tagarelava demais; era um modo de disfarçar as tremuras do corpo. Virgília, dominado o primeiro instante, tornara à posse de si mesma. (ASSIS, 2010, p. 144-145)

Nesses transes é que deve avultar, absoluta, a capacidade de dissimulação, secundada de um autocontrole a toda prova. Virgília, como Capitu, é perita consumada nesta arte, não perdendo a presença de espírito nem mesmo perante a natural conjectura de que o marido, mui provavelmente, não teria lá ido por acaso, mas instruído por alguma denúncia, como a da já conhecida carta anônima. Tampouco de outra forma explica-se o comportamento de Lobo Neves, o seu repentino aparecimento em local tão desusado, o olhar perscrutador que lança a toda a sala, a sua frieza, palidez, toda a sua atitude suspeitosa e inquisitiva.
No entanto Virgília mantém-se nos moldes da mais perfeita impassibilidade, falando, gesticulando, dir-se-ia mesmo respirando com a máxima serenidade, dominando com incomensurável segurança toda a tensão eletrizante daquele lance grave, equívoco, e da mais alta periculosidade para o seu destino, como se fora a mulher mais inocente deste mundo, a mais digna de ser querida e acreditada pelo marido, o qual, perante tamanha naturalidade e tudo julgando por ela, não poderia senão conjecturar que se tratava, a denúncia, de uma calúnia torpe contra tão santa esposa...
É inevitável assinarmos a existência de paralelismo entre este romance e o Dom Casmurro. Oportunamente veremos que Bentinho, em situação assaz análoga à de Lobo Neves, mas sem ter prévia consciência dos fatos, uma vez que não recebera cartas delatoras, também esteve bem próximo de surpreender os adúlteros em ação.
A confirmação de que Lobo Neves não engoliu toda aquela patranha, todo aquele fingimento, mas já possui algum conhecimento acerca do adultério, está no capítulo CVII, no qual se transcreve um bilhete remetido por Virgília a Brás Cubas (aspas originais):

“Não houve nada, mas ele suspeita alguma coisa; está muito sério e não fala; agora saiu. Sorriu uma vez somente, para nhonhô, depois de o fitar muito tempo, carrancudo. Não me tratou mal nem bem. Não sei o que vai acontecer; Deus queira que isto passe. Muita cautela, por ora, muita cautela.” (ASSIS, 2010, p. 148)

Altamente sintomático de que o marido sabe da traição (a despeito de toda a dissimulação protagonizada por Virgília e embora sob aquela margem de dúvida própria do marido que não apanhou a mulher em flagrante delito, nem lhe ouviu uma confissão expressa) é o fato de ele olhar tão demoradamente para o filho, como a tentar surpreender na criança algum traço de um pai suposto...
Mas, não. Esta criança, ao contrário de outra que conheceremos adiante, não possui os pés e mãos iguaizinhos aos de certo amigo dileto da casa... Não perderá a mãe, até porque, por mais que existam anônimas denúncias da prevaricação da mulher, não há mais nada além disso, e de resto Lobo Neves capacita-se de que é o pai do filho da esposa, porquanto não encontra elementos pelos quais duvidar de tal paternidade. Não reúne, pois, razões que considere bastantes para repudiar a consorte, não obstante possa afastar-se do amigo, e assim o faz até certo ponto. Brás Cubas, contudo, não perde a serenidade, conquanto leia e releia o bilhete da amante; tampouco o ar galhofeiro.
Mas nem só da galhofa do amante faz-se a narrativa: há também, impregnada irresistivelmente nas palavras do narrador, a “tinta da melancolia”. Esta encontra estofo e justificação na outra temática recorrente nos romances machadianos da maturidade: a infecundidade masculina. Conquanto encerre a narrativa asseverando, com certa eloqüência impactante, haver colhido após a sua morte – do fato de não ter tido filhos e, por conseqüência, de não haver transmitido “a nenhuma criatura o legado da nossa miséria” (ASSIM, 2010, p. 190) – um saldo favorável em sua vida, isso, enquanto possível denotação, de alguma forma é desmentido, ou ao menos relativizado no próprio curso do romance, designadamente se tomarmos em consideração conjunta os capítulos XC, XCIV, XCV e CXX.
Quando Brás Cubas descobre a gravidez de Virgília e sente que pode ser pai, diz, no capítulo XC:

Olhos do mundo, zelos de marido, morte do Viegas, nada me interessava por então, nem conflitos políticos, nem revoluções, nem terremotos, nem nada. Eu só pensava naquele embrião anônimo, de obscura paternidade, e uma voz secreta me dizia: é teu filho. Meu filho! E repetia estas duas palavras, com certa voluptuosidade indefinível, e não sei que assomos do orgulho. Sentia-me homem. (ASSIS, 2010, p. 133)

Aí o vemos exultar com a mera notícia da possibilidade de transmitir seu legado a alguma criatura. Esse orgulho, essa satisfação, esse deleite inefável, irrompendo aos simples auspícios de paternidade (obscura), a nosso ver, não são muito consentâneos com a negativa final.
No capítulo CXX, interpelado pela irmã, desejosa de vê-lo casado com Nhã-loló, diz o “defunto autor”:

Sem filhos! A idéia de ter filhos deu-me um sobressalto; percorreu-me outra vez o fluido misterioso. Sim, cumpria ser pai. A vida celibata podia ter certas vantagens próprias, mas seriam tênues, e compradas a troco da solidão. Sem filhos! Não, impossível. Dispus-me a aceitar tudo, ainda a aliança do Damasceno. Sem filhos! (ASSIS, 2010, p. 159)

Não são exatamente as palavras que costumamos ouvir de quem vê autêntico benefício e proveito na ausência de filhos... As desvantagens da solidão, apenas vislumbradas, já assombram o narrador. Outro ponto altamente significativo e enfraquecedor da negativa final é a reiterada exclamação “Sem filhos!”, três vezes em tão poucas linhas. Assim é que a negação de encerramento do romance, sonorosa e chocante como pouquíssimas outras na obra machadiana e brasileira, confrontada com os pensamentos traçados em diversos capítulos, em especial os XC, XCIV, XCV e CXX, apresenta-se, na melhor das hipóteses denotativas, como uma ulterior racionalização do fracasso consubstanciado na infecundidade masculina, racionalização que, tomada pelo seu valor de face, busca torná-lo (o fracasso) não apenas palatável, mas até desejável... Ironia post mortem?
Convenhamos que a negativa final não deixa de ser condizente com a condição de finado, o qual, desde sua nova situação, afirma tudo desdenhar. Mas não desdenha tanto, que não racionalize o seu pouco, sobretudo em se considerando as pregressas manifestações acerca da paternidade. Essa racionalização, cotejada com o restante da obra, faz crer na pouca denotatividade da negativa de encerramento enquanto saldo superavitário da existência. Bem pode ser, em verdade, a maior ironia deste narrador zombeteiro, que encontra prazer no desnudar mordazmente, nos outros como em si mesmo, as pequenas e as grandes misérias da condição humana – o interesse, a vaidade, as paixões desenfreadas, a venalidade, a ausência de autênticas virtudes. Em suma, da “pena da galhofa” e da “tinta da melancolia” despede-se todo um deplorável cortejo de misérias físicas ou morais, representadas de modo mais ou menos camuflado no grande palco insensato que é este mundo.
De qualquer sorte, ainda quando tomássemos como autêntica denotação a negativa final (enquanto saldo positivo da vida, contabilizado após a morte) e desconsiderássemos as contradições apontadas, tributando-as à mudança da condição de vivo para finado – ainda assim o fato de não ter havido filhos continuaria a ser a grande pedra no sapato do narrador, compelindo-o a encerrar o romance com um pensamento acutíssimo (e irremissivelmente melancólico) em derredor dessa matéria. A escolha da “chave de ouro” nunca é à toa, tampouco desprovida de significância decisiva. A questão da infecundidade masculina avulta, pois, como o outro grande tema das Memórias Póstumas de Brás Cubas, de par com a comborçaria fraternal masculina, que tecida sob a perspectiva do amante, dominador da focalização e do processo narrativo, permeia grande parte do enredo – enredo, aliás, assaz acidentado pela proliferação de digressões que, motivadas por toda sorte de comentários de cunho filosófico, psicológico ou apenas galhofeiro, não raro constituem-se em pontos altos do romance e, com certeza, em estigma inconfundível do estilo machadiano.


3.2. Quincas Borba

O ano de 1891 viu a publicação do segundo romance da segunda fase da produção literária de Machado de Assis. Diferentemente do que ocorrera no anterior, o narrador do Quincas Borba é heterodiegético e tricota a trama narrativa mediante uma focalização onisciente, haja vista que o narrador põe-se fora da diegese romanesca e imiscui-se na subjetividade das personagens, analisando-as sob todas as perspectivas e lendo-lhes, a seu bel-prazer, todos os pensamentos, motivações e desejos. Por isso mesmo, o narrador instaura também uma focalização predominantemente interna, em alternância com alguns momentos de focalização externa.
Adicionalmente, temos aqui uma focalização interventiva, por virtudes de o narrador, na mesma esteira do seu congênere das Memórias Póstumas de Brás Cubas, muitas vezes suspender o fio da narrativa e dirigir-se diretamente ao leitor, como já assinalamos na discussão do romance precedente.  É ainda uma focalização majoritariamente fixa, mantendo-se praticamente inalterada no transcurso da narrativa.
O Quincas Borba, sem embargo da distância de dez anos, não é dissociado das Memórias Póstumas de Brás Cubas. Antes, pelo contrário, há certa continuidade entre ambos, não só quanto à temática e à estrutura básica recorrente, mas também no concernente à presença de personagens que atuam em ambas. Com efeito, as personagens Quincas Borba e Brás Cubas participam nas duas narrativas, embora, no romance homônimo, Quincas Borba seja também o nome do cachorro de estimação do filósofo de Humanitas, legado a Rubião junto com uma herança milionária.
Verdade é que a freqüência de Brás Cubas em Quincas Borba seja mínima: cinge-se à emissão de uma pequena carta (ou bilhete) a Rubião, participando-lhe a morte do teórico do Humanitismo, no capítulo XIII. É igualmente verdade que o filósofo Quincas Borba seja personagem secundária em ambos os romances, mas não irrelevante, tendo em vista que a sua teoria do Humanitismo, apenas esboçada no relato do “defunto autor”, será desenvolvida e “comprovada” no Quincas Borba, cristalizando-se na fórmula “ao vencedor, as batatas”, remate da alegoria explicativa do Humanitismo. A trajetória mesma percorrida pelo protagonista Rubião, após o recebimento da herança, parece ser a “comprovação” dessa filosofia com forte viés darwiniano e, ipso facto, anti-socialista.
A narrativa deste romance inicia-se sob a técnica do in medias res (diferentemente da narrativa das Memórias Póstumas de Brás Cubas, principiada sob o pouco usual método do in ultimas res).
Nos seus três primeiros capítulos (retomados a partir do capítulo XXVII, após o encerramento do retrospecto[8] típico da narrativa in medias res e necessário à situação das personagens mais relevantes), temos um Rubião já rico e às voltas com a crise de âmbito moral relacionada ao desejo de posse amorosa que nutre no tocante à personagem Sofia. Esta é a bela e insinuante esposa de Cristiano Palha, amigo recente de Rubião – amizade alimentada por velados interesses de pouca nobreza: de um lado, Rubião, cujo desiderato é seduzir e colher para amante a consorte do amigo; de outro lado, o casal Palha, interessado em auferir o máximo proveito da riqueza do primeiro –, tudo temperado com pitadas de cinismo e dissimulação. Aí está a temática da “comborçaria ou rivalidade fraternal masculina”, predominante na primeira metade do romance. No entanto, contrariamente ao ocorrido no romance de Brás Cubas, não haverá nesta “comborçaria ou rivalidade fraternal masculina” a consumação da posse carnal, menos por virtudes da mulher ou precauções do marido, do que por inépcia do amante.
Com efeito, nesta narrativa o vértice destinado ao amante é majoritariamente ocupado por Rubião, que, pascácio, se mostra inapto para a posição, que exige uma argúcia e uma picardia que ele – limitado mestre de meninos e enfermeiro improvisado de Quincas Borba, do qual herdará inopinadamente os milhões – estivera sempre longe de possuir. Exemplos: no capítulo VI, o narrador onisciente revela que Quincas Borba hesita em falar a Rubião sobre a filosofia Humanitas, por achá-lo incapaz de compreensão; o filósofo volta a imputar-lhe incapacidade de compreender a sua filosofia na carta transcrita no capítulo X, onde Quincas Borba também o taxa de “ignaro”; nos diálogos travados com Quincas Borba, que finalmente lhe expõe a sua filosofia, Rubião revela-se sempre pouco atilado e é ridicularizado familiarmente pelo autor do Humanitismo. Enfim, quando, no comboio que o levará à Corte para tomar posse da herança, Rubião trava por acaso conhecimento com o casal Palha, mostra-se provinciano e incauto, estampando por ingênua vaidade a sua condição de herdeiro.
No outro vértice está o marido, que, diante da ingenuidade manifestada por Rubião, emerge como figura dominante no início das relações que estabelecem. Atuando sob focalização interna, no capítulo XXXV, o narrador nos denuncia que Cristiano Palha é um homem vaidoso e de grande ambição, capaz de empregar a própria esposa como meio para angariar vantagens, ou exibi-la como troféu. Fá-la decotar-se com desgarre, de modo que, divulgando nos salões seus atributos mais preciosos – a decantada perfeição do colo e o sublime contorno de seios, comprobatórios de que ali há um marido feliz e bem-servido – obtenha a satisfação da sua fatuidade; indu-la a obsequiar nimiamente Rubião, do qual Palha vai obtendo proveitos pecuniários crescentes – sob a forma de presentes caros para a mulher, empréstimos generosos, capital para uma sociedade em um armazém, fazendo-se, por fim, depositário dos bens de Rubião.
Rubião, encorajado pelos amiudados e convidativos obséquios da mulher de Cristiano Palha e magnetizado pelos olhos envolventes e misteriosos de Sofia, cuja beleza acima da média fascina-o, declara-se-lhe apaixonado, mas sem sucesso. Sofia esquiva-se de semelhante pretendente e tudo relata ao marido. Na comborçaria, sempre há enganadores e enganado e, neste caso, o enganado é Rubião. Marido e mulher (conquanto não se desnudem de todo um perante o outro, cultivando aparências de respeitabilidade, inclusive, na intimidade conjugal) estão juntos na empreitada de envolvê-lo, e o narrador, com a sua onisciência, vai, notadamente no capítulo L, desvelando as motivações íntimas de cada qual, mostrando a dificuldade que têm para conciliar os seus reais desejos com as necessárias “aparências”. Sofia, embora não sinta nenhumas atrações por Rubião, sedu-lo para servir aos interesses do marido e também para regozijo da vaidade própria. Cristiano Palha, ao saber que sua esposa é objeto de ousados galanteios por parte do amigo, só pensa em como conciliar a honra de marido diante a mulher e a manutenção dos lucros advindos da íntima amizade com Rubião, a quem define como “um simplório”, prevalecendo o segundo interesse. Sofia, procurando ostentar escrúpulos, desempenha perante o marido o papel de mulher honesta, ofendida pela ousadia de Rubião.
Porém, a sua honestidade é relativa e nem só de lealdade para com o marido vive Sofia: a lealdade conjugal vige no concernente a Rubião, pelo qual não sente ela atração amorosa ou sensual. Igual fato não se dá em relação a outros pretendentes, como Carlos Maria, também amigo da família. Este, depois de valsar[9] demoradamente com Sofia em um baile, faz-lhe atrevidos galanteios de enamorado, concluindo: “O mar batia com força, é verdade, mas o meu coração não batia menos rijamente; – com esta diferença que o mar é estúpido, bate sem saber por que, e o meu coração sabe que batia pela senhora” (ASSIS, 1997, p. 97). Sofia impressiona-se com a audácia e com as palavras melífluas do rapaz e, à diferença do ocorrido no caso de Rubião, aqui ela dissimula e embai o marido, nada lhe revelando do sucesso. Desabrocha-se psicologicamente para a aventura. Contudo, também não se consuma carnalmente o adultério nesta nova comborçaria ou rivalidade fraternal masculina, uma vez que Carlos Maria, com a declaração que lhe fizera, não tem aparentemente outro empenho, senão porventura o exercício de uma espécie de dandismo oratório sob a forma de galantaria. Não insiste na encetada conquista, causando certa frustração a Sofia. O tempo passa e Carlos Maria acaba casando-se com Maria Benedita, prima da mesma Sofia, entrando, pois, para a família desta.
Rubião, ainda quando avança na perda do juízo ou permaneça certo tempo sem ir vê-la, é o único que mantém algum empenho em requestá-la, mas Sofia tem-lhe já invencível aversão, como vemos no episódio que entra a ser narrado no capítulo CLII. Fosse outro o requestador, diverso teria sido o desfecho da comborçaria ou rivalidade fraternal masculina, segundo o narrador explicita no capítulo CLIV:

Nomes diversos relampejavam no azul daquela possibilidade. Quanto pormenor interessante! Sofia reconstruiu a caleça velha, onde entrou rápida, donde desceu trêmula, para esgueirar-se pelo corredor dentro, subir a escada, e achar um homem, – que lhe disse os mimos mais apetitosos deste mundo, e os repetiu agora, ao pé dela, no carro, mas não era, não podia ser Rubião. Quem seria? Nomes diversos relampejaram no azul daquela possibilidade. (ASSIS, 1997, p. 208)

Apesar de viver aparentemente bem com o marido e sem embargo da célere ascensão social, que a põe de repente em privança com damas da alta roda fluminense, como D. Fernanda, cônjuge do deputado Teófilo – Sofia é presa de certa insatisfação meio difusa e, ocasionalmente, fantasia aventuras. Não significa outra coisa a alusão à lanterna de Diógenes no capítulo CLX: “procuro um homem”.  Sofia entendia-se, fantasia peripécias amorosas ilícitas, vislumbra deleites clandestinos, delícias proibidas, contudo, tendo em vista a precoce deserção de Carlos Maria, não encontra o “seu homem”, sua aventura extraconjugal, não obstante se ponha em disponibilidade moral e psicológica para ser o pivô de uma típica comborçaria fraternal masculina. Posto dê motivo de análise ao narrador onisciente, essa insatisfação dos desejos e das ideações adulterinas de Sofia faz que a comborçaria, neste romance, permaneça no nível da rivalidade.
Não deixa de haver um pouco de melancolia no ar, em um crescendo, à medida que a narrativa arrasta-se para o epílogo. Essa melancolia não está associada apenas à tolice orgânica de Rubião, à insanidade que vai a pouco e pouco se apossando do seu espírito, preparando o seu desfecho merencório, ou ao fastio de uma Sofia nunca plenamente satisfeita. Ela associa-se também, e sobretudo, à temática da “infecundidade masculina”. Com efeito, tanto Rubião, o protagonista, quanto Cristiano Palha, o seu rival, sem esquecer o filósofo Quincas Borba, benfeitor de Rubião – todos estão sujeitos ao triste fenômeno da “infecundidade masculina”, culminando na extinção de suas respectivas progênies, já que nenhum desses três homens possui filho, neto ou sequer um sobrinho.
Malsucedido o amante, sobre cujo ponto de vista narra-se a maior parte do romance, não há “pena da galhofa” no Quincas Borba, como nas Memórias Póstumas de Brás Cubas, mas apenas a “tinta da melancolia”. Uma melancolia esquisita, que sem alarde vai penetrando pouco e pouco o ânimo do leitor, contristando-o, deprimindo-o. O casal Palha acaba ricaço, Rubião, miserável – mas não se vislumbra felicidade em nenhum deles, tampouco no filósofo Quincas Borba, morto logo no intróito.
Só há um pouco de bem-aventurança tranqüila em alguma “ilha” isenta dos padecimentos da infecundidade masculina e onde o casamento realiza-se por amor, como no caso de Carlos Maria e Maria Benedita, abençoados com a concepção e posterior paternidade logo depois de matrimonialmente consorciados. Embora sem o colorido estilístico de um Joaquim Manuel de Macedo ou de um José de Alencar, e partilhando algo da melancolia geral da obra, ainda assim existe uma atmosfera de inelutável Romantismo na descrição específica deste casal, cuja felicidade serena, sem dissimulações ou sobressaltos, dificilmente poderia ser matéria da estética literária do Realismo-Naturalismo, talvez por isso mesmo seja delineada em breves traços. Aliás, nunca foi ignorada a simpatia que Machado de Assis sempre manifestara aos Românticos, em contraste com a dureza reservada a certos adeptos da então nova escola, notadamente ao determinismo abraçado por Eça de Queirós. Sendo ambos tidos pela crítica como autores “Realistas” (posto Machado o seja apenas a partir de 1881), a controvérsia literária envolvendo Machado e Eça, por virtude da crítica machadiana a determinados pontos da composição de O Primo Basílio, não deixa de chamar a nossa atenção, mostrando a precariedade de certos enquadramentos de autores ou obras em escolas literárias, mormente quando se sabe que Machado convivia bem com os autores nacionais adeptos da estética Romântica, louvando sempre os citados Joaquim Manuel de Macedo[10] e, sobretudo, José de Alencar[11], de cujos escritos recebera influência. Não nos consta haver Machado de Assis, em algum momento, feito crítica literária formal e dura em desfavor de alguma obra lavrada sob a égide da proposta Romântica, como fora a multimencionada crítica ao romance protagonizado por Luísa.
A personagem secundária Maria Bendita, tal como bosquejada pela narrativa, possui, pois, o perfil de uma heroína Romântica, que poderia ser extraída do Quincas Borba e figurar sem estranhamento em qualquer dos romances urbanos de José de Alencar, enquanto o protagonista Rubião, vencido e envolto na “comborçaria ou rivalidade fraternal masculina” e na “infecundidade masculina”, é um triste e detestável anti-herói Realista, que cede ao casal Palha, triunfador, mas não menos triste e detestável, as batatas herdadas ao filósofo darwiniano de Humanitas.


3.3. Dom Casmurro

Eis o terceiro romance da maturidade de Machado de Assis, compondo, juntamente com as Memórias Póstumas de Brás Cubas, o seu par de obras-primas romanescas. Tem sido, quando menos, o que mais vem suscitando polêmicas através dos tempos a esta parte. Destaca-se pelo estilo sugestivo, que insinua antes de afirmar, diferentemente da narrativa do “defunto autor”, marcada pelo tom de desabusado desmascaramento. Os narradores são semelhantes, ambos autodiegéticos, mas há a diferença crucial do ponto de vista, consoante veremos adiante.
O narrador do Dom Casmurro é a personagem Bento Santiago, o Bentinho, o qual, por volta dos cinqüenta e poucos anos de idade, procurando vencer o tédio e a solidão, empreende escrever a sua história. Fá-lo em primeira pessoa, sendo o protagonista, ao lado de Capitolina, a Capitu. A obra, tendo vindo a lume em 1899, antecedendo, portanto, o célebre romance proustiano, parece ser uma “busca do tempo perdido” avant la lettre, com a discrepância de que, ao avesso do que viria a postular o francês, aqui o tempo é irrecuperável. É o que inferimos desta conhecida e festejada passagem:

O meu fim evidente era atar as pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência. Pois, senhor, não conseguir recompor o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo. (ASSIS, 1995, p. 12)

Todavia, se não é possível recuperar o tempo perdido, há ao menos a possibilidade de viver novamente o vivido e é a isto que o narrador se entrega, aliás, com um objetivo a mais, revelado no capítulo final: saber se a Capitu que cometera o adultério já existia em germe na menina e moça ou se esta, em razão de algum incidente fortuito, transformara-se naquela. Toma o primeiro alvitre, que não deixa de ser um tanto fatalista. A nosso sentir, essas possibilidades não são excludentes, sendo antes complementares, à vista do entendimento de haver necessidade de conjunturas favoráveis que ensejem a materialização de tendências potenciais.
De qualquer sorte, o romance, do ponto de vista em que é narrado, configura-se por uma minuciosa captação dos indícios que ao tempo foram desprezados ou desconsiderados, mas que, retrospectivamente, teriam o condão de revelar o encadeamento de circunstâncias que culminariam na comborçaria fraternal masculina de Bentinho e Escobar em derredor de Capitu.
A focalização é interna em relação ao próprio narrador, porém externa no que concerne às demais personagens, pois não é uma focalização onisciente. No entanto, como sempre sucede aos narradores-personagens machadianos, este narrador também apalpa a subjetividade das demais pessoas da história, tentando deduzir seus sentimentos e suas razões recônditas. Um exemplo desse tipo de incursão do narrador está no capítulo LXXX, relativamente às cogitações íntimas de dona Glória, mãe de Bentinho, que por um lado precisa cumprir a promessa de torná-lo padre, porém, por outro, deseja tê-lo ao pé de si.
No mais, a focalização é também interventiva, reiterando, no particular, os anteriores romances da maturidade de Machado. O relator interrompe algumas dezenas de vezes a narrativa a fim de dirigir-se ao leitor, prendê-lo, interessá-lo, acaso aliciá-lo (no sentido de não abandonar a leitura). São constantes os apelos ao “amigo leitor”, à “querida amiga que me lês”, ao “senhor leitor”, etc. Este sistema de focalizações não se altera ao longo do romance e, como dissemos já, é em tudo idêntico ao das Memórias Póstumas de Brás Cubas, exceto quanto ao ponto de vista.
A originalidade do Dom Casmurro, assim, está calcada na posição específica que o narrador ocupa na “comborçaria fraternal masculina” tipicamente machadiana (bem dissimulada e sem espalhafato), pois se na primeira história o “Mago de Cosme Velho” depusera a pena na mão do amante, agora a entregou ao marido traído, sendo este (e seus naturais desdobramentos, trabalhados de maneira magistral pelo ficcionista) o principal motivo de diferenciação estrutural entre as duas obras-primas.
Porém, de primeiro examinemos a problemática da infecundidade masculina. São muitas as personagens que a ilustram já desde as páginas exordiais, que trazem a adolescência do narrador: José Dias, agregado da família de Bentinho, é um sujeito já qüinquagenário, aparentemente celibatário, sem filhos; a personagem “tio Cosme” é um velho advogado, que depois da viuvez sem prole foi residir à casa de dona Glória, sua irmã; “prima Justina”, também residente na casa de Bentinho, é igualmente uma viúva velha, sem descendentes nem enteados, de modo que seu finado marido constitui mais um quadro da inaudita galeria das figuras ilustrativas da implacável infecundidade masculina das personagens romanescas da maturidade machadiana.
Chegando a um período mais avançado da narrativa, temos que o mesmo Ezequiel, filho de Capitu e formador da convicção do adultério, morre ainda jovem e solteiro, sem deixar descendentes. Aliás, até mesmo Escobar, que teve filhos com a esposa e a amante, poderia ser enquadrado nesta maninhez de descendência, se estendermos um pouco o alcance da infecundidade masculina e tivermos em mente, além da morte de Ezequiel, o precoce desaparecimento da filha havida das bodas com Sancha. Vejamos o capítulo CXXIX, no qual o narrador interpela teoricamente a viúva de Escobar, como usa fazer com o leitor:

Dona Sancha, peço-lhe que não leia este livro; ou, se o houver lido até aqui, abandone o resto. (...) Não, minha amiga, não leia mais. Vá envelhecendo, sem marido nem filha, que eu faço a mesma coisa, e é ainda o melhor que se pode fazer depois da mocidade. (ASSIS, 1995, p. 154)

Eis uma informação mínima, diluída no livro, mas que é relevante para a compreensão da temática da infecundidade e, em última instância, para o estabelecimento do melancólico clima de aniquilamento que emerge do romance: Sancha era filha única e já não possuía pai nem mãe, quando da morte do marido; por isso partira para a província do Paraná com a filha, a fim de abrigar-se junto aos familiares do falecido marido. Contudo, no momento em que Bentinho “escreve” o livro, está “sem marido nem filha”, o que nos faz crer que também a menina morrera. Assim, também Sancha acaba por entrar no vastíssimo rol dos viúvos sem descendentes que proliferam no romance machadiano da maturidade. Bentinho, por seu turno, no momento em que se propõe a contar sua história, é igualmente um viúvo sem “frutos”. Aliás, de todas as personagens que povoaram a obra com alguma importância, restam apenas os dois, sem mais perspectivas senão aguardar pacientemente a morte que extinguirá de vez suas respectivas progênies...
Pois bem, é necessário discorrer mais detidamente a propósito da principal estampa representativa da temática da infecundidade masculina: o próprio narrador. Bentinho neste romance – assim como já sucedido com Brás Cubas e Rubião naqueles que protagonizam – é a ilustração máxima dessa obsessão machadiana. É verdade que na constância do seu infausto casamento com Capitu nascera uma criança, Ezequiel, do qual, porém, não era o progenitor. Não nascera logo, mas somente depois de cerca de três anos do enlace (o que podemos inferir do capítulo CIV, combinado com o capítulo CVIII), quando já abertamente se lastimava a ausência de rebentos.
Sobre a paternidade de Ezequiel, já vimos, no capítulo de revisão da fortuna crítica machadiana, que Massaud Moisés pronuncia-se no sentido de que ela não cabe a Bentinho, pois este não podia oferecer filhos à mulher. Capitu, nos sete anos em que permanecera em plena convivência com o marido (na faixa etária que vai dos 23 aos 29 anos, de ordinário fértil), teve apenas uma única concepção, e nenhum aborto. A impotentia generandi de Bentinho é uma possibilidade concreta e perfeitamente admissível, pois encontra várias evidências a ampará-la e reforçá-la, para além da improficuidade conjugal.
Com efeito, separado da esposa aproximadamente aos trinta anos de idade, ele colecionou, depois disso, incontáveis “amigas” (hoje lhes chamaríamos “amantes”), como confessa no capítulo CXLVII e deixa entrever nos capítulos II e CXIII; com uma delas, aliás, Bentinho mantivera uma ligação por prazo mais dilatado, como podemos inferir da circunstância de ter-lhe concedido regalias não efêmeras, como um veículo para uso próprio e um cocheiro bem fardado para servi-la rotineiramente, todavia não colheu filho algum desta como das outras mulheres com as quais se relacionara intimamente (nem sequer algum aborto, como o de Virgília), indício altamente sugestivo de sua impossibilidade orgânica de gerá-los, em especial se considerarmos que a ação do romance passa-se em época anterior de décadas aos métodos contraceptivos seguros da modernidade.
Porém, se Ezequiel não é filho de Bentinho, terá que ser de outro – e aí entraremos na “comborçaria fraternal masculina”.
A aliança das inclinações pessoais e da personalidade complexa de Capitu, do caráter sensual e interesseiro de Escobar e da ingenuidade incauta do Bentinho jovem dera azo a esta célebre comborçaria, conquanto o seu nascimento e desenrolar sejam naturalmente um tanto nublados pelo ponto de vista adotado (o do marido traído) e, sobretudo, pela técnica narrativa aqui empregada por Machado de Assis, sempre revestida pela preferência concedida à arte da sutileza e da sugestão, de uma linguagem calculadamente cautelosa que instala uma diegese algo brumosa e nevoenta (como não poderia deixar verossimilmente de ser, considerando-se a idade e a situação geral da personagem que tece a narrativa), de tal maneira que este romance, sendo prazeroso de ler, é escorregadio de analisar, reclamando atenção especial do leitor aos pormenores nodais, semeados com uma displicência de aparato. Nele evitam-se, ou, o que é mais comum, procrastinam-se as asserções peremptórias, que ainda assim não saem sem miúdos, e por vezes dispersos, preparativos, cuja fluidez é truncada pelos já conhecidos processos digressivos. No entanto, os escolhos e despistes do percurso, postos a serviço da verossimilhança do ponto de vista instituído, não impedem que o leitor isento compreenda a coerência interna que dá o significado global da história.
Pois bem, a perícia na dissimulação, a agudeza da inteligência e a beleza exuberante – tudo desenvolvido com notável precocidade – são as características fundamentais em cuja função podem ser compreendidos os movimentos de Capitu. O juízo inicial do agregado José Dias, que lhe acusara no capítulo XXV a obliqüidade e a dissimulação, não se desmentiu ao longo da narrativa, mas antes foi sendo confirmado pela sucessão das atitudes da própria Capitu. (Verdade é que o agregado é uma personagem não menos solerte que a namorada de Bentinho, mas cujo ofício quase único é agradar de todas as formas a família que o sustenta, e para tanto muda de parecer e opinião ao sabor das circunstâncias, contanto que, assim, agrade mais e melhor a essa família; presta-lhe, portanto, toda casta de obséquios e louvações, independentemente daquilo que ele observasse ou pensasse efetivamente, sendo em alternância sincero e hipócrita. José Dias não é destituído de argúcia, pelo contrário; porém essa argúcia está a serviço do servilismo de que ele vive – afinal, o homem não é mais que um agregado, alguém que sobrevive do favor de estranhos. Logo, cada parecer de José Dias precisa ser cotejado com os demais elementos da narrativa, e são esses demais elementos que, por um lado, corroboram a obliqüidade e a dissimulação de Capitu, porém, por outro lado, desmentem a ulterior opinião de que ela seja a melhor das esposas, opinião que o agregado expressa quando ela já está legitimamente casada com o chefe da casa, contra o qual, no cálculo do agregado, seria uma injúria, tão certa quão irremediável, um senão à conduta ou à moralidade da esposa).
Um dos muitos exemplos da aptidão de Capitu para a dissimulação está no capítulo XXXVIII, quando ainda era solteira e cambiava à socapa as primeiras carícias com o futuro marido: o pai de Capitu entra na sala logo depois de um beijo trocado entre ela e Bentinho; enquanto este permanece atônito e tolhido, “sem língua”, ela fala e age com tão natural desassombro que o pai nada suspeita, saindo dali perfeitamente enganado (ao menos nesta passagem específica, pois em vários outros momentos os pais de Capitu apenas fingem nada perceber). Fica a sugestão de que algo análogo ocorrerá mais adiante, mudando-se o ludibriado, mas não a atitude dissimulada da Capitu casada em relação à solteira. É o que lemos no capítulo CXIII, quando já insinuado o vínculo ilícito com Escobar:

Ao teatro íamos juntos; só me lembra que fosse duas vezes sem ela, um benefício de ator, e uma estréia de ópera, a que ela não foi por ter adoecido, mas quis por força que eu fosse. Era tarde para mandar o camarote a Escobar; saí, mas voltei no fim do primeiro ato. Encontrei Escobar à porta do corredor.
– Vinha falar-te – disse-me ele.
Expliquei-lhe que tinha saído para o teatro, donde voltara receoso de Capitu, que ficara doente.
– Doente de quê? – perguntou Escobar.
– Queixava-se da cabeça e do estômago.
– Então, vou-me embora. Vinha para aquele negócio dos embargos...
Eram uns embargos de terceiros; ocorrera um incidente importante, e, tendo ele jantado na cidade, não quis ir para casa sem dizer-me o que era, mas já agora falaria depois...
– Não, falemos já, sobe; ela pode estar melhor. Se estiver pior, desces.
Capitu estava melhor e até boa. Confessou-me que apenas tivera uma dor de cabeça de nada, mas agravara o padecimento para que eu fosse divertir-me. Não falava alegre, o que me fez desconfiar que mentia, para me não meter medo, mas jurou que era a verdade pura. Escobar sorriu e disse:
– A cunhadinha está tão doente como você ou eu. Vamos aos embargos. (ASSIS, 1995, p. 140-141)

O alvitre desta passagem é no sentido de que Bentinho estivera muito próximo de flagrar o adultério em ação (como seu homólogo Lobo Neves, no capítulo CIV das Memórias Póstumas de Brás de Cubas), mas voltara para casa muito antecipadamente, ao final apenas do primeiro ato – dos cinco que de ordinário compõem as peças dramáticas clássicas. Tudo aí cheira a engano, desde a moléstia que evanesce miraculosamente, até à informação importante sobre uns embargos de terceiros, a qual, entretanto – e assim é consignado no capítulo CXV – “não valia nada”, e, obviamente, não justificava a presença de Escobar a desoras na casa de Bentinho.
A explicação mesma de Capitu, alegando haver agravado a enfermidade com o desiderato de fazer o marido ir à diversão, poderia parecer um tanto insólita, estonteante até, pois um padecimento mais grave da mulher tenderia, ao revés, a fazer o marido desistir das distrações e prestar-lhe assistência – se o propósito da alegação de agravamento não tivesse sido justamente não o acompanhar ao teatro. Tudo no capítulo CXIII (inclusive a significativa ausência de alegria em Capitu, mais condizente com uma frustração inopinada do que com a situação de alguém que se livra por completo de um padecimento) sugere que Capitu, de ajuste com Escobar, armara o afastamento do marido para estar a sós com o amante durante aquelas horas da noite, por isso mesmo é que este não fora a casa jantar, mas fizera-o na cidade, para não ter embaraços com a própria esposa.
De resto, não foi esta a única vez que Escobar estivera na casa de Bentinho na ausência deste, como prova o episódio da corretagem das dez libras esterlinas, relatado no capítulo CVI (e notemos que também Brás Cubas encontrava meios de freqüentar a casa de Virgília na ausência de Lobo Neves; aliás, são várias as situações transpostas de um romance a outro, mudando o ponto de vista narrativo).
No mesmo capítulo CXV do Dom Casmurro temos a informação da repentina e estranha frieza arredia da mãe de Bentinho para com a nora e, fato singularmente sugestivo, para com o neto. Capitu, como sempre, justifica com arte a ocorrência: seriam os ciúmes e leves rusgas da tradição de sogra e nora. Isso talvez explicasse a frieza em relação a si, mas não no respeitante a Ezequiel.
Ainda no capítulo CXV temos também a notícia da aceleração súbita do envelhecimento de dona Glória, ela cujo amadurecimento até então vinha sendo tão lento, tão moroso, a ponto de Escobar, julgando-a pela aparência, subtrair-lhe mais de dez anos (capítulo XCIII). É de presumir, portanto, que teria já dona Glória conhecimento da comborçaria, de tal modo que Bentinho porventura estaria na condição do adágio: o último a saber! Ou seja, a sugestão da narrativa nessa passagem é no sentido de que o envelhecimento de dona Glória, de natural tão retardado, saíra dos trilhos ordinários em razão de alguma grave conjuntura – e que contexto poderia ser mais grave para uma mãe extremosa do que o da desonra e desventura do filho único? Que outra explicação plausível para o fato de uma avó, até aí tão amorosa para com o único neto, de brusco esfriar-se com ele, afastar-se, exceto alguma informação de que a criança possivelmente não seja seu neto? Criança que, quanto mais cresce, tanto mais vai fazendo-se parecida com Escobar...
É necessário conhecer um pouco mais o Escobar, a fim de avaliar melhor a sua semelhança com Ezequiel e a sua afinidade com Capitu. Ele e Bentinho foram condiscípulos no seminário para formação de padres, fazendo-se amigos; aliás, Bentinho, fosse pela timidez, fosse por outra idiossincrasia qualquer, era mancebo de poucos ou nenhuns amigos, no seminário mesmo Escobar fora o único. Dos anos que passara em São Paulo na faculdade de Direito e do próprio exercício da advocacia não lhe vieram amigos íntimos cuja importância subisse ao ponto de fazê-los merecedores de menção na narrativa. Só Escobar. (Nem consideramos aquele velho tenor que algumas vezes ia jantar com o Bentinho já velho e é unicamente referido naquele literariamente esplêndido, mas digressivo e marginal capítulo IX, “A Ópera”).
Por parte de Escobar, porém, a amizade não era desinteressada. Nos capítulos XCIII e XCIV, a título de exibição de habilidades aritméticas, vemo-lo obter facilmente a satisfação do seu desejo de descobrir qual é a renda mensal dos imóveis alugados pela família do amigo; por uma brincadeira com as letras iniciais dos nomes dos escravos da família, sonda-lhes o número; perscruta dados sobre a grandeza das casas e da antiga fazenda dos Santiagos – tudo com naturalidade artificial, mal disfarçada abelhudice, a que o jovem Bentinho, entretanto, não malicia, tão avolumada é a sua ingenuidade e a confiança que vai depositando no único amigo. Escobar, conhecendo as cifras e julgando ainda bela e fresca a mãe do amigo, teria – segundo a opinião da “prima Justina”, expressa no capítulo XCVIII – alimentado o interesse de levá-la ao altar em segundas núpcias. Há, pois, em Escobar, algo daquele João Coqueiro de Casa de Pensão.
No quesito do interesse Escobar e Capitu são semelhantes, porquanto também ela demonstra para com Bentinho interesses que estão bastante além da pura e ingênua manifestação dos sentimentos. Capitu não é uma heroína romântica, mas uma realista precoce: seus passos não se guiam apenas pelo amor, embora este sentimento não esteja necessariamente (ou por completo) excluído. Nem mesmo na adolescência, quadra favorável, entrevemo-la suspirar ou flagramo-la em uma atitude evasiva, de sonho ou idealização tipicamente românticos, senão sempre a mobilizar seus extraordinários dotes de inteligência, para conduzir Bentinho e manobrar as pessoas à sua volta, de tal modo que suas metas sejam atingidas não de uma vez, de forma clara e direta, mas aos poucos, sinuosamente, ofidicamente. Vemo-la, outrossim, dissimulando sempre e cada vez com maior desenvoltura, mas nem por isso o seu interesse material deixa de transparecer aqui e além, como na admiração demonstrada perante a notícia das dádivas milionárias de César (capítulo XXXI).
Capitu detém uma personalidade complexa, tanto se move por interesse de bem-estar material (o que talvez ocorra na maior parte do tempo), quanto por sentimentos um pouco mais nobres (por exemplo, servindo a Sancha como enfermeira, por amizade, como narrado no capítulo LXXXI), o que não raro atordoa a simplificação de quem espera comportamentos lineares. De mais a mais, a primeira metade do romance traz vários capítulos ilustradores da afetividade gestada na constante proximidade de Bentinho, na qual ela vivia; cresceram juntos, bebera com ele as primícias do coração.
Porém, nem só de coração vive a rapariga pobre que almeja ascender socialmente e desfrutar de bens tais como aqueles que ela encontra na casa do vizinho e amigo, como informa o narrador, verbi gratia, no capítulo XXXI:

Já então namorava o piano da nossa casa, velho traste inútil, apenas de estimação. Lia os nossos romances, folheava os nossos livros de gravuras, querendo saber das ruínas, das pessoas, das campanhas, o nome, a história, o lugar. (...) A pérola de César acendia os olhos de Capitu. Foi nessa ocasião que ela perguntou a minha mãe por que é que já não usava as jóias do retrato; referia-se ao que estava na sala, com o de meu pai; tinha um grande colar, um diadema e brincos. (ASSIS, 1995, p. 48-49)

Há inegável arrivismo em Capitu, como há também curiosidade e certa lucidez na inteligência das circunstâncias e pessoas que a cercam. Tudo isso era posto a serviço da consumação dos seus propósitos. Nem havia outro caminho a seguir que não fosse o do casamento – a sua sociedade não reservava melhor posição para as mulheres, como se para elas não houvesse vida sem o oxigênio do liame matrimonial. Essas núpcias, para Capitu, representavam tudo – a posse legal do seu amigo de infância e namorado de adolescência, como também o conforto e o prestígio advindos da investidura em uma abastada família como a do almejado marido. E por falar em família, Capitu encontrara na própria casa o terreno profícuo para fazer medrar as suas tendências naturais. Pádua e Fortunata também têm interesse material na ligação da filha com Bentinho, ligação lobrigada desde sempre como um bilhete de loteria; fazem vista grossa e ouvidos moucos ao namoro dos dois, ao beija-beija pelos cantos da casa, mesmo sabendo que o rapaz está prometido à vida eclesiástica; dissimulam constantemente, como se nada estivessem a perceber. Com essa leniência caseira, aliada ao estreitamento de relações com a família de Sancha, nem deve ter sido difícil, para Escobar, fazer chegar às mãos de Capitu as cartas de Bentinho, ou receber as dela para remeter a este, nos longos anos do curso de Direito. Capítulo XCVIII:

A separação não nos esfriou. Ele foi o terceiro na troca das cartas entre mim e Capitu. Desde que a viu animou-me muito no nosso amor. As relações que travou com o pai de Sancha estreitaram as que já trazia com Capitu, e fê-lo servir a ambos nós, como amigo. A princípio, custou-lhe a ela aceitá-lo, preferia José Dias, mas José Dias repugnava-me por um resto de respeito de criança. Venceu Escobar; posto que vexada, Capitu entregou-lhe a primeira carta, que foi mãe e avó das outras. Nem depois de casado suspendeu ele o obséquio... Que ele casou – adivinha com quem –, casou com a boa Sancha, a amiga de Capitu, quase irmã dela, tanto que alguma vez, escrevendo-me, chamava a esta a “sua cunhadinha”. Assim se formam as afeições e os parentescos, as aventuras e os livros. (ASSIS, 1995, p. 125)

Eis um ponto nodal no processo de apropinquação de Escobar e Capitu. Durante cerca de cinco anos foi Escobar o medianeiro das cartas trocadas entre Bentinho e sua já agora prometida Capitu. Não é à toa que esta experimentasse vexame no momento de confiar àquele “estranho” a primeira carta, por sentir que tal intermediação traz em si implicações de cumplicidade nada triviais ou desprezíveis, sobretudo em uma sociedade na qual, em função dos seus valores morais, a correspondência de senhoras e senhoritas com um homem que não fosse seu pai, irmão ou marido era julgada como um comportamento avesso à moralidade e, ipso facto, era intensamente patrulhada pelas famílias, de forma que, para manter as aparências e salvaguardar a honra, uma tal correspondência devesse ser por completo camuflada – do contrário, aliás, Bentinho e Capitu dispensariam o intercessor, eles que em presença gozavam tanta liberdade, e remeteriam as cartas diretamente um ao outro. Se eles, tão íntimos, precisavam rebuçar a remessa e o recebimento das missivas, naturalmente o “obséquio” do medianeiro dever-se-ia prestar com a máxima discrição – de modo discretíssimo, como diria o agregado dos superlativos; de maneira que os envelopes deviam passar das mãos de Escobar para as de Capitu, e vice-versa, seguindo um bem arranjado sistema de cautelas e precauções, de sorte a manter afastados eventuais olhos curiosos. Nem consta que Sancha ou seu pai soubessem da coisa, o que podemos inferir principalmente por virtudes da ênfase que a narrativa põe na circunstância de haver a intercessão de Escobar prosseguido, mesmo depois do seu casamento com Sancha.
De resto, o aceite de tal intermediação, por si só, era já um importante precedente de transgressão na constituição moral de Capitu, uma primeira séria quebra do padrão, da ordem, da moralidade em vigor.
Não é necessário ser um Einstein para perceber que essa situação punha Capitu e Escobar em notável estado cumplicidade, tão crescente quão naturalizada com o passar do tempo. Força é declarar que o principal responsável por isso foi o próprio Bentinho, que podendo dispor do agregado José Dias, preferiu o melhor amigo, assim colaborando grandemente para o próprio infortúnio. Porque se o único defeito de Escobar (que de pronto se impressionara com a beleza singular de Capitu, como podemos deduzir daquele “Desde que a viu animou-me muito no nosso amor”) fosse o interesse material, vá, o prejuízo talvez não fosse tão catastrófico. Ele, todavia, em aditamento a isso, era homem sensual e dado a aventuras amorosas. Vejamos um fragmento do capítulo CIV:

Escobar e a mulher viviam felizes; tinham uma filhinha. Em tempo ouvi falar de uma aventura do marido, negócio de teatro, não sei que atriz ou bailarina, mas, se foi certo, não deu escândalo. Sancha era modesta, o marido trabalhador. Como eu um dia dissesse a Escobar que lastimava não ter um filho, replicou-me:
– Homem, deixa lá. Deus os dará quando quiser, e se não der nenhum é que os quer para si, e melhor será que fiquem no céu.
– Uma criança, um filho é o complemento natural da vida.
– Virá, se for necessário.
Não vinha. Capitu pedia-o em suas orações, eu mais de uma vez dava por mim a rezar e a pedi-lo. Já não era como em criança; agora pagava antecipadamente, como os aluguéis da casa. (ASSIS, 1995, p. 130)

Sem embargo da circunspecção do narrador, temos aí a informação de que Escobar não era exatamente santo e casto marido, sujeitava-se à luxúria extraconjugal ainda nos primeiros anos de casado, não resistindo aos apelos da delectacio venerea, embora salvando as aparências. Nada que o impedisse de possuir qualidades outras, ligadas ao trabalho e à honradez na vida comercial. Também Escobar é uma personagem complexa. Não era propriamente inimigo oculto de Bentinho; tinha-lhe amizade até certo ponto, a despeito de não ser uma amizade a toda prova ou desprovida de interesse; prestava-lhe pequenos favores eventuais, sobretudo no início da carreira de advogado do amigo; procurava reconfortá-lo diante dos padecimentos da infecundidade masculina (um cínico poderia dizer aqui que, sentindo o amigo desconsolado com a falta de filhos, Escobar por amizade incumbira-se de resolver-lhe a complicação, dando-lhe um – mas até para o cinismo há limites).
Como se tudo isso não bastasse, acrescentemos a excessiva proximidade em que viviam os dois casais, em certa altura freqüentando-se já com assiduidade diária (não por acaso há igual situação na narrativa de Brás Cubas, como vimos oportunamente). Nem aproveitou ao narrador a lição que atribui a João de Barros (capítulo CXVII), segundo a qual os bons amigos devem guardar determinado distanciamento.
É tanta proximidade que Sancha, na noite da véspera da morte do marido, narrada capítulo CXVIII, chega ao ponto de oferecer-se como amante a Bentinho, quase instaurando uma promiscuidade nos moldes daquela narrada na oitava novela da oitava jornada do Decamerão, de Giovanni Boccaccio[12]. (Verdade é que Bentinho – confundido pelo alarido de Sancha no dia seguinte, quando morre Escobar, e sobretudo por só conhecer o mundo desde a desprivilegiada perspectiva de marido – não reúne na própria experiência, como Brás Cubas, elementos para concertar o oferecimento de Sancha na noite anterior, com o choro do dia subseqüente; não consegue compreender que ela poderia, com igual sinceridade, trair o marido hoje e prantear-lhe a morte amanhã. A oposição do ponto de vista do narrador do Dom Casmurro em relação ao das Memórias Póstumas de Brás Cubas gera a oposição de convicções, como vimos em tempo ao analisarmos, pela ótica do amante, o comportamento de Virgília no enterro do marido).
Bem, perante de tal oferecimento e considerando as forças naturais e culturais que atuam sobre homens e mulheres em semelhanças circunstâncias, que não podemos pensar dos respectivos cônjuges, se Sancha, modesta e tímida, dá tal passo na direção de Bentinho – ele que está relativamente longe de possuir o mesmo arrojo e esbelteza, experiência, estatura e porte atlético de Escobar?
É tanta proximidade entre os casais, que Bentinho, conquanto se refreie, e não detenha a mesma sensualidade máscula de Escobar, chega a ter desejos equívocos em relação a Sancha – ela que está a igual distância de possuir os mesmos encantos de formosura que Capitu. E observemos que Sancha e Bentinho, para além do muito menor atrativo físico, da menor beleza no cotejo com os seus homólogos, jamais tiveram a cumplicidade de Escobar e Capitu, nascida, quando mais não fosse, dos vários anos da intermediação das cartas. Tudo isso considerado, não será difícil concluir que, só em face dos elementos até então postos e tendo em vista a analogia do caso de Sancha e Bentinho, é agigantada a probabilidade do conúbio clandestino de Capitu e Escobar – configurando a tão repetida comborçaria fraternal masculina. Ainda há, porém, o filho Ezequiel...
A compreensão da semelhança física entre o menino Ezequiel e Escobar exige que conheçamos, antes, um pouco da compleição corporal deste último, ao menos no que houver de mais característico. Dá-no-la o narrador no capítulo LVI, tão logo mencione o futuro amigo pela primeira vez. Vejamos:

Era um rapaz esbelto, olhos claros, um pouco fugitivos, como as mãos, como os pés, como a fala, como tudo. Quem não estivesse acostumado com ele podia acaso sentir-se mal, não sabendo por onde lhe pegasse. Não fitava de rosto, não falava claro nem seguido; as mãos não apertavam as outras, nem se deixavam apertar delas, porque os dedos, sendo delgados e curtos, quando a gente cuidava tê-los entre os seus, já não tinha nada. O mesmo digo dos pés, que tão depressa estavam aqui como lá. (ASSIS, 1995, p. 80)

Deixemos de lado a esbelteza, o sestro de não encarar o interlocutor e a fala meio engrolada; concentremo-nos naquilo que é a maior peculiaridade física de Escobar: a forma e as dimensões dos pés e mãos. Peculiaridades marcantes, haja vista que Bentinho notou-as já desde os primeiros instantes do conhecimento com o condiscípulo, ainda no seminário. Não teria dificuldades para ir notando-as, à medida que essas especificidades físicas de Escobar, de cambulhada com suas demais feições, iam reaparecendo, cristalinas, acusadoras, no menino Ezequiel, mormente em razão da privança diária com o amigo, podendo, por conseguinte, confrontá-las ou, antes, ser confrontado com elas a todo momento; e forçoso é admitir que a semelhança não diz respeito apenas a simples aspectos fisionômicos, mas também a características específicas pouco usuais como a formatura de pés e mãos especialmente curtos e delgados.
A indubitável semelhança entre Escobar e o filho de Capitu, aliada aos elementos já acima mencionados e ao comportamento de Capitu nos lances dramáticos imediatos à morte de Escobar, constitui um feixe de indícios materiais que determinaram a convicção do narrador e a conseqüente separação do casal Santiago, com o exílio de Capitu e do filho na Suíça. Na vida real (pedra de toque da verossimilhança romanesca), tal conjunção de indícios daria que pensar a qualquer marido.
Porém, será que pode haver dúvida plausível, perfeitamente racional e objetiva, quanto à grande e particular semelhança física de Escobar e Ezequiel, quando todo o romance diz expressamente o inverso? Ou quanto à probidade da informação prestada pelo narrador, enquanto tal em tudo tão circunspecto? Existirá alguma possibilidade razoável de que o narrador esteja a caluniar a mulher de modo deliberado e doloso, apenas para aplacar sua consciência? A narrativa, que é a realidade com a qual trabalha o crítico literário, traz diversas substâncias proeminentes a demonstrar que não. Em verdade, um leitor isento e livre de injunções e escusos interesses político-partidários, que leia e examine o Dom Casmurro atentando em todos os seus pormenores e sugestões, se por acaso cogitar da inocência de Capitu e suposta calúnia de Bentinho (e que de si já é bastante improvável em um leitor em estado de normalidade psicológica), não será senão para considerá-la remotíssima.
Para documentar a resposta às questões postas no parágrafo anterior, vamos a uma das mais determinantes dentre algumas informações precisas fornecidas por este caprichoso artefato literário – o diálogo decisivo travado por Bentinho e Capitu no capítulo CXXXIII (clímax da tensão romanesca), quando aquele diz não ser o pai de Ezequiel:

– Só se pode explicar tal injúria pela convicção sincera; entretanto, você, que era tão cioso dos menores gestos, nunca revelou a menor sombra de desconfiança. Que é que lhe deu tal idéia? Diga – continuou, vendo que eu não respondia nada –, diga tudo; depois do que ouvi, posso ouvir o resto, não pode ser muito. Que é que lhe deu agora tal convicção? Ande, Bentinho, fale! Despeça-me daqui, mas diga tudo primeiro.
– Há coisas que se não dizem.
– Que se não dizem só metade; mas, já que disse metade, diga tudo.
(...)
Não disse tudo; mal pude aludir aos amores de Escobar sem proferir-lhe o nome. Capitu não pôde deixar de rir, de um riso que eu sinto não poder transcrever aqui; depois, em um tom juntamente irônico e melancólico:
– Pois até os defuntos! Nem os mortos escapam aos seus ciúmes!
Concertou a capinha e ergueu-se. Suspirou, creio que suspirou, enquanto eu, que não pedia outra coisa mais que a plena justificação dela, disse-lhe não sei que palavras adequadas a este fim. Capitu olhou para mim com desdém, e murmurou:
– Sei a razão disto; é a casualidade da semelhança... A vontade de Deus explicará tudo... Ri-se? É natural; apesar do seminário, não acredita em Deus; eu creio... Mas não falemos nisto; não nos fica bem dizer mais nada. (ASSIS, 1995, p. 162-163)

Temos aí subsídios com base nos quais, com segurança, decidir das questões postas. Admitamos, por amor do debate e ad argumentandum, que uma interpretação de romance sustentada em procedimentos de instrução de processo judicial, à guisa do que se formulou lá no Otelo Brasileiro de Helen Caldwell, ainda possa ser considerada crítica literária positiva. Ainda aí um rábula contratado pela “crítica literária” feminista para defender Capitu não poderia esquivar-se a um princípio comezinho do Direito Processual, segundo o qual é defeso aos advogados extrapolar as palavras do próprio cliente, ou ir contra elas. Não é à toa que costumam orientá-lo a permanecer calado, não apenas para não fazer prova contra si, mas também para dar-lhes total liberdade de ação defensiva. Prestando livremente o cliente alguma declaração decisiva, os seus advogados a ela prendem-se necessariamente.
Pois bem, é a própria Capitu, principal interessada na causa da sua suposta inocência, quem reconhece a semelhança física entre Ezequiel e Escobar, embora acuse aí não mais que a casualidade e os imponderáveis desígnios da Providência. Também é ela mesma quem reconhece que o narrador age por convicção e, ipso facto, com sinceridade, conquanto alegadamente induzido a erro por aquela antedita casualidade. Não há aqui contradição na fala de Capitu, porque uma convicção sincera não implica, por si só, acerto na tomada de julgamento; como também a hipocrisia não importa, obrigatoriamente, em equivocada tomada de juízo. Os sinceros podem errar; como os hipócritas, acertar, ao chegarem a uma conclusão.
A própria Capitu, portanto, não contesta a idoneidade do marido nesta como em outras passagens. Em verdade não há na obra subsídios (uma única fala, uma única passagem, uma única afirmação) que permitam pôr objetivamente em dúvida a idoneidade do relato feito pelo narrador – nem constituem prova do contrário as ocorrências que ele aduz em desfavor de si mesmo ao longo do livro (como a ideação de envenenar a criança), ou em possível contraste com suas convicções (como a semelhança entre Capitu e a mãe de Sancha), pois ele não narra apenas o que “lhe interessa”, mas tudo (sem excluir as ambigüidades) que lhe vem à memória de homem velho e já sem parentes a quem prestar contas de sua vida. Aliás, não há uma única passagem no Dom Casmurro, com base na qual se possa declarar, sem leviandade, que o ciúme retrospectivo ou o abjeto desejo de vingança contra uma pessoa já morta sejam os móveis que decidiram Bentinho, vinte e tantos depois, a narrar a sua história. Tanto o capítulo II, quanto o de encerramento, trazem as razões que motivaram a lavratura da narrativa, não existindo, no universo do romance, a expressão de razões outras. Resta, portanto, descobrir o que possui mais força de significação literária: o arranjo das palavras, idéias e conceitos presentes na obra ou as crenças e desejos nela projetados pela crítica literária politizada do momento. Apostamos na primeira hipótese.
No capítulo CXLV, quando do regresso de Ezequiel da Europa, estando já falecida a mãe, temos a descrição do encontro entre “pai” e “filho” supostos. Da palestra de ambos (e em um dos raros momentos nos quais a narrativa traz o discurso indireto, quando o narrador não transcreve literalmente a fala da personagem), avulta a seguinte passagem, na qual Ezequiel transmite a Bentinho o que deste lhe dizia a mãe nos anos de Suíça: “A mãe falava muito em mim, louvando-me extraordinariamente, como o homem mais puro do mundo, o mais digno de ser querido” (ASSIS, 1995, p. 168). Ora, pois! É absolutamente forçoso reconhecer que isso não é, nem de longe, o que diria ao filho uma mãe iníqua e torpemente infamada por um caluniador perverso, zeloso apenas das prerrogativas da “classe social que representava” (como declaram, em paranóica suposição, os políticos dedicados à crítica literária). É, pois, a própria Capitu, em privança com o filho, quem reconhece a boa-fé e a idoneidade de Bentinho. Ezequiel, como qualquer outro filho, não poderia jamais cogitar em que seria injusto algoz da mãe um homem que ela mesma, constantemente, dizia ser “o mais digno de ser querido”.
Bem, retomando a antedita conversa decisiva entre Bentinho e Capitu, vemos que esta não contesta a parecença de Ezequiel e Escobar, nem a idoneidade moral de Bentinho (tampouco o faz depois de exilada pelo marido, como acabamos de verificar), mas, de início, contesta, sim, o acerto da conclusão à qual este chegara com base nesses mesmos fatos. Ou seja, o que se evidencia das citadas palavras de Capitu, ditas em sua própria defesa até aí, é que o marido injuriava-a por indução de uma infeliz coincidência de traços físicos entre o menino Ezequiel e o finado Escobar (coincidência possível e já registrada pela semelhança de Capitu com a mãe de Sancha, capítulo LXXXIII), agravada pelos ciúmes de Bentinho – embora estejamos já fatigados de tanto saber que os ciúmes de um dos cônjuges não tornam o outro eo ipso inocente (lá o comprova a história de Lobo Neves e Virgília). No fundo, o máximo que se poderia alegar em defesa da suposta inocência de Capitu, com supedâneo em suas próprias palavras, é que ela tentou fazer crer ao marido que este seria tão vítima da fatídica parecença, quanto ela mesma.
Não o conseguiu, uma vez que suas palavras são incontinenti infirmadas por sua reação ante o inesperado retorno da criança à sala, cuja imagem foi, por ambos, irresistivelmente cotejada com o retrato de Escobar, que jazia sobre a mesa do escritório, como informa-nos o capítulo CXXXIX:

Palavra que estive a pique de crer que era vítima de uma grande ilusão, uma fantasmagoria de alucinado; mas a entrada repentina de Ezequiel, gritando: “Mamãe! mamãe! é hora da missa!” restituiu-me à consciência da realidade. Capitu e eu, involuntariamente, olhamos para a fotografia de Escobar, e depois um para o outro. Desta vez a confusão dela fez-se confissão pura. Este era aquele; havia por força alguma fotografia de Escobar pequeno que seria o nosso pequeno Ezequiel. De boca, porém, não confessou nada; repetiu as últimas palavras, puxou o filho e saíram para a missa. (ASSIS, 1995, p. 163)

Capitu poderia logo aí ter confessado tudo expressamente, “de boca”, mas não o fez. Por quê? Porque ainda lhe queimava a esperança de manobrar Bentinho como sempre fizera, o que não deixou de tentar, mesmo quando já exilada, como podemos ver no capítulo CXLI. Confessar era a única atitude realmente irremediável. Nas Memórias Póstumas de Brás Cubas há uma breve, porém assaz significativa e esclarecedora dissertação sobre o comportamento de homens e mulheres nas relações “defesas”. Vamos a ela, pois é o criador explicando sua criação por meio de uma de suas mais notáveis criaturas – explicação que de resto se coaduna à perfeição com o tratamento que o ficcionista dá à temática do adultério nas diversas obras em que ela sobressai.

Em pontos de aventura amorosa, achei homens que sorriam, ou negavam a custo, de um modo frio, monossilábico, etc., ao passo que as parceiras não davam por si, e jurariam aos Santos Evangelhos que era tudo uma calúnia. (...) Além disso (refiro-me sempre aos casos defesos), a mulher, quando ama outro homem, parece-lhe que mente a um dever, e portanto tem de dissimular com arte maior, tem de refinar a aleivosia.
(...)
Mas seja ou não verdadeira a minha explicação, basta-me deixar escrito nesta página, para uso dos séculos, que a indiscrição das mulheres é uma burla inventada pelos homens; em amor, pelo menos, elas são um verdadeiro sepulcro. Perdem-se muita vez por desastradas, por inquietas, por não saberem resistir aos gestos, aos olhares; e é por isso que uma grande dama e fino espírito, a rainha de Navarra, empregou algures esta metáfora para dizer que toda aventura amorosa vinha a descobrir-se por força, mais tarde ou mais cedo: “Não há cachorrinho tão adestrado, que alfim lhe não ouçamos o latir”. (ASSIS, 2010, p. 167-168)

Para Machado de Assis, não haveria verossimilhança em uma personagem feminina que confessasse expressamente ao marido o cometimento do adultério. A razão disso está no fato de que, para a mulher do contexto histórico em que vivera o autor do Dom Casmurro, o gozo da consideração familiar, do apreço dos amigos, da posição respeitável e honrada na sociedade – todo ele dependia da boa fama, da reputação ilibada no casamento, de onde se segue que qualquer ocorrência ou empresa passível de ofuscar, manchar ou denegrir essa boa nomeada deveria ser empreendida sob todos os disfarces e dissimulações imagináveis. Jamais confessada, nem sequer sob tortura, sobretudo ao marido, fiador-mor da honradez e da honestidade da esposa. A expressa confissão da infidelidade conjugal implicava a renúncia irreversível e imediata de todas as considerações, todos os apreços, todas as posições e o que mais houvesse, de modo que era um passo muito mais difícil de dar que aquele que conduzia ao próprio adultério.
Por isso mesmo é que as mulheres que enveredassem por um caminho interdito pelos valores morais do seu meio, como Virgília e Capitu, se por infortúnio pisassem em uma “casca de banana”, escorregando a tal ponto que lhes lobrigassem a infâmia, procurariam tudo negar com toda a veemência e indignação, jurando mesmo pelas chagas de Cristo e sob os Santos Evangelhos, agarrando-se, como um náufrago à última tábua, à esperança de incutir dúvida no espírito do marido, que de regra poderia reunir um bom conjunto de evidências, mas (supunham elas) não a certeza, exceto se as colhesse em flagrante delito, não sendo esta a situação de nenhuma das duas.
Ademais, tal cena de flagrante aborrecia a finura machadiana e, ipso facto, é alheia aos seus romances da maturidade. Tal é a explicação que vislumbramos para a ausência de confissão expressa de Capitu, de resto tornada irrelevante, em face dos demais elementos postos e desse último olhar ao filho que volta à sala inopinadamente. Aliás, não fique sem registro que o Bentinho adulto, tomando a atitude resoluta que tomara, surpreende o leitor, o qual talvez não esperasse que aquele adolescente, outrora tão manobrado e fraco, um dia se investisse de tamanha força moral, como a que sempre foi necessária para desfazer-se um casamento, em especial no seu contexto histórico. Com o precoce desaparecimento do comborço ou até mesmo sem esta circunstância atenuante, um marido um pouco mais débil (como o Lobo Neves das Memórias Póstumas de Brás Cubas ou o Miranda de O Cortiço) poderia, ainda que com alguma relutância moral, acomodar a situação...
Outro ponto crucial da última citação machadiana, em que devemos atentar com todo o critério, concerne ao fato de que, não obstante jamais confessem expressamente, as mulheres, desde que engolfadas em uma ligação clandestina, inevitavelmente incidirão em atitudes comprometedoras, embora sutis, que podem dar ensejo à sua perda. Esses atos são perpetrados, segundo vimos, porque elas seriam “desastradas”, “inquietas”, e não saberiam “resistir aos gestos, aos olhares”. Não por acaso, e em que pese a toda a perícia que possuía nas artes da dissimulação, foi justamente o fato de não ter conseguido resistir a alguns gestos e, sobretudo, a alguns olhares que selou o destino de Capitu.
A obra de Machado de Assis, pela “pena da galhofa” do solerte e desabusado Brás Cubas, fornece indicações bastantes à compreensão do comportamento de personagens como Capitu, que no adultério reproduz os passos de Virgília, com a diferença que, transferindo-se, juntamente com o ponto de vista narrativo, a temática da infecundidade masculina do amante para o marido (com o escopo de mantê-la no plano de importância do protagonista), a paternidade do filho único, salvando Virgília, perdeu Capitu.
Porém, ainda assim, pode haver dúvida fundada, não artificial ou paranóica, quanto à paternidade do filho de Capitu? In nuce, a suma das sumas é decidir se a incontestável e aguda semelhança física de Ezequiel e Escobar – conjugada com todos os demais subsídios trazidos pela narrativa (a assaz provável impotentia generandi de Bentinho; a demonstrada sensualidade de Escobar; o arrivismo, o interesse material e o reconhecido caráter oblíquo e dissimulado de Capitu; a intimidade excessiva mantida pelos casais; a confiança irrestrita que o jovem Bentinho depositava no esquivo Escobar; o olhar com o qual Capitu fitara o amigo morto; o olhar que lançara ao filho na conversa decisiva com o marido, etc.) – é uma colossal, simples e inverossímil coincidência de mau-gosto ou é a cereja deste fascinante bolo da comborçaria fraternal masculina, com travo da infecundidade masculina. Afigura-se-nos amplamente implausível e racionalmente insustentável tão enorme concurso de circunstâncias fortuitas nada banais, contrárias ao entendimento machadiano quanto ao adultério feminino, como também tamanho erro de julgamento por parte de um narrador tão circunspecto e de um marido que desde a adolescência amava a vizinha e futura esposa (a ponto de contrair um casamento desigual sem cogitar da desigualdade, nem jamais esquecer Capitu, ainda décadas depois da separação), de modo que o Dom Casmurro apresenta-se-nos seguramente como a reelaboração machadiana da dupla temática de sucesso literário das Memórias Póstumas de Brás Cubas, agora sob o ponto de vista do marido traído que rompe o véu da dissimulação e alcança a verdade, a seu pesar.


3.4. Esaú e Jacó

Quarto romance da maturidade machadiana, vindo a lume em 1904, Esaú e Jacó não é um romance histórico, muito embora explore e apresente, como pano de fundo da trama romanesca, eventos que marcam o fim do regime imperial e a implantação do republicano no Brasil. Este romance traz, na variação e nas especificidades, tanto do narrador, quanto dos traços característicos da focalização, o tempero para a persistente recorrência temática, já assinada nos três romances precedentes.
Aqui estamos diante de outra focalização heterodiegética, como no Quincas Borba, uma vez que o relator não toma parte na diegese romanesca, estabelecendo-a com recurso a uma verbalização em terceira pessoa. Há, porém, um pequeno complicador: a obra abre-se com uma “advertência”, na qual a autoria do texto é atribuída ao Conselheiro Aires e, como este mesmo Conselheiro é também uma personagem da trama, não seria totalmente disparatado conjecturar a hipótese de que se trate de um narrador homodiegético.
Não é o caso, contudo. Afora a tal advertência (que não compõe a narração em si, mas funciona como uma espécie de prólogo ou apêndice à obra), inexiste vinculação entre o narrador e a personagem Aires. Esta é tratada como qualquer outra pessoa da história e, considerando que é interna a focalização, tem sua intimidade psicológica tão devassada pelo narrador quanto as demais personagens. Aliás, a focalização é também onisciente, de modo que o narrador sabe tudo acerca de todos, sem um conhecimento especial a propósito do Conselheiro, pois relata as conjecturas e movimentos íntimos de Aires da mesma forma que, por exemplo, os de Natividade ou Flora.
Outra persistência deste romance é a focalização interventiva, aliás, um vinco tão pronunciado quanto reconhecido do estilo machadiano. O narrador, em bom número de capítulos, interpela o leitor, com ele dialoga constantemente, guiando-o pelos meandros da história, ou utilizando-se disso como pretexto para as múltiplas digressões que muito colaboram na conhecida progressão remanchada do enredo, que é outra impressão digital estilística deixada por Machado de Assis em seus textos.
A comborçaria ou rivalidade fraternal masculina está presente neste romance, em diversos graus de desenvolvimento e variados níveis de interesse por parte do narrador, que dedica mais ou menos atenção a cada caso havido, entremeando-os com assuntos incidentais. São nada menos que três casos, posto frustrados todos, uma vez que apenas um dos rivais, ou mesmo nenhum deles, obtém a posse efetiva da mulher disputada. Os dois primeiros são como que esboços para o terceiro, este sim relevante (além de curioso) caso de comborçaria ou rivalidade fraternal masculina, envolvendo os irmãos gêmeos. Todavia, vamos por partes.
A primeira das comborçarias ou rivalidades fraternais masculinas é tracejada rapidamente no capítulo IV, não indo além. Traz nos vértices Natividade, Santos (o marido) e João de Melo (parente do marido). Com o enriquecimento meteórico de Santos, que graças a umas prodigiosas especulações – não esmiuçadas no romance – faz-se magnata, capitalista e banqueiro, João de Melo não hesita em ir à Corte em sua demanda, a fim de obter para si um emprego como diretor de banco, dado o parentesco de ambos. Santos, que procura fugir aos parentes e deseja livrar-se, com a máxima rapidez, da importuna pessoa do João, arranja-lhe um lugar de escrivão em Maricá, terra natal deles.
Entrementes, João de Melo (ao que parece hospedado na casa do parente novo-rico), deslumbrando-se com a beleza formidável da mulher deste, considerada a mais linda do Império ao tempo, apaixona-se alucinadamente por ela. Corteja-a, espreita-a, lança-lhe olhares cobiçosos, que ela reconhece, compreende, mas não lhes corresponde às expectativas, conquanto não feche a cara ao frustrado pretendente, nem dê demonstrações de exasperação ou descontentamento. Apenas ficamos a saber que Natividade é uma mulher honesta. João vê-se na contingência de resignar-se com o posto de escrivão do cível oferecido pelo parente em Maricá. De lá ainda escreve inúmeras cartas a Santos, embora pensando em Natividade. Não recebe resposta. Daí a poucos anos morre – sozinho.
Além de um primeiro caso de rivalidade masculina pela posse de uma mulher, é também um episódio da temática da infecundidade masculina, tendo em vista não constar que João de Melo haja casado ou tido filhos. Esta segunda temática, no entanto, fica meio acobertada, nebulosa, sem receber grandes luzes ou atenções, mas aí está ela, sempre a imprimir uma infalível nota de melancolia no romance machadiano da maturidade.
A segunda ocorrência da comborçaria ou rivalidade fraternal masculina envolve ainda o mesmo casal Santos, agora triangulando com o Conselheiro Aires, amigo da família e presença assídua na residência do banqueiro. Aqui novamente a comborçaria permanece no âmbito da rivalidade, sem consumação carnal, em função não apenas da já proclamada honestidade da mulher de Santos, como também pela tibieza de Aires enquanto requestador. Vejamos um fragmento do capítulo XII:

Tempo houve (...) em que ele [Aires] também gostou de Natividade. Não foi propriamente paixão; não era homem disso. Gostou dela, como de outras jóias e raridades, mas tão depressa viu que não era aceito, trocou de conversação. Não era frouxidão ou frieza. Gostava assaz de mulheres e ainda mais se eram bonitas. A questão para ele é que nem as queria à força, nem curava de as persuadir. Não era general para escala à vista, nem para assédios demorados. (ASSIS, 1997, p. 28)

O Conselheiro Aires interessa-se por Natividade. Porém, como esta não demonstra de imediato igual sentimento, ele recolhe as armas, desistindo da luta – ou, antes, desiste sem nem sequer exibi-las ostensivamente. Nem por isso deixa de manter com ela certa proximidade, como amigo íntimo da casa. Em verdade, desde que o Conselheiro Aires assoma na história, torna-se a personagem mais focalizada pelo narrador, embora este distribua o foco do interesse narrativo por diversos partícipes.
De qualquer sorte, não cessa o flerte entre Aires e Natividade. E se “a cousa” não avança, muito se deve à ausência de ânimo resoluto em Aires, pois também Natividade teve-lhe inclinação, como podemos ver, verbi gratia, em uma passagem do capítulo XXXVII, quando Natividade mostra-se apreensiva com o fato de o filho Paulo alegar não poder sacrificar uma opinião: “Natividade não acabava de entender os sentimentos do filho, ela que sacrificara as opiniões aos princípios, como no caso de Aires, e continuou a viver sem mácula” (ASSIS, 1997, p. 73). Aí temos a confirmação da mutualidade da atração havida entre a senhora Santos e o viúvo Aires, íntimo da casa, como também a informação de que esses sentimentos não se materializaram em conúbio amoroso, pois ela manteve-se em uma vida “sem mácula” – não sabemos como seria se Aires fosse um homem mais decidido, pois o romance não cuida abertamente dessa hipótese.
Sabemos, porém, que o Conselheiro detesta Santos, o feliz marido da venusta Natividade, embora não deixe de lhe freqüentar a casa a amiúde, nem de lhe dispensar todas as cortesias (fingidamente amistosas) exigidas pela boa sociedade e de que a dissimulação é capaz, tal é a necessidade de ao menos estar perto da mulher desejada. In litteris:

Tais eram as suspeitas que vagavam no cérebro de Aires, enquanto ele olhava mansamente para o anfitrião [Santos]. Aires não podia negar a si mesmo a aversão que este lhe inspirava. Não lhe queria mal, decerto; podia até querer-lhe bem, se houvesse um muro entre ambos. Era a pessoa, eram as sensações, os dizeres, os gestos, o riso, a alma toda que lhe fazia mal. (ASSIS, 1997, p. 103)

No entanto, em que pese a toda essa antipatia pelo ditoso rival, aliás inocente, Aires preocupa-se com os filhos de Natividade. Tem para com eles desassossegos paternais, como os teria para com os seus próprios filhos (se os houvesse), notadamente se ela lhos recomenda, haja vista a inimizade dos gêmeos, já manifestada desde o ventre materno. Vasculhando as recônditas motivações do Conselheiro Aires, estando subjacente a problemática da infecundidade masculina, o narrador do Esaú e Jacó presta-nos as seguintes informações:

Agora, se era por amor deles [Pedro e Paulo], se dela [Flora], é o que propriamente se não pode dizer com verdade. Quando muito, para levantar a ponta do véu, seria preciso entrar na alma dele, ainda mais fundo que ele mesmo. Lá se descobriria acaso, entre as ruínas de meio celibato, uma flor descorada e tardia de paternidade, ou, mais propriamente, de saudade dela... (ASSIS, 1997, p. 176)

Notável a estratégia de escrita deste narrador onisciente, que alegando não saber dizer com propriedade, acaba por dizer tudo. No caso de Aires, de braços dados com a tíbia comborçaria ou rivalidade fraternal masculina, assoma novamente (sobretudo nos capítulos XXXVIII, XLII e LXXXVII) – agora um pouco mais visível e iluminada, comparativamente ao sucesso em que figura o João de Melo – a temática da infecundidade masculina, tendo em vista ser o Conselheiro Aires um viúvo sem filhos, o qual tenta preencher esse vazio “adotando”, quanto possível, os filhos da amiga e também Flora, a rapariga amada pelos gêmeos. E, de novo e de par com a infecundidade, uma soturnidade difusa vai gradualmente impregnando as páginas do romance.
O terceiro episódio de comborçaria ou rivalidade fraternal masculina em Esaú e Jacó é o que reúne Flora e os gêmeos Pedro e Paulo. Estes, se já brigavam desde que eram apenas fetos, prosseguem rivalizando vida afora. A disputa no útero da mãe, nos brinquedos da infância, nos gostos da adolescência; a rivalidade nas profissões escolhidas, nas opiniões políticas – tudo isso era quase nada, ou, antes, não era senão aperitivo para a verdadeira, a mais intensa e insofrida das rivalidades, aquela a que o romance dá especial destaque por capítulos e mais capítulos – a comborçaria ou rivalidade fraternal masculina! E o não haver consumação carnal não lhe minora a intensidade, nem o insofrimento.
De resto, sendo a mais fraternal de todas as comborçarias ou rivalidades masculinas machadianas, e não obstante o relativo “silêncio” e “compostura” com que é travada, nem por isso deixa de ser a mais feroz e renhida de todas, com os rivais a figurar em um cortês mas implacável cabo-de-guerra pela conquista da mulher amada, tendo ao centro a moça Flora. Sendo exatamente iguais o desejo e a força, os recursos e a determinação dos êmulos em combate, à rapariga não resta senão arrebentar-se, rasgar-se, aniquilar-se sem pender para nenhum dos lados, de modo que a morte de Flora era o desenlace inelutável desta fraternalíssima comborçaria ou rivalidade masculina.
Fato singular: Flora é a única rapariga de toda a história. Em que pese ao fato de estarem os gêmeos em privilegiadíssima posição pessoal, econômica e de sociedade, não surge uma única moça que lhes interesse ou que se interesse por algum deles de modo relevante, a ponto de figurar no romance. No entanto, não faltam novos rapazes a pleitear a mão de Flora, como é o caso do remediado Gouveia e do maduro ricaço Nóbrega. É como se ela fosse a última donzela de um mundo em arrastado compasso de desintegração, em torno da qual os rapazes remanescentes vão acumulando-se, esperançosos de colher esta última flor da felicidade, que no entanto emurchece improfícua, legando-lhes uma sorumbática fragrância de túmulo.
De resto, a morte de Flora amplia ainda mais a maninhez geral deste romance de infecundidades e de comborçarias ou rivalidades fraternais infrutuosas. O seu precoce falecimento faz de seus próprios pais velhos solitários sem descendentes. Semelhante e merencória sorte cabe também a Perpétua (irmã de Natividade) e D. Rita (irmã de Aires), ambas velhas viúvas sem “frutos” de primeira ou segunda geração, cujos finados maridos, obviamente, ingressaram no imenso grêmio machadiano dos padecentes da infecundidade masculina.
Nóbrega, ex-pedinte misteriosamente enriquecido, personagem que aparece de maneira incidental em meia dúzia de capítulos, é outro que envelhece sem filhos e assim permanece até ao encerramento do romance. Os próprios gêmeos, posto ainda jovens e promissores, com auspício de futuro glorioso desde os primeiros capítulos, no entanto chegam ao final de trama igualmente solteiros e sem filhos; ricos e importantes, é verdade, mas alimentando um invencível ódio mútuo, de tal maneira que, em razão desse acúmulo de infecundidades, a atmosfera geral da obra, à medida que vai lentamente chegando ao epílogo, é de uma melancolia que se adensa, opressiva, em um nevoeiro de gradual extinção, de depressivo aniquilamento de tudo.
Antes de fechar a análise desta obra, cumpre salientar a opção machadiana pela sugestão e pela ironia, presente nos cinco romances, mas que neste possui uma força diferenciada. O episódio da troca da tabuleta da confeitaria do Custódio (capítulos XLIX, LXII e LXIII) traz algo que à primeira vista pode parecer incidente banal do enredo e, por isso mesmo, passar despercebido ao leitor ou não ser devidamente apreciado; todavia, observado com uma visão mais acurada – como fizera Juracy Assmann Saraiva, para a qual “a troca de tabuletas equivale à mudança de regimes” (SARAIVA, 1989, p. 100) –, pode realmente ser interpretado como uma alegoria pela qual o autor manifesta o seu parecer, no tocante ao golpe de estado que derrubou o regime monárquico brasileiro e impôs a república. Para Machado de Assis, segundo se infere deste lance, a mudança de regímen não foi mais que obra de fachada, troca de rótulo, de tabuleta, sem alteração substancial das estruturas então existentes no país. Assim interpretada, tal passagem não deixa de ser uma dura crítica aos que, sem a menor participação do povo, de resto a tudo alheio, proclamaram a república; crítica, contudo, que fica apenas levemente sugerida, sem uma expressão inequívoca que lhe trouxesse o rancor das autoridades do tempo.


3.5. Memorial de Aires

Eis o último romance de Machado de Assis, publicado no ano mesmo de sua morte, 1908, e tão melancólico quanto se pode sentir e dizer de uma despedida. Possui o formato de diário (em que os “capítulos” são datas) a cuja existência aludira-se desde a “advertência” inserta no Esaú e Jacó à laia de prólogo. Também o Memorial de Aires traz semelhante advertência, agora assinada com as iniciais do autor, a “informar” que a obra trata-se ainda de um recorte feito aos volumes encontrados na casa do Conselheiro Aires após a morte deste. Pretextos de romancista, expediente vastamente empregado pelos escritores românticos, a dar mais aparência de verdade à sua ficção literária.
O Memorial de Aires está assaz ligado aos romances que o precederam, seja pela proximidade da temática fundamental, seja, no que concerne ao Esaú e Jacó, pela reiteração de personagens. Com efeito, tanto o Conselheiro Aires, quanto a sua irmã, D. Rita, atuam em ambas as tramas, sendo certo, contudo, que Aires agora não é apenas personagem da ação romanesca, como na história dos gêmeos desavindos, mas também assume as funções e o encargo de relator, com dicção em “primeira pessoa”.
Um narrador que opera segundo uma focalização homodiegético, portanto. Não chega a ser um narrador autodiegético, como nas Memórias Póstumas de Brás Cubas ou no Dom Casmurro, porque Aires não emerge do memorial como protagonista[13], deixando que as luzes da ribalta incidissem sobre Fidélia e Tristão, por um lado, e o casal Aguiar, por outro; casal que, a nosso ver e pela força de sua relação com a infecundidade, tema central, exerce um grau maior de protagonismo no romance, embora seja grande o interesse por Tristão e Fidélia. A si o narrador reserva uma posição relativamente secundária na ação, pouco mais que testemunha privilegiada dos acontecimentos relatados. Predomina, pois, a focalização externa, sem embargo de haver, em uma ou outra passagem marginal, algum avanço ao universo íntimo do próprio narrador, quando, então, por entre algumas questões de somenos, explora sua própria relação com a infecundidade masculina. Aliás, o enredo está ancorado na infecundidade masculina generalizada, como, de resto, já ocorrera em outros romances antes examinados.
Registramos que também aqui há, eventualmente, alguma arremetida à intimidade subjetiva das demais pessoas da história, o que, todavia, ocorre por conjectura e suposição, porquanto o narrador não é onisciente, laborando, no particular, sob uma focalização restritiva. Eis uma passagem que o ilustra. O Conselheiro Aires pede à viúva Noronha (maneira pelo qual se designa Fidélia na metade inicial da trama) que lhe “dê um pedaço de Wagner”, mas ela escusa-se, alegando dor de cabeça. O narrador, então, diz:

A razão verdadeira da recusa pode não ser dor de cabeça nem de outra qualquer parte. Quer-me parecer que Fidélia vai um tanto comigo, e tocaria para si, caso estivesse só. Naquela outra noite, em casa de Aguiar, deixou-se arrastar e tocar para as doze pessoas que lá estavam, levada do sobressalto, de um acordar do gosto antigo; agora abana a cabeça, não quer divertir os outros. (...) Sinal de que não tinha dor de cabeça é que ouviu a Tristão com evidente prazer, e aplaudiu sorrindo. (ASSIS, 1997, p. 71)

Como podemos observar do excerto acima, o narrador não domina ampla e irrestritamente os fatos objeto de sua narrativa, e o seu ponto de vista é, portanto, restrito, particular, limitado. No entanto, suas conjecturas não são arbitrárias ou infundadas, senão bem amparadas na fineza da observação e na perspicácia do raciocínio, de modo a deduzir ou ao menos vislumbrar o que pode ser a verdade, ou ainda, quando mais não seja, permitir que o leitor entreveja através da aparência das coisas. Aliás, já aí nessa passagem o leitor atento pode lobrigar o efeito modificativo que a presença de Tristão produziu sobre os hábitos que a si mesma se impusera Fidélia, cujo luto da viuvez abrangia, além dos sinais exteriores da tradição, a abstinência do exercício musical. Embora tênue, esta primeira quebra do luto é o exórdio, o zigoto do camuflado e nebuloso processo que culminará nas segundas núpcias da formosa e discreta viúva.
Vejamos outra passagem:

Relendo o que escrevi ontem, descubro que podia ser ainda mais resumido, e principalmente não lhe pôr tantas lágrimas. Não gosto delas nem sei se as verti algum dia, salvo por mama, em menino; mas lá vão. Pois vão também essas que aí deixei, e mais a figura de Tristão, a que cuidei dar meia dúzia de linhas e levou a maior parte delas. Nada há pior que gente vadia, – ou aposentada, que é a mesma cousa; o tempo cresce e sobra, e se a pessoa pega a escrever, não há papel que baste. (ASSIS, 1997, p. 20-21)

Como já ocorrido nos quatro primeiros romances machadianos da maturidade e constituindo-se, pois, em uma de suas marcas estilísticas, também a focalização do Memorial de Aires é interventiva, com a diferença que nos outros a intervenção em geral consubstancia-se em interpelações dirigidas ao leitor, ao passo que aqui o narrador intervém na narração para tecer considerações ou fazer julgamentos sobre o próprio ato narrativo – o seu próprio desempenho de narrador, como podemos verificar na última passagem transcrita – ou, em outras ocorrências, sobre as personagens que arrola; ou, ainda, acerca de situações genéricas da condição humana, como o juízo de valor sobre a “gente vadia ou aposentada”.
É fixo conjunto de focalizações do Memorial de Aires. O que igualmente nele não se altera, agora em confronto com os quatro primeiros, é a prevalência da temática da infecundidade masculina, ilustrada, sobretudo, pela evolução da “orfandade às avessas” do casal Aguiar, orfandade esta que é suspensa de forma precária e provisória no interregno que vai do nascimento à consumação do amor de Tristão e Fidélia, cuja partida ao final, deixando inteiramente sozinhos os “pais de empréstimo”, que encaneceram sem filhos próprios nem sobrinhos, apenas adensa a melancolia emergente do romance, a qual não cede nem sequer aos auspícios de felicidade conjugal dos jovens e belos recém-casados. As lúgubres vicissitudes da infecundidade são, portanto, o leitmotiv do romance, constituindo um traço ultra-relevante do dinamismo psicológico das principais personagens.
Logo nas páginas iniciais ficamos a saber que Aguiar, marido D. Carmo, já em idade um tanto senescente, não tem filhos. Em seguida chega-nos a informação da tristeza que ele e a esposa padecem em função dessa improficuidade. Leiamos:

De quando em quando, ela e o marido trocavam as suas impressões com os olhos, e pode ser que também com a fala. Uma só vez a impressão visual foi melancólica. Mais tarde ouvi a explicação a mana Rita. Um dos convivas, – sempre há indiscretos, – no brinde que lhes fez aludiu à falta de filhos, dizendo “que Deus lhos negara para que eles se amassem melhor entre si”. (ASSIS, 1997, p. 10-11)

Não é a primeira vez que um romance machadiano veicula um elegante mas capcioso argumento pelo qual se tenta inverter o saldo desfavorável da ausência de filhos. Já lá o “defunto autor” procurara impingir-nos semelhante falácia, à guisa de lenitivo para a tristeza final da extinção infrutífera. A manifestação mesma de melancolia por parte do casal Aguiar à simples alusão à inexistência de prole – embora silenciosa e singela, como visto acima – é evidência de que o reelaborado argumento não convence, em que pese à garridice.
A verdade é que, conquanto sem maior alarde, o velho Aguiar e D. Carmo sofrem, em razão da infrutuosidade a que se vêem sujeitos, e buscam consolo nos “filhos de empréstimo” – tendo sido o primeiro deles o afilhado Tristão, que ainda adolescente seguira para Portugal com a família legítima, deixando-os inconsoláveis; houve também um pequeno cachorro, que recebia tratamento filial por parte “da gente Aguiar” e foi sepultado no quintal de casa; e, por fim, Fidélia, em especial depois que esta se tornara viúva e órfã. Em tudo, porém, paira sempre a sombria temática da infecundidade ou da paternidade não satisfatoriamente exercida.
Entretanto, nem só o velho Aguiar ilustra a temática onipresente da infecundidade masculina. O mesmo Aires, como já vimos no Esaú e Jacó, é um homem que enviuvou e envelheceu sem filhos, tendo inumado a esposa na Europa, quando ainda era diplomata da ativa. Em algumas ocasiões, o Conselheiro chega a registrar a sua boa resignação e serenidade diante da ausência de prole, em oposição ao casal Aguiar, que de forma silenciosa, mas transparente, ressente-se desta condição. Contudo, não é um conformismo absoluto, o de Aires, como podemos inferir de diversas referências ao assunto, feitas aqui e ali ao longo do memorial. Se não há em Aires o mesmo nível de frustração de Aguiar, há ao menos, por influxo deste, algum desejo de paternidade insatisfeita, o que, em um exemplo, restou assim consignado: “Parece que a gente Aguiar me vai pegando o gosto de filhos, ou a saudade deles, que é expressão mui engraçada.” (ASSIS, 1997, p. 76).
Para além desta saudade consciente de filhos não havidos, a problemática da infecundidade masculina também toca o Conselheiro Aires no âmbito do inconsciente, como podemos constatar na seguinte passagem, subseqüente a um encontro casual com crianças na rua:

Dormi pouco, uns vinte minutos, apenas o bastante para sonhar que todas as crianças deste mundo, com carga ou sem ela, faziam um grande círculo em volta de mim, e dançavam uma dança tão alegre que quase estourei de riso. Todas falavam “deste moço que ria tanto”. (ASSIS, 1997, p. 78)

Mas a temática da infecundidade masculina não se esgota com os casos de Aguiar e do Conselheiro Aires. A irmã deste, D. Rita, que no romance anterior formara com Perpétua uma dupla de viúvas sem rebentos, repete a façanha nesta trama, agora fazendo par com a jovem e formosa Fidélia (todas as heroínas do romance da maturidade machadiana são venustas – outra repetição), de tal modo que, reeditando os acontecimentos da outra obra, temos em um plano subjacente a informação de dois falecidos maridos atingidos em cheio pela infecundidade masculina (em nenhum dos entrechos alude-se a enteados de qualquer espécie). Mesmo quem possui algum filho, ainda assim é relativamente improlífico, pois não conta mais que um fruto, como é o caso do Desembargador Campos, dos pais de Tristão, dos pais de Fidélia, sem falar de outras personagens incidentais.
No entanto, por meio deste romance, Machado de Assis dá mostras de estar perfeitamente cônscio da recorrência temática e situacional em sua obra, abordando o assunto nestes termos:

Já lá vão muitas páginas falei das simetrias que há na vida, citando os casos de Osório e de Fidélia, ambos com os pais doentes fora daqui, e daqui saindo para eles, cada um por sua parte. Tudo isso repugna às composições imaginadas, que pedem variedade e até contradição nos termos. A vida, entretanto, é assim mesmo, uma repetição de atos e meneios, como nas recepções, comidas, visitas e outros folgares; nos trabalhos é a mesma cousa. Os sucessos, por mais que o acaso os teça e desenvolva, saem muita vez iguais no tempo e nas circunstâncias; assim a história, assim o resto. (ASSIS, 1997, p. 87)

Mais que apenas revelar pleno conhecimento da presença da repetição no enredo, ou simplesmente justificá-la, Machado de Assis como que faz dela um dos argumentos do seu Realismo, um elemento da verossimilhança de sua obra, sendo certo não haver “nada de novo debaixo do sol”, como igualmente assevera em diversos escritos, aludindo ao texto do Eclesiastes.
Quanto ao outro tema querido ao autor do Memorial de Aires, a comborçaria ou rivalidade fraternal masculina, curiosamente não é um dos fulcros deste romance, em especial porque a tênue e muda “disputa” pelo coração de Fidélia, levada a efeito por Osório e Tristão, não possui o caráter de fraternidade, tampouco o de concomitância, bem tipificados nos romances precedentes. Com efeito, os pretendentes à mão de Fidélia não possuem parentesco nem são amigos próximos, tendo sido apenas formalmente apresentados na noite de “9 de setembro”. Também a ação de ambos é quase que sucessiva, porquanto o interesse de Tristão só começa a debuxar-se perante o narrador, quando Osório já fora virtualmente recusado, como podemos observar neste excerto:

O resto é a notícia de ter chegado Osório, o advogado do Banco do Sul, que foi há tempos ao Recife, onde o pai estava doente e morreu.
– Voltou triste, e o luto ainda o faz mais triste, disse Aguiar.
– Será só a morte do pai? perguntei.
– Que mais pode ser?
– Não me disseram, ou eu adivinhei que ele andava meio apaixonado por D. Fidélia...?
– Andava, sim, e talvez mais que meio, explicou Aguiar, mas já lá vai naturalmente.
– Em todo caso não se lhe declarou?
– Com o gesto, é possível; ela tacitamente recusou, e foi pena; ambos se merecem.
Aguiar louvou as qualidades profissionais do moço, a educação e as virtudes. Acreditei tudo, como era do meu dever, e aliás não tinha razão para duvidar de nada. (...) Tristão durante esse tempo folheava um livro de gravura.
Digo que eram gravuras, porque me fui despedir dele, que se levantou logo, com grande cortesia; mas de longe pensei que fosse o álbum de retratos. Não era; o álbum estava ao pé, aberto justamente na página em que figuram as duas fotografias de Carmo e do marido. (ASSIS, 1997, p. 76)

Uma vez mais, temos o sentimento da finura da composição narrativa, e não será difícil entrevermos já aí nessa passagem o primeiro vestígio do nascente interesse de Tristão por Fidélia. Enquanto Aires e Aguiar conversam despreocupadamente, Tristão folheia “um livro de gravuras”; não estava, contudo, muito concentrado na leitura, se acaso lia, erguendo-se de imediato para cumprimentar Aires “com grande cortesia”, tão logo este fez anúncio de despedida. Podemos depreender daí que Tristão de fato acompanhava com interesse a palestra do padrinho com o amigo Aires, presa de curiosidade notadamente quanto à notícia do insucesso do “rival” junto à viúva Noronha. Dissimulava, naturalmente. A dissimulação não é apanágio exclusivo de Capitu, Virgília e outras personagens femininas. Mais adiante, após um encontro inopinado na via pública, essa marca do comportamento de Tristão torna-se mais visível ao narrador do Memorial de Aires.

Depois, quando nos separamos na esquina da Rua da Quitanda, entrei a cogitar se ele [Tristão], ao dar comigo, compôs aquela palavra para o fim de mostrar que, mais que tudo, admira nela [Fidélia] a arte musical. Pode ser isto; há nele muita compostura e alguma dissimulação. Não quis parecer admirador de pés bonitos; referiu-se aos dedos hábeis. Tudo vinha a dar na mesma pessoa. (ASSIS, 1997, p. 86)

Tristão, sentindo-se provavelmente inseguro quanto ao êxito de sua pretensão no juízo de Fidélia, dissimula sempre, mas nem tanto que passe despercebido à perspicácia do narrador, que prossegue o desvelamento da conduta íntima do amigo:

Uma cousa traz outra, falamos das graças da viúva, da compostura, da discrição, da memória das viagens, do gosto, dos gestos e creio que dos olhos também. Eu, com certeza, falei dos olhos, e agora me lembra que ele disse serem justamente lindos e graves. Opinião ou diversão, acrescentou que os olhos das suas antigas patrícias eram em geral belos, e falou compridamente de outras damas; assim não parecia louvar somente a viúva Noronha. (...) E agora que o escrevi confirmo a impressão que me deixou o rapaz, e foi boa, como a princípio. Talvez ele tenha alguma dissimulação, além de outros defeitos de sociedade, mas neste mundo a imperfeição é cousa precisa. (ASSIS, 1997, p. 100-101)

Assim sucedeu em encontros posteriores de Tristão com Aires – um jogo de comportamento um tanto mascarado e observação aguda, no qual um disfarça quanto pode e o outro aos poucos desvela – até que, enfim, sentindo haver reciprocidade de sentimentos por parte da amada e inexistindo crime ou reproche de sociedade em uma relação que podia consagrar-se pela Igreja, é chegado o momento de Tristão franquear-se com o Conselheiro, patenteando a sua paixão pela bela viúva. (Vimos já no Dom Casmurro que é característica das mais marcantes do narrador machadiano ir às origens mais remotas dos fenômenos amorosos, mesmo os mais encobertos pela dissimulação, examiná-los ab ovo, desnudá-los a pouco e pouco, pacientemente, por referências mínimas e laivos por vezes evanescentes, que passam sem ser notados pelo leitor que não mantiver plenamente viva a chama das candeias da concentração nos pormenores semeados a espaço com enganosa aparência de irrelevância). Já então era correspondido e tudo marchava para o altar.
Decidido o enlace matrimonial entre Tristão e Fidélia, impõe-se novamente a problemática da infecundidade masculina. É que o velho Aguiar e D. Carmo alimentam a esperança de que, com o enlace, Tristão não tornará a Portugal e, por conseguinte, terão ao pé de si os dois “filhos postiços”. Tristão, contudo, para além de ter seus genitores residentes na Europa, já lá encetara carreira política e, cumprida a lua-de-mel e realizadas as visitas de rigor da cortesia conjugal, para lá parte, levado consigo a esposa, naturalmente. O casal Aguiar, que principiara a narrativa gozando a presença e o carinho de uma “filha de empréstimo” e chegou ao meio dela com “dois filhos postiços”, mercê da inesperada vinda de Tristão ao Brasil, termina-a sozinho, vendo-os embarcar para Portugal em viagem peremptória. Desfecho merencório a que nem a promessa de felicidade de Tristão e Fidélia alivia. E cumpre ainda registrar que a obra encerra-se sem notícias de que Tristão em algum momento tenha tido filhos.
Essa temática da infecundidade masculina que abre e fecha a obra, aliada à recorrência de termos tais como “velho”, “saudade” e outros do mesmo campo semântico, instaura uma leve e prolongada atmosfera taciturna, algo sombria e pessimista, na qual as personagens arrastam-se lentamente, excluído qualquer episódio aventuroso. Os próprios nomes de Tristão e de Fidélia intensificam tal sensação. No caso deste último, casando-se com a fidelidade à memória do marido morto (com a qual verdadeiramente Tristão teve de disputar a noiva), amplia a imagem lutuosa já impressa na pouco aliviada negrura indumentária de uma viuvez de dois anos. Desta forma, não é pequena a melancolia emanada das páginas deste romance, que somente não é de todo desprovido de lances de bom-humor por causa da maledicência de Cesária, personagem satélite que faz três ou quatro rápidos aparecimentos, unicamente voltados a dizer mal do próximo.
Não é impossível identificar o Conselheiro Aires ou o velho Aguiar com o próprio ficcionista e D. Carmo com sua falecida esposa, Carolina, como, aliás, têm feito vários críticos; todavia, a nosso ver, se é possível identificar Machado de Assis com algo da diegese romanesca, não o identificaríamos com uma personagem específica, senão com a vasta temática da infecundidade masculina, culminando em extinção de progênie, de que fora ele mesmo exemplo.


CONSIDERAÇÕES FINAIS


A investigação levada a efeito demonstrou que quatro dos cinco romances analisados foram tecidos segundo a temática da comborçaria ou rivalidade fraternal masculina, de modo que este tema, de fato, é recorrente na maturidade machadiana, tendo atingido um índice de presença de oitenta por cento. Só o Memorial de Aires excetuou-se. Porém, nenhuma dessas comborçarias foi tratada de maneira igual nas diversas tramas, isso em face das distinções atinentes ao narrador. Com efeito, observamos a presença de dois narradores atuando sob focalização autodiegética; dois, heterodiegética; e um, homodiegética (justamente o do Memorial de Aires).
Os dois narradores que operaram segundo uma focalização autodiegética foram o das Memórias Póstumas de Brás Cubas e o do Dom Casmurro. A identidade de focalização que existe entre o narrador desses dois romances, aproximando-os, não é trivial e prossegue quanto aos demais aspectos narratológicos, pois em ambos os casos temo-la restritiva, interna (alternando com externa), interventiva e fixa, de tal maneira que a diferenciação entre ambos ocorre exclusivamente no tocante ao ponto de vista na comborçaria fraternal masculina – no primeiro o ponto de vista é o do amante; no segundo, o do marido traído.
No mais, prevalece análoga identidade entre as Memórias Póstumas de Brás Cubas e o Dom Casmurro; e se é verdade que, agindo sob o signo da “angústia da influência” e da “polêmica velada”, a comborçaria de Brás Cubas e Lobo Neves é uma resposta de Machado de Assis a O Primo Basílio, como propõe Razera, a de Bentinho e Escobar não o é menos, já pela similitude temática e narratológica destes dois romances machadianos, já porque a heroína deles (Virgília ou Capitu) é bem mais psicologicamente complexa que Luísa, já, enfim, pela supressão das comuns ocorrências determinantes da precipitação dos fatos naquele romance lusitano – não há interceptação de correspondência dos amantes ou intervenção indiscreta de fâmulos do casal (estes, no Dom Casmurro, mencionam-se genericamente uma única vez e nem sequer vêm à cena; nas Memórias Póstumas de Brás Cubas, dona Plácida não representa a mais leve ameaça à “felicidade” dos amantes, antes zelando pela segurança deles). Na obra de Machado de Assis aqui estudada, o processo de desvendamento do adultério e dos caminhos e motivos que a ele impelem as mulheres, sobretudo (mas não só) se a história é narrada do ponto de vista do marido, exige muito mais argúcia e atenção. Portanto, em Machado de Assis, já não é mais o aventuroso ou os vislumbres de pormenores de lascívia o que prende e deleita o leitor ou dá elevação estética à narrativa, senão a montagem mesma do quebra-cabeça das relações humanas arquitetado pelo ficcionista, com todas as possibilidades de análise dos caracteres daí advindas, de que o narrador e seu ponto de vista, combinados com as temáticas reiteradamente tratadas, são a peça-chave.
Constatamos também que os dois narradores que laboraram segundo uma focalização heterodiegética foram o do romance Quincas Borba e o do Esaú e Jacó. Nos aspectos objetivos analisados, a focalização desses dois narradores foi idêntica, tendo em vista que, além de heretodiegética, ela foi igualmente interventiva, onisciente, interna e fixa.
A simetria entre esses dois romances transcende as especificidades narratológicas e avança para o tratamento dado à forma de traçar a configuração psicológica das heroínas, Sofia e Flora, cuja personalidade é diretamente vislumbrada desde o íntimo pela focalização onisciente e interna; avança também para a temática da comborçaria ou rivalidade fraternal masculina, uma vez que em ambos ela permanece no âmbito da emulação e do desejo frustrado, sem haver a consumação carnal constitutiva da comborçaria típica.
E onde estaria, pois, a diferença primordial entre estes dois romances, se são iguais as características objetivas da focalização dos narradores e os temas centrais sob sua condução? Poderíamos de início pensar que, enquanto o romance Quincas Borba envereda pela problemática da loucura, Esaú e Jacó entra a revelar o dualismo insolúvel do ser humano. É uma distinção real, mas ainda tênue, tendo em vista existir certa dualidade (Rubião/Bonaparte) na loucura de Rubião, e certo desvario nas alucinações que precederam a morte de Flora. Não estando aí uma diferenciação forte entre eles, encontramo-la na intensidade ou variedade de tratamento de aspectos específicos da comborçaria ou rivalidade fraternal masculina.
Por um lado, na história de Pedro e Paulo, o aspecto da fraternidade é o mais intenso dentre os cinco romances considerados, pois ela é a única na qual os vértices masculinos da comborçaria ou rivalidade são ocupados por dois irmãos, ainda por cima univitelinos, que se empenham na mais renhida das disputas. Para além disso, é o único caso em que nenhum dos rivais obtém a posse da mulher objeto da rivalidade, a qual, não conseguindo decidir-se, arruína-se. Por seu turno, a narrativa protagonizada por Rubião é a única em que o marido, de harmonia com a mulher, é quem se presta a embair e ludibriar o rival. De mais a mais, é também a única em que a mulher sai enganada e virtualmente rejeitada por um êmulo do marido (caso de Sofia, considerado em relação ao pretendente Carlos Maria).
Ou seja, posto que em um primeiro momento esteja clara a existência de semelhanças estruturais e no tratamento da temática da comborçaria ou rivalidade fraternal masculina nos romances Quincas Borba e Esaú e Jacó, é em aspectos importantes dessa mesma comborçaria frustrada que encontraremos as nuanças mais significativas para estabelecer a diferenciação entre as duas tramas. Não é que não existam outras nuanças capazes de diferenciá-las. Existem, mas são secundárias, fora do eixo central do interesse romanesco.
Quanto ao único narrador homodiegético, verificamos que este foi o do romance Memorial de Aires. A focalização desse narrador, além de homodiegética, foi interventiva, restritiva, externa (alternando com interna) e fixa. Também este foi o único romance a não trazer para o centro do interesse uma variante da temática específica da comborçaria ou rivalidade fraternal masculina. Contudo, posto se afaste dos demais romances nestes pontos relevantes, aproxima-se deles em outros, como, por exemplo, na focalização interventiva e fixa. De fato, todos os romances machadianos da maturidade constituem-se segundo essas duas especificidades narratológicas, de modo que esses aspectos, pela recorrência e ubiqüidade, tornaram-se estigmas do estilo do ficcionista. Há, porém, um fio por vezes obscuro, outras vezes mais visível, mas sempre de alta relevância, que cose o Memorial de Aires aos demais romances machadianos da maturidade, e estes entre si – é o que veremos a partir de agora, à guisa de encerramento deste trabalho.
Independentemente da variação de aspectos atinentes ao narrador, à focalização e à temática da comborçaria ou rivalidade fraternal masculina, cem por cento dos romances do Machado de Assis maduro são estigmatizados pelas tristes cicatrizes da infecundidade masculina – a sua grande obsessão. A onipresença dessa temática exerce influxo direto e decisivo no delineamento do perfil psicológico das suas principais personagens e, adicionalmente, faz pensar em uma transposição, quiçá sublimativa, de uma circunstância nodal na vida do escritor, que morrera sem filhos (pois não os tivera), nem parentes próximos (que os não tinha já). Machado de Assis perdera a única irmã por volta dos seis anos de idade, a mãe aos dez, morrendo-lhe igualmente o pai daí a poucos anos, de forma que, tendo chegado sozinho ao derradeiro estádio da existência, após um longo casamento sereno, porém improdutivo no particular, o seu falecimento implicou a extinção desse ramo da família Assis – extinção que se reitera obsessivamente em todos os romances aqui estudados.
Seja como for, sublimando ou não uma angústia pessoal, verificamos a procedência da nossa hipótese de que todos (quanto à infecundidade masculina, o tema obsessivo), ou quase todos (quanto à comborçaria ou rivalidade fraternal masculina, o tema recorrente) esses analisados romances de Machado de Assis são estruturados em função dessa dupla temática, angariando variabilidade em virtude das especificidades narratológicas, nos seguintes termos: por um lado, a comborçaria ou rivalidade fraternal masculina é de fato variável em função do narrador, de modo que, quando a comborçaria é típica, a focalização é autodiegética e restritiva; quando a comborçaria permanece no âmbito da rivalidade, a focalização é heterodiegética e onisciente; e quando a comborçaria ou rivalidade fraternal masculina não é tematizada, a focalização é homodiegética e externa. Por outro lado, a infecundidade masculina é inopresente e não depende da caracterização do narrador para, ao final, manifestar-se invariavelmente no plano do protagonismo (sem prejuízo de manifestar-se também em âmbito secundário). Eis, pois, a senha que a nosso sentir pode ser consistentemente considerada na proposição de leituras sistemáticas dessas obras.
Mesmo não sendo nosso objeto, registramos que a infecundidade feminina também se faz notar nos romances estudados, mas é subsidiária da masculina, sobretudo se levarmos em consideração que as duas heroínas das narrativas mais importantes (Virgília e Capitu) tiveram um filho, não se dando o mesmo com os respectivos heróis. E se Sofia não os teve, isso é um fato menor, se comparado ao conjunto formado pelo concurso de Cristiano Palha, Rubião e Quincas Borba. O mesmo se diga do caso de Flora, sobreposto pela ausência de filhos por parte de todos os seus pretendentes. Idem, no caso de Fidélia.
O zombeteiro Brás Cubas, o louco Rubião, o casmurro Bentinho, os desavindos Pedro e Paulo, o diplomático Aires, o bom Aguiar, o cauteloso Tristão – todo esse renque de protagonistas, em conjunto com dezenas de outras personagens mais ou menos secundárias, ao volver da última página do respectivo romance e por mais destoantes que fossem seus caracteres e interesses, acabaram sem ter havido um filho que fosse. E nem é só nesta circunstância capital que está a obsessão machadiana pela infecundidade masculina, pois mesmo quem chegou a tê-los, ainda assim, no encerrar da narrativa, não raro acabou sem descendentes, como o ilustra o caso do pai de Flora, que perdeu o único rebento no curso final da história, ou o caso de Escobar, cujos filhos (Ezequiel e Capituzinha), morrendo com precocidade, não lograram alcançar a paternidade e, conseqüentemente, puseram-no no rol dos homens de extinta progênie. E a obsessão não cessa por aí, porque muitos homens já mortos no início das narrativas, personagens às vezes apenas aludidas ou a que se dá rápida vida em retrospectos explicativos, estão nesse rol, a julgar pela extraordinária quantidade de viúvas sem “fruto” nem enteado existentes nos cinco romances examinados.
De resto, averiguamos que a partir do Dom Casmurro o fenômeno da viuvez sem descendentes estará assaz representado no romance machadiano (conquanto, a nosso ver, permaneça subordinado ao fenômeno mais geral da infecundidade masculina, sendo uma das facetas por que esta temática manifesta-se).
E até mesmo as situações que aparentemente escapam a essa obsessão machadiana, como a das poucas personagens masculinas que ainda tiveram filhos e conseguiram fechar o romance sem os perder – a exemplo de Cotrim, cunhado de Brás Cubas; de Santos, pai dos gêmeos Pedro e Paulo; ou do desembargador Campos, tio de Fidélia – ainda assim, pelo reduzido da prole, estão indiretamente sujeitas à obsessão da infecundidade masculina.
Com efeito, em uma obra realista, era natural terem vindo ao mundo romanesco, em uma ou outra família aí pintada, um número grande ou maior de rebentos, em especial se considerarmos a ausência de métodos contraceptivos seguros e o fato de que, ao tempo em que transcorre a ação de cada história, o número médio[14] de filhos por homem[15] era acima de seis, mas a álacre e auspiciosa proliferação de crianças é algo que simplesmente inexiste na obra da maturidade de Machado de Assis, fazendo cogitar sobre a qualidade do seu “realismo”, da decantada “retratação fiel da realidade”, no particular. Aliás, no quesito em enfoque, suas narrativas têm mais a ver com o século XXI, com sua baixa taxa de natalidade, do que com o século XIX.
Se nas Memórias Póstumas de Brás Cubas o problema da infecundidade masculina acomete primordialmente o protagonista (embora não apenas ele), no Quincas Borba ela estende-se e atinge por igual as duas mais importantes personagens masculinas, além do transposto filósofo de Humanitas (aliás, registremos que todas as personagens dos romances machadianos da maturidade que se apresentam em mais de uma narrativa transportam em si a obsessão da infecundidade).
No entanto, se é da “tinta da melancolia” do “defunto autor” que sai a declaração mais impactante (a negativa de encerramento), é a partir do Dom Casmurro que essa temática alcança a seu apogeu, o seu mais largo espectro, pois se de início temos aí o agregado José Dias, o “tio Cosme” e o finado marido da “prima Justina” ilustrando tal fenômeno, ao final desta história restam vivas apenas duas personagens com algum relevo: Sancha e Bentinho, ambos velhos viúvos sem descendentes ou sequer sobrinhos.
No mesmo diapasão do Dom Casmurro, os romances Esaú e Jacó e Memorial de Aires repetem o epílogo improlífico e tendente ao despovoamento das personagens da ação, tendo em vista que, no primeiro caso, restam os gêmeos desunidos, os quais têm perspectivas de glórias mundanas, mas não de casamento fecundo; e, no segundo, com o embarque do casal Tristão e Fidélia para a Europa (sem indicação ou simples expectativa de proficuidade conjugal, antes pelo contrário, dado que Fidélia era já uma viúva sem filhos) restam apenas o Conselheiro Aires, dona Rita e os Aguiares, todos em idade provecta – sem que nenhum deles possua descendentes.
Tudo isso faz que os desdobramentos dessa temática sejam de uma inflexível relevância dramática, não apenas no que diz respeito à ação e à caracterização psicológica de suas principais personagens, mas também à lenta instauração, na diegese de todos os romances aqui analisados, de uma vaga e estanha, difusa e brumosa atmosfera de aniquilamento gradativo, uma espécie de colapso gradual, apocalipse remanchado, porém em marcha inexorável.
Em outros termos, por entre uma vasta rede entretecida de ironias, sugestões sutis e observações agudas do narrador, remoques e digressões sucessivas, comborçarias vividas ou desejadas por suas personagens de proa, e interesses vários por elas manifestados – a ubíqua e silenciosa, obsessiva e generalizada infecundidade masculina (repassada do desencanto e da melancolia que, sendo ironicamente “filhos” legítimos dessa mesma improficuidade, vão a pouco e pouco brotando e emergindo das páginas machadianas) conduz morosa e implacavelmente a história rumo ao fim absoluto.



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[1] Oitava novela da oitava jornada. Spinelloccio di Tavena e Zeppa di Mino eram vizinhos e mantinham boa fraternidade. Spinelloccio seduziu a mulher do amigo, induzindo-a ao adultério. Zeppa, descobrindo a traição da mulher e do amigo, pagou na mesma moeda, deitando-se com a mulher do primeiro. No final, “cada uma daquelas duas mulheres teve dois maridos, e cada um daqueles dois homens teve duas esposas”. (BOCCACCIO, 1996, p. 583)
[2] Ressalvamos, no entanto, a existência de ramificações da literatura – com destaque para a prosa romanesca da Escola Naturalista – que almejam a expressão de aspectos externos aos sujeitos congregados em sociedades complexas, procurando descrever “cientificamente” a engrenagem social (posto partindo de determinismos preconcebidos) em que participa o homem. Porém, em quase toda a poesia e na maior parte da prosa literária prevalece a expressão dos elementos internos, constituintes da subjetividade individual que se projeta difusamente na coletividade.
[3] PÓLVORA, Hélio. Machado de Assis. Disponível em: http://www.vidaslusofonas.pt/machado_de_assis.htm›. Acesso em: 11 de set. 2012.

[4] Sem possibilidade de divórcio.
[5] Não custa lembrar que, no trabalho de crítica literária, a concretude a ser observada e investigada é basicamente a obra literária em si; por isso é que nenhum crítico sério, analisando A Metamorfose de Kafka, dirá que a mutação de homem em inseto, tal como lá posta, não merece credibilidade. Merece-a porque isso é verdade dentro da lógica interna dessa obra.
[6] Com o que ela pensa sobre a credibilidade dos advogados, é no mínimo inusitado que se ponha em tal posição.
[7] Na quarta e última parte do romance Senhora, o narrador heterodiegético alencariano menciona ao menos duas vezes a tragédia de Desdêmona e Otelo, de cambulhada com o problema geral do ciúme. Partindo-se tão-somente dessas duas alusões, seria lícito afirmar, para em seguida ir torcendo os seus demais elementos até parecer afiná-la com semelhante prejuízo, que a obra-prima de José de Alencar é apenas e tão-somente um “estudo do ciúme”, como diz imprudentemente Silviano Santiago – ou transposição da tragédia de Shakespeare, como fizera Caldwell com o Dom Casmurro?
[8] Que outros preferem chamar de “flashback” ou “analepse”.
[9] De novo a valsa. Foi em uma dança assim que Brás Cubas sondara a receptividade de Virgília. Também José de Alencar, em Senhora, dá ampla atenção à cena em que Aurélia Camargo e Fernando Seixas dançam uma valsa, quando ainda não consumaram o casamento, culminando em uma síncope. Em Casa de Pensão, contrariando a vontade do marido, Hortênsia dança uma valsa impetuosa com Amâncio, quase sendo arrastada depois ao adultério. Castro Alves, por sua vez, toma a valsa como motivo condutor de todo um belíssimo poema (O Laço de Fita). Casimiro de Abreu, igualmente, lavrou um poema em função dessa temática (A Valsa). Seria o caso de investigar um pouco mais a presença da valsa da literatura brasileira do século XIX, quando era outro o recato e outra a restrição ao contato físico entre cavalheiros e damas.
[10] Por exemplo, no conto Missa do Galo há referência não desfavorável à obra A Moreninha, de Macedo.
[11] Chegando ao ponto de escolhê-lo para patrono de sua cadeira na Academia Brasileira de Letras, que acabara de fundar. De mais a mais, Machado de Assis assimila e aproveita de José de Alencar, com adaptações, até mesmo certas figuras retóricas ou lingüísticas, como, verbi gratia, a famosa “tinta de melancolia”, presente nos romances Senhora (ALENCAR, 1997, p. 23) e Sonhos d’Ouro (ALENCAR, s/d, p. 128).
[12] Vide nota 1
[13] O Conselheiro Aires, embora tome parte relevante nas tramas, não é o protagonista do Memorial de Aires, como já não o fora do Esaú e Jacó. Todavia, o somatório dessas participações, não o tornando protagonista de nenhum romance em particular, torna-o uma espécie de protagonista machadiano.
[14] Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas – IBGE, a taxa de fecundidade total da mulher no Brasil era de 6,2 em 1950; 5,8 em 1970; 2,9 em 1991 e 1,9 em 2010. Não há dados sistemáticos para o século XIX, mas decerto não era inferior à de 1950. Disponível em ‹http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/imprensa/ppts/00000008473104122012315727483985.pdf›. Acesso em: 19 set. 2013.
[15] Entendemos que, não havendo uma disparidade populacional muito significativa entre o número de mulheres e homens adultos, a taxa média de fecundidade total válida para as mulheres, fornecida pelo IBGE, é também aplicável aos homens.