Por: Anderson Cássio de Oliveira Lopes
Monografia
apresentada ao Departamento de Ciências Humanas da Universidade do Estado da
Bahia – Campus IX, como pré-requisito parcial para a obtenção do título de
Licenciado em Letras, em dezembro de 2013.
RESUMO
Neste
trabalho, apresentamos um estudo sobre o narrador e a focalização dos romances Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba, Dom Casmurro, Esaú e Jacó
e Memorial de Aires, de Machado de
Assis, e, paralelamente, sobre a recorrência temática da comborçaria ou
rivalidade fraternal masculina e da infecundidade masculina inscritas nesses
romances. Conjugando essas duas linhas de investigação, propusemos uma clave
interpretativa dessas obras e, subordinando-se a isso, procuramos demonstrar
por que não haveria dúvida razoável quanto à existência de ligação clandestina
entre Capitu e Escobar. Discutimos, ainda, o lugar da crítica literária
ideológica, fazendo sobressair o fato de que todo sistema ideológico, por
intrínseca impossibilidade de aceitá-la sem comprometimento da própria condição
de existência, nega e esconde a verdade. Discorremos também sobre as fronteiras
que limitam a livre interpretação do leitor, com supedâneo em teóricos como
Harold Bloom e Umberto Eco, cujos conceitos são empregados no desnudamento dos
enganos pespegados por Helen Caldwell e John Gledson.
INTRODUÇÃO
Em
solo brasileiro, é difícil dizer quando foi inaugurada a produção da arte
literária, mas poderíamos ser tentados a identificar tal momento com uma intersecção
entre literatura e história, ou seja, cá a literatura poderia ter nascido já com
a “Carta” de Pero Vaz de Caminha sobre o achamento destas terras, isso em função
do reconhecimento de certo pitoresco presente nas descrições operadas na
célebre missiva ao rei de Portugal, porém a utilidade imediata e prática que
presidira à sua confecção, somada à controvérsia sobre a literariedade do
gênero textual epistolar, não nos autoriza a tanto.
De
qualquer sorte, no decurso de seus primeiros cinco séculos (embora, em rigor, a
chegada do Pedro Álvares Cabral marque apenas o início do processo de construção
multissecular que culminaria, no ano de 1822, na constituição propriamente dita
de um país soberano chamado “Brasil”), diversas personalidades realçaram-se
como produtoras de obras literárias nestas plagas, dentre as quais sobressai a
figura de Machado de Assis. Ele é considerado, por grande parte da crítica
especializada, o maior ícone da literatura nacional, tendo legado uma obra de
inegável relevância, seja pela extensão, seja pela qualidade do seu pensamento,
seja, enfim, pela beleza intrínseca de sua escrita concomitantemente irônica,
profunda e elegante, embora a qualidade de sua produção, naturalmente, não seja
homogênea.
A
obra de Machado de Assis, pela proeminência alcançada em nossas letras, vem
sendo objeto de intensa investigação há mais de uma centúria (e nem de longe
pretenderíamos levantar aqui uma globalizante fortuna crítica da sua produção
intelectual, ou esgotar algum aspecto passível de análise literária), recebendo
no curso do tempo os mais variados enfoques, ao sabor das modas acadêmicas e
novidades analíticas. Notáveis expoentes da crítica literária, debruçando-se
sobre a lavoura ficcional machadiana, fizeram ressaltar algumas das principais
características de sua prosa, como o pessimismo, a correlação de tramas, a
iteração temática em várias obras, a continuação de certas personagens, a
preferência pela análise psicológica, a ironia fina, o humor sutil, o desalento
em face da trajetória humana, a paciência no dissecar e desnudar as facetas
doentias do indivíduo em seu embate com a sociedade e com si mesmo.
Machado
de Assis, para além da carreira pública no funcionalismo estatal, donde lhe
viera a estabilidade financeira e a ascensão econômica, foi jornalista e
dedicou-se à poesia, ao teatro, à crítica, à crônica, ao conto e ao romance,
tendo excelido nestas duas últimas fôrmas literárias, o que é corroborado por
Moisés (2001, p. 86): “Conquanto pusesse a marca de gênio em tudo quanto
produziu, foi no romance e no conto que Machado alcançou o máximo de
virtuosismo”. Considerando que é ao romance, pelas exigências inerentes a este
gênero textual, que qualquer autor dedica maior fôlego, discorrendo
concomitantemente e com mais vagar acerca dos inúmeros motivos que lhe
interessam; considerando também que o conto, por sua extensão relativamente
modesta, trata geralmente de um único assunto ou episódio crucial, dando
margem, portanto, a uma muito maior variação temática de obra para obra –
tem-se que o romance é o locus mais
propício à investigação de recorrências obsessivas em autor de produção tão
vasta e variada quanto às fôrmas literárias, como o é Machado de Assis.
Diante
do exposto e em face de sua reputação de maior escritor brasileiro, com o
prestígio e a relevância que advém de tal posição, entendemos que obra da
maturidade de Machado de Assis merecia ser analisada à luz das ferramentas teóricas
da crítica literária atual, o que motivou o presente trabalho. No entanto,
sendo tão vasta e abordando, como de fato aborda, amplo número de temas e
questões, do momentâneo ao eterno, do local ao universal, é estimável que um
inquérito a tal obra concentre-se nos pontos mais significativos ou
controvertidos, que de ordinário são os de interesse mais abrangente, alcançando
tanto a crítica especializada, quanto o público leitor comum.
Assim,
com vistas a alcançar uma clave de leitura para os romances da maturidade do fundador
da Academia Brasileira de Letras e, porventura, colher algum contributo
passível de conciliar a polêmica que cerca certas personagens desses romances, é
que nos ocorrera indagar – em paralelo ao estudo do narrador e da focalização
adotados nos romances – qual seria o índice de recorrência das manifestações da
comborçaria ou rivalidade fraternal masculina e da infecundidade masculina nas referidas
obras e como isso poderia transfigurar-se em uma interpretação consistente
desse conjunto de romances, verificando-se, outrossim, a possibilidade de
lançar-se alguma achega pessoal sobre a controvérsia em derredor da tessitura
literária do Dom Casmurro.
A
busca por tal índice partiu do pressuposto de que haveria, na coleção mais
significativa dos romances machadianos, chamada de “fase realista” ou, mais
propriamente, “obras da maturidade”, dois temas assaz específicos que, pela
repetição, poderiam ser etiquetados como “obsessivos” e, com lastro nessas
obsessões, seria possível propor uma senha de leitura sistemática de todas essas
obras e, de acréscimo, concluir acerca do comportamento de Capitu para com
Bentinho e Escobar.
Não
será despiciendo desde logo explanar que, neste nosso estudo, “obsessão” não se
confunde com a síndrome que domina o espírito do sujeito, objeto das ciências
psicológicas ou psiquiátricas, mas é tão somente uma referência à reprodução
sucessiva, nas obras literárias, de uma estrutura relacional ou situacional mais
ou menos fixa que, assim, funciona como esqueleto constante do corpo de todos os
romances, a que se agrega, à guisa de preenchimento, uma variada musculatura e nuanças
epidérmicas.
De
igual forma, é mister, ainda preliminarmente, distinguir com precisão os temas
“comborçaria ou rivalidade fraternal masculina” e “infecundidade masculina”, sem
descurar das possíveis variantes.
A
expressão “comborçaria ou rivalidade masculina”, no triângulo amoroso objeto da
nossa linha de pesquisa, possui um sentido amplo, abrangendo não apenas os
sucessos em que de fato houvera a contemporânea posse carnal da mulher pelos
dois rivais (a comborçaria masculina típica), mas também aqueles casos em que,
a despeito da disputa e do estabelecimento da rivalidade em função de dada
mulher, apenas um dos dois homens ou mesmo nenhum deles obtivera o pretendido
conúbio amoroso, frustrado por qualquer razão contingente (é uma rivalidade que
tende a tornar comborços esses dois homens, daí que lhe chamamos “comborçaria
ou rivalidade masculina”). Vale registrar que essa comborçaria ou rivalidade masculina
não necessariamente terá de envolver as figuras do marido, da mulher e do
amante, nem os dois rivais terão obrigatoriamente consciência de que estão em uma
disputa ou em uma “partilha” da mulher.
Cumpre
igualmente aclarar o sentido do termo “fraternal”, que aqui também é tomado com
uma significação mais vasta, circunscrevendo, para além do liame de irmãos, a
relação entre sujeitos ligados por estreitos vínculos de amizade e consideração
interpessoal, conquanto a hipocrisia e o interesse menos nobre, por parte de um
ou dos dois pólos da “fraternidade”, não estejam excluídos. Aliás, o caráter
fraternal da comborçaria ou rivalidade masculina em Machado de Assis estarrece (ou
deveria estarrecer) mais que o puro e simples adultério. Ora, se a infidelidade
da mulher para com o marido é mais ou menos bem referida na literatura dos séculos,
tal não se dá no que concerne à traição entre os melhores amigos ou mesmo entre irmãos (como a do tio para com o pai
de Hamlet), de maneira que é mais fácil encontrarmos nos clássicos literários
exemplos de sacrifício pessoal em benefício do amigo do próximo (Orestes e
Pílades; ou ainda o “fidus Achates”
da Eneida) de que episódios que
ilustrem aleivosia entre eles, de que um raro exemplo acha-se em uma das novelas do Decamerão, de Giovanni Boccaccio[1].
Enfim,
para os efeitos desta investigação, é irrelevante que a fraternidade seja
“verdadeira” ou “sincera”, sendo bastante a sua simples aceitação pelas personagens
ou pela sociedade que as cerca, de modo que, na “comborçaria ou rivalidade fraternal
masculina”, haverá sempre uma grande proximidade, por parentesco ou amizade
íntima, entre os dois homens que disputem ou compartilhem o amor ou a posse
carnal de dada mulher.
O termo “infecundidade”
também merece uma delimitação clara. Aqui não pretendemos postular um
anacrônico exame de espermograma para aferir se as personagens masculinas são
ou não biologicamente estéreis, embora, com espeque nos elementos e indícios presentes
em cada trama considerada, sejamos forçados a avaliar, em um ou em outro caso, qual
seria a probabilidade de haver tal esterilidade. Por outro lado, conquanto
evidente em algumas tramas, a infecundidade feminina não é objeto da nossa
investigação. Desta sorte, no nosso trabalho a “infecundidade” vincula-se
designadamente à circunstância de o homem (sobretudo o protagonista), ao
encerramento do romance, não possuir filhos ou descendentes.
A
nossa investigação foi exclusivamente bibliográfica. Segundo Marina Marconi e
Eva Lakatos (2009), a pesquisa bibliográfica ou de fontes secundárias é a que
busca o levantamento da bibliografia já publicada, em forma de livros,
revistas, publicações avulsas e imprensa escrita, diferençando-se, assim, da
pesquisa documental ou de fontes primárias, cujos dados são obtidos de duas
maneiras: através da pesquisa de campo ou da pesquisa de laboratório.
A
colheita de material para a pesquisa realizou-se a partir da leitura de textos
machadianos, dos quais extraímos os assuntos e motivos mais cíclicos e recorrentes,
bem assim os elementos substanciais que poderiam ter o condão de robustecer e dar
solidez às nossas proposições atinentes às duas temáticas investigadas e à qualificação
do narrador. Para o corpus da
pesquisa, selecionaram-se todos os cinco romances da chamada “fase realista” ou
da maturidade.
O
critério para escolha dos romances da maturidade, e não os da juventude ou da
“fase romântica”, é o da maior representatividade e relevância, assim considerados
em face da sua consagração pela crítica literária no decurso dos tempos. A cada
romance atribuímos o peso 20 (vinte), de tal modo que, em conjunto, os cinco
romances perfazem o índice máximo de 100 (cem) pontos. Destarte, em uma escala
de zero a cem, mensuramos a graduação exata de cada “obsessão” investigada.
No
capítulo I, discutimos algo da conceptologia de literatura e de romance. A
propósito desta fôrma literária, abordamos incidentalmente e por contraste os
conceitos de novela e conto, bem como os da categoria literária do narrador e
seus aspectos correlatos. Tecemos, ainda, considerações sobre o romance em seu
trânsito da estética do Romantismo para a do Realismo.
O
capítulo II, iniciamo-lo com uma discussão sobre a guinada na trajetória
romanesca de Machado de Assis, passando em seguida ao exame de sua fortuna
crítica. Delineamos o traçado da fundamentação teórica em concomitância com o
da fortuna crítica, de modo que a solidez do pensamento de teóricos como Harold
Bloom e Umberto Eco é empregada para desbaratar os enganos e alicantinas pespegados
por Helen Caldwell, John Gledson e demais críticos que lhes são caudatários.
O
capítulo III traz a nossa análise dos cinco romances machadianos da maturidade.
Durante a leitura das obras e tendo em mira, sobretudo, a categoria literária
do narrador e sua focalização, ponderamos a presença ou ausência da “comborçaria
ou rivalidade fraternal masculina” e da “infecundidade masculina”, tendo sido
encontradas partes cardinais dos romances que podem ser consideradas ilustrativas
da ocorrência desses temas.
No
coligir e mensurar os dados, sopesamos a possibilidade de proposição de uma
chave de leitura sistemática para todos os romances analisados, sem descurar do
concomitante exame da candente controvérsia que cerca a personagem Capitu, de
modo que nos posicionássemos, também, quanto isso.
1.
A LITERATURA
Por
“literatura” concebemos uma atividade de criação de textos artísticos, aos
quais se adjudica um valor estético. A palavra (no sentido mais amplo que o de
signo linguístico), utilizada para criar ou recriar uma realidade, é a
matéria-prima empregada na confecção da obra de arte literária; no entanto,
deve-se observar que aqui essa palavra não se emprega de qualquer forma, sendo observada
uma especialização, um funcionamento especial nesse uso. Assim é que a palavra,
conformando uma elaboração singular acerca do universo de ação ou imaginação do
ser humano, constituirá o objeto artístico literário.
A
isso alia-se a necessidade de expressar sentimentos, descrever impressões ou
simplesmente inventar histórias (até porque a pura e áspera realidade nunca
satisfizera o ser humano), necessidade essa que lhe é inerente desde os primórdios
da humanidade, resultando, no último caso, em outra das dimensões essenciais da
literatura – seu caráter ficcional.
Com
efeito, as composições literárias diferenciam-se das narrativas historiográficas
comuns porque, enquanto estas últimas se restringem ao exame do “efetivamente”
passado, com lastro em fatos comprováveis e, por assim dizer, externos ao sujeito; as primeiras,
esquadrinhando os tutanos morais e outros recessos da interioridade humana,
voltam seu interesse a ocorrências não passíveis de demonstração ou prova e, ipso facto, apenas subjetivamente captadas
ou intuídas – fatos internos ao
sujeito[2].
Por
outros termos, há fenômenos atinentes à natureza íntima do ser humano, do
indivíduo enquanto protagonista de uma existência singular consciente, que são
interditos à investigação objetiva por parte do historiador e do cientista em
geral – aquilo em que as pessoas reconditamente pensam, seus secretos motivos,
desejos, aspirações – e às quais se tem acesso (conquanto sempre precário) por
meio de processos especulativos, dedutivos, intuitivos. Quando esses processos
são deflagrados a partir do desnudamento que o escritor faz de si e dos demais
indivíduos com recurso à imaginação, à fantasia, à alegoria e a uma linguagem
plasmada de uma maneira especial, chamando a atenção sobre si mesma – estamos já
adentrados ao espaço da ficção literária.
Em
tal espaço, o produtor de literatura (que não se confunde com o narrador ou com
o eu-lírico, embora com estes mantenha dada vinculação) e o leitor, em um
incessante processo de autoconhecimento desencadeado pelo desprendimento da
imaginação criadora, acompanham e confrontam os passos ostensivos e também os
percursos íntimos de personagens ou situações que, no fundo, são uma projeção
aproximada da humanidade, naquilo que ela assume ou camufla na ordem do
individual ou do coletivo.
A
literatura trata, pois, daquilo que é possível imaginar sem sacrifício da verossimilhança,
ao passo que a historiografia ocupa-se do que terá ocorrido de fato. Lígia
Costa, ao explanar acerca da Arte Poética
do Estagirita, ensina-nos:
Afastada da
perfeição, da divindade e da verdade primigênia, a mimese [segundo Aristóteles]
afirma-se como a representação do que “poderia ser”, assumindo o caráter de
fábula. O critério do verossímil, que merecera a crítica de Platão por ser
apenas ilusão da verdade, torna-se, com Aristóteles, o princípio que garante a
autonomia da arte mimética. (COSTA, 2003, p. 06)
Portanto,
em se tratando da conceptologia da arte literária, comungamos com o conceito de
mimesis aristotélico. Em vista disso,
não será ocioso salientar que esta diferenciação entre literatura e
historiografia não significa rejeição ao reconhecimento de que há inelutáveis
intersecções entre ambas – intersecção em que justamente está pautada a eterna
dúvida sobre se a arte imita a vida, ou esta àquela. Pólvora (2012), explorando
o tema em verbete biográfico sobre o autor do Dom Casmurro, assim se exprime:
Para ele [Machado de
Assis], ficcionista e historiador andam de mãos dadas. "Um contador de
histórias", escreve numa crônica, "é justamente o contrário de um
historiador, não sendo o historiador, afinal de contas, mais que um contador de
histórias. Por que essa diferença? Simples, leitor, nada mais simples. O
historiador foi inventado por ti, homem culto, letrado, humanista; o contador
de histórias foi inventado pelo povo, que nunca leu Tito Lívio, e entende que
contar o que se passou é só fantasiar"[3].
Com
sua aguda percepção das coisas, Machado de Assis demarca o terreno que História
e ficção lavram em comum, mas aponta também – com sutileza e recurso ao
trocadilho – a diferença entre as duas. Para além disso, a literatura é tecida
por uma configuração mui especial da linguagem, uma elaboração verbal em que,
tomando o próprio arranjo lingüístico como um valor em si mesmo, prevalece a
função estética ou poética da linguagem, diferentemente da historiografia, na
qual a preponderância é a da função referencial. Aliás, generalizando, o estudo
das funções em que se apresenta a linguagem verbal constitui um poderoso instrumento
de diferenciação entre a literatura e todas as demais manifestações verbais não
literárias.
Como
produto da ficção e do labor artesanal com as palavras, a literatura é um
fenômeno universal dos povos, no sentido de que se faz presente em todas as
sociedades humanas – conquanto em alguns casos, como no das sociedades ágrafas,
ela apresente-se apenas na oralidade e, por conseguinte, em uma conformação
menos complexa. De qualquer sorte, é no registro escrito da linguagem (enquanto
suporte duradouro) que a literatura (do latim littera, “letra”) demonstra sua melhor realização e desponta como
um valor elevado para o homem, seja como objeto artístico em sentido estrito,
seja como um testemunho cultural em sentido amplo; e é como um produto materializado
na escrita que se toma o termo “literatura” neste trabalho.
Outra
especificidade da literatura é seu caráter de aparente “inutilidade”, em
oposição à serventia imediata das escrituras profissionais, governamentais ou
simplesmente úteis à prática cotidiana. A propósito disso, ouçamos a lição de
Umberto Eco:
Estamos circundados de
poderes imateriais que não se limitam àqueles que chamamos de valores
espirituais, como uma doutrina religiosa. (...) E entre esses poderes,
arrolarei também aquele da tradição literária, ou seja, do complexo de textos
que a humanidade produziu e produz não para fins práticos (como manter
registros, anotar leis e fórmulas científicas, fazer atas de sessões ou
providenciar horários ferroviários), mas antes gratia sui, por amor de si mesma – e que se lêem por deleite, elevação
espiritual, ampliação dos próprios conhecimentos, talvez por puro passatempo,
sem que ninguém nos obrigue a fazê-lo (com exceção das obrigações escolares).
(ECO, 2003, p. 9)
Em
consonância com o pensamento de Umberto Eco, é característico do texto
literário não apresentar uma utilidade imediata, um proveito prático
instantâneo, alcançando, pois, uma clássica conotação de “arte pela arte”, de
busca do prazer e do entretenimento pela criação artística, embora possamos
refletir que – do ponto de vista da serventia não-imediata, não-instantânea, não-intencional
– essa inutilidade seja relativa, tendo em mente que a “elevação espiritual” e,
sobretudo, a “ampliação dos próprios conhecimentos” podem, em verdade, converter-se
em serviços assaz úteis prestados pela literatura, designadamente em um mundo
que, cada vez mais, exige das pessoas a posse crescente de conhecimentos e de
habilidades intelectuais. Aliás, neste contexto, até mesmo o simples “deleite”
e o “puro passatempo” podem configurar-se em préstimos de grande valia,
mormente em face do tédio e dos quadros depressivos que atingem e adoecem
fatias consideráveis da população.
De
qualquer sorte, em sua origem e em sua essência, a literatura é marcada por
certa gratuidade prazenteira, certa diletante ligação com o sentido do belo e
com o descanso das atividades utilitárias, exatamente por isso é que uma obra
engajada dificilmente pode ser recebida como literária de fato, até mesmo em
face da circunstância de que no texto “engajado” o que prevalece já não é a
função poética da linguagem, mas sim a função conativa, de tal modo que, nas obras politicamente engajadas, ao intento
genuinamente literário de fazer sobressair a maneira mesma pela qual a mensagem se construiu,
superpõe-se o intuito panfletário de influenciar o comportamento do receptor – à laia de
anúncios publicitários.
Aliás,
em estrita consonância com este cenário, uma obra engajada só possui de
literário certo verniz, certas películas superficiais tomadas de empréstimo,
pois verdadeiramente se trata de panfleto ou pregação, em frontal inobservância
do princípio do gratia sui, o qual,
conquanto não seja absoluto, em algum nível deve fazer-se prevalente na obra
para que esta mereça a qualificação de “literária”. Tal postura de engajamento,
fazendo predominar no texto um desiderato utilitário, está em contraposição ao preceito
do ars gratia artis, pelo qual o autêntico
monumento literário é um objeto estético que sempre encerra um fim em si mesmo,
não podendo ser, enquanto produto artístico, mero meio para se atingir a outro
fim qualquer, seja moralizante, pedagógico, ou de “reforma da sociedade”.
Impende
consignar aqui, por oportuno, a inexistência de absolutismo nesses conceitos
caracterizadores da literatura, ou seja, a literatura não é totalmente
ficcional, nem integralmente inutilitária, tampouco a função poética da
linguagem é absoluta no labor literário. Em verdade, o fenômeno observado na composição
íntima do genuíno artefato artístico literário é uma predominância genérica da imaginação
criadora, da gratuidade e da função poética da linguagem, contudo, nem por isso
a literatura deixa de veicular alguns materiais da realidade histórica, de
apresentar conceitos úteis ou de empregar eventualmente algumas das outras
funções da linguagem, conquanto de maneira incidental e subsidiária aos
elementos prevalecentes.
Ainda
no atinente ao pensamento de Umberto Eco, vimos que a tradição literária
constitui uma manifestação de poder, que, sendo imaterial, está longe de ser
desimportante. De qualquer sorte, o fato de ser um poder atrai o interesse e a
cobiça de partidos políticos, notadamente dos informais, que procuram na
atividade de produção ou de crítica literária um meio para encampar e exercer o
poder sobre as pessoas, como veremos mais adiante, no capítulo 2, destinado à explanação teórica.
1.1.
O Romance
O romance, em sua feição
moderna, é uma fôrma literária específica cuja existência, de acordo com alguns
autores, seria relativamente recente (se o compararmos com as fôrmas clássicas
praticadas há milênios, como a ode, a epopéia, dentre outras), datando mais ou
menos do século XVIII a sua ascensão, a partir da qual angariou proeminência
nas letras. Essa ascensão do romance coincide mais ou menos com o período em
que a epopéia entra em declínio (embora essas duas fôrmas não se confundam),
como também com a época das grandes transformações na estrutura das sociedades ocidentais,
notadamente a falência do sistema produtivo feudal ou “Antigo Regime” – no qual
as posições de poder e comando estavam subordinadas à nobreza hereditária –,
substituído por um sistema político e econômico baseado na livre iniciativa e
atrelado ao modelo capitalista de produção, em franca expansão ao tempo;
coincide, por fim, com o advento da escola artística denominada “Romantismo”, a
qual se propunha, dentre outras coisas, a romper com os padrões clássicos
grego-romanos que vinham sendo reafirmados desde a centúria anterior pelo movimento
estético conhecido como “Arcadismo” ou “Neoclassicismo”.
O próprio nome “romance”, desde
a Alta Idade Média, designava os falares românicos anteriores à constituição
das línguas neolatinas modernas, como o português, o espanhol, o francês, o
provençal, de modo que as histórias fantasiosas contadas em tais falares (como
as novelas medievais de cavalaria) muitas vezes recebiam a genérica denominação
dos mesmos falares ou eram chamadas de “novelas”. Aliás, parece que daí decorre
certa confusão histórica entre os termos “romance” e “novela”, sobretudo se tomarmos
em consideração as principais línguas da Europa ocidental, de forma que o técnico
assentamento dos traços definidores do “conto”, da “novela” e do “romance”,
enquanto específicas fôrmas literárias modernas, não é fácil nem isento de
controvérsias, em especial em face das inúmeras experimentações artísticas por
que vem passado a literatura nos últimos séculos a esta parte.
Em verdade, entre o conto
e o romance modernos não há maiores confusões, porém, marcar em definitivo as
estremas do conto com a novela ou, sobretudo, as desta com o romance é que se nos
afigura complexo, haja vista os dissensos manifestados pelos teóricos da área;
de maneira que, por mais que nos perfilemos a uma proposta conceitual em
derredor da matéria, somos obrigados a reconhecer que essa é uma tarefa ainda não
por completo cumprida pela teoria literária do Ocidente, não obstante haver
várias tentativas sérias nesse sentido.
A narrativa do romance
possui muitos elementos estruturais em identidade com a do conto e a da novela,
como a escrita em prosa (em contraposição aos versos, típicos das fôrmas literárias
poemáticas), a existência de ação, que transcorre em um espaço, em função de um
tempo; de personagens, de um enredo, de um narrador, de uma linguagem mais ou
menos conotativa ou figurativa em alternância com a denotatividade. O romance,
no entanto e a nosso ver, é mais complexo que o conto e a novela, possuindo,
ainda, como diferencial em relação a eles, o fato de trazer para o âmbito literário
um painel globalizante, capaz de abarcar toda uma realidade, como nos ensina o
crítico literário brasileiro Massaud Moisés (2003, p. 165), para o qual “o
romance pode, mais do que o conto, a novela e a poesia (mesmo a de caráter épico,
segundo o nosso entendimento da matéria), apresentar uma visão global do
mundo”.
Para ampliarmos a nossa
compreensão do que seja o romance, por contraste, vamos à definição que o
citado crítico dá à novela:
A novela ocupa, do
ponto de vista histórico, posição menos relevante que a do conto e do romance.
Identificada com as manifestações populares de arte, atende ao desejo de
aventura e fuga realizado com o mínimo de profundidade e o máximo de
anestésico: raro se nivela, em matéria de requinte estético, às fôrmas em prosa
vizinha. (MOISÉS, 2003, p. 112)
Em conformidade com as
palavras desse crítico, o romance também se diferencia da novela por ser ele uma
narrativa de mais largo lastro analítico, de maior densidade psicológica,
aprofundando em temas e situações relevantes da condição humana nele retratados
ou recriados, quiçá com tiradas filosofantes e com foros de sapiência e
erudição, ao passo que a narrativa da novela estaria presa ou associada ao
aventuroso, ao superficial, ao que acima de tudo distrai e entretém com facilidade,
sem maior compromisso intelectual, nem destacada busca de compreensão ou
autoconhecimento.
Entretanto, não é bem
assim que leciona Aguiar e Silva. Para esse teórico português, não obstante a
ausência de raízes grego-romanas e o pouco apreço intelectual que marcara sua
origem e desenvolvimento inicial, o romance é praticado há séculos e já as
narrativas aventurosas centradas na instituição medieval da cavalaria eram
“romances”, embora não com a feição moderna:
Aparecem assim nas
literaturas europeias da Idade Média extensas composições romanescas,
frequentemente em verso, em que podemos discriminar duas grandes correntes: por
um lado, o romance de cavalaria; por outro, o romance sentimental.
O romance de
cavalaria, cujo modelo se constituiu com as obras de Chrétien de Troyes,
espelha uma mundividência cortês e idealisticamente guerreira, estruturando-se
a sua intriga em torno de duas isotopias fundamentais: o amor e a aventura. (SILVA, 2007, p. 673)
Já aí as divergências impõem-se.
Enquanto Massaud Moisés chama de “novela” as narrativas aventurosas, como
aquelas pertencentes aos ciclos da cavalaria medieval, Aguiar e Silva as designa
por “romance”. Em aditamento, o crítico português expõe a existência de composições
romanescas (medievais) em verso, ao passo que, segundo Moisés, o romance, a
novela e o conto modernos são fôrmas literárias em prosa, sem vinculação direta
e imediata com certas fôrmas poéticas que existiram na Idade Média ibérica e lá
eram chamadas “romances” ou “rimances”. As dissonâncias entre esses dois
importantes teóricos não se restringem a isso. Continuemos com as lições de
Aguiar e Silva:
A literatura
narrativa medieval não se circunscreve ao romance. Entre outras formas menores
(...), merece particular relevo a novela,
narrativa curta, sem estrutura complicada, avessa a longas descrições, que «se
esforçava por contar um facto ou um incidente impressionantes, de tal modo que
se tivesse a sensação de um acontecimento real e que esse incidente nos
parecesse mais importante do que as personagens que o vivem». (SILVA, 2007, p.
674-675)
Aqui, contrariamente a Massaud Moisés,
Aguiar e Silva apresenta a novela como sendo uma “narrativa curta”. Contudo, o
brasileiro confere tal atributo, não à novela (que segundo ele pode ser até
mais extensa que o romance, dada a possibilidade de encadeamento de ilimitados
episódios aventurosos), mas ao conto literário, desenvolvido, ainda segundo Moisés,
em função de uma unidade temporal, espacial, temática, de ação e de conflito, sendo
caracterizado pelo número reduzido de personagens e por ser uma história curta,
perfeitamente acabada e, ipso facto,
não passível de ulteriores desdobramentos:
O
conto é, pois, uma narrativa unívoca, univalente: constitui uma unidade dramática, uma célula dramática, visto gravitar ao
redor de um só conflito, um só drama, uma só ação. Caracteriza-se, assim, por
conter unidade de ação, tomada esta
como a seqüência de atos praticados pelos protagonistas, ou de acontecimentos
de que participam. (MOISÉS, 2003, p. 40)
De
acordo com Moisés, a reunião de todas essas unidades constitutivas do “conto”
fá-lo desembocar em algo que é o resumo de todas elas: a unidade de assunto. Portanto,
o conto, à distinção da novela ou do romance, não discute inúmeros assuntos,
mas apenas um, de tal maneira que o fato de a história ser curta é antes
acidental que de essência, apenas corolário desta unidade fundamental.
Voltando
ao romance, diz ainda Aguiar e Silva:
Como afirma um
estudioso destes problemas, o romance barroco representa uma espécie de grau zero do romance, e é precisamente
com a dissolução desse «ópio romanesco» que aparece o romance moderno, o
romance que não quer ser simplesmente uma «história», mas que aspira a ser
«observação, confissão, análise», que se revela como «pretensão de pintar o
homem ou uma época da história, de descobrir o mecanismo das sociedades, e
finalmente de pôr os problemas dos fins últimos». (SILVA, 2007, p. 677-678)
O
romance, em Aguiar e Silva, é discutido do ponto de vista das épocas
sucessivas, de modo que ele tece considerações sobre o “romance medieval”, o “romance
barroco” e o “romance moderno”. É só quando chega a este último que o
ensinamento de Aguiar e Silva concerta-se com o de Massaud Moisés, em especial
no tocante aos objetivos pretendidos pelo romancista moderno ao criar sua obra
romanesca, elevando-se e adensando-se a análise, sendo mais exato e arguto nas
observações ou mais profundo nas confissões. Todavia, Aguiar e Silva não
discute com especial atenção os romances de autores “engajados”, como faz
Moisés. De qualquer sorte, conquanto se estire em considerações sobre o romance
nas três épocas acima mencionadas, fazendo incursões diferenciadoras pela
novela, Aguiar e Silva esquiva-se de propor para o romance uma definição ou uma
conceituação precisa e inequívoca, porventura por senti-las controvertidas ou
potencialmente polêmicas, talvez desnecessárias.
Quem também se debruça
sobre o assunto é o teórico Salvatore D’Onofrio (2004, p. 116), o qual nos
ensina que a partir da Idade Média, no contexto das histórias ficcionais
produzidas popularmente nas áreas de formação das línguas românicas, “a palavra
romance passou a indicar uma longa
narrativa sentimental, forma cultural que viveu à margem da literatura oficial
durante a época do classicismo”. Ele sustenta que esta fôrma literária possui
uma existência antiqüíssima, porém sem receber a devida consideração da
crítica, principalmente por estar associada à produção literária das pessoas de
menor cultura formal e intelectual. Analisemos suas palavras.
Como podemos
verificar, quer a narrativa sentimental, quer a narrativa realista, embora sem
o nome de romance, têm origens muito
remotas. Ocorre que esse tipo de ficção em prosa viveu por longo tempo ofuscado
pelos gêneros literários clássicos e não recebeu a devida apreciação crítica:
todas as teorias poéticas da época do classicismo se preocuparam apenas com os
textos versificados. Somente com o declínio da poesia épica, a partir do início
do século XVIII, a ficção em prosa, assumindo o papel da epopéia de expressar a
totalidade da vida, passou a adquirir o estatuto de gênero literário. (D’ONOFRIO, 2004, p. 116-117)
Como podemos inferir das
palavras de Salvatore D’Onofrio, o romance moderno em essência ainda é quase a
mesma narrativa ficcional, praticamente a mesma fôrma literária surgida séculos
antes, com a diferença que, com a decadência da poesia épica, passou a usufruir
de uma elevação de seu estatuto literário e da consideração crítica. Com
efeito, e em que pese ao fato de não possuir ainda esta designação, a narrativa
romanesca há muito existia e interessava-se tanto por aquelas histórias bem
ancoradas na realidade, quanto por outras mais sentimentais ou cavaleirescas, já
lá atrás ostentando o vasto espectro de sua ocupação, embora o romance moderno
intensifique e amplie a tematização de toda sorte de angústias e interesses,
desejos e aspirações dos homens, como as questões de cunho psicológico,
sociológico, político, científico, amoroso, religioso, filosófico, enfim, a
globalidade de motivos que dizem respeito à vida humana.
Procurando
diferenciar romance e novela, diz Salvatore
D’Onofrio (2004, p. 119) que esta é “uma narrativa de estrutura aberta, na qual
é sempre possível acrescentar mais um episódio, fazer intervir mais uma
personagem, deslocar a ação num outro espaço e num outro tempo”, ao passo que
aquele seria “uma narrativa de estrutura fechada: a história tem começo, meio e
fim bem definidos”. Assim, D’Onofrio, tomando o carácter de estrutura aberta ou
fechada como diferencial decisivo, dá-nos uma precisa conceituação de romance,
distinguindo-o da novela. Pode ser uma definição sujeita a controvérsias e
refutações, mas é clara e positiva, não pecando por omissão, vagueza ou
obscuridade.
1.2.
O Romance Segundo a Estética do Realismo
O
Realismo é uma escola literária ou um movimento estético nascido no século XIX
como forma de reação àquilo que seus adeptos consideravam “os exageros” do
Romantismo, ou mesmo ao simples cansaço deste último. Foi um movimento abrangente
(alcançando também, e até primeiramente, as artes plásticas) e exerceu vasta
influência tanto na prosa, quanto na poesia. Porém, em face do escopo do nosso
trabalho, havemos de concentrar-nos nas suas manifestações romanescas, até
porque, quando do advento do Realismo, já o romance gozava de amplo prestígio
enquanto fôrma literária. Adicionalmente, discutiremos o romance no Realismo (escola
literária que guarda similitudes com o Naturalismo coevo, embora não a exata igualdade;
ambas são parecidas sob muitos aspectos e procedimentos, não sendo o
Naturalismo muito mais que uma exacerbação, um paroxismo dos postulados
realistas, exagero ligado ao determinismo genético, cultural e histórico) também
em cotejo com aquele praticado na escola Romântica.
Ao
delimitar e conceituar Romantismo e Realismo, é comum a crítica especializada
indigitar, como principal divergência entre ambas, a subjetividade, o egocentrismo,
o idealismo, a retomada de tradições medievais, o gosto pelo sombrio e o pouco
compromisso com a realidade concreta, atribuídos ao primeiro, em contraposição
à objetividade, à impessoalidade, ao resoluto compromisso com a reportagem
fidedigna da realidade material da sociedade, à semelhança das ciências naturais,
cominados ao segundo. Assim, nestes termos sucintos, a crítica literária passa
a impressão de que o Romantismo seria pura invencionice idealizadora, ao passo
que o Realismo seria retratação fiel do mundo, das pessoas e de suas relações,
apenas transpostos para a obra pelo processo da criação artística.
Para
Alfredo Bosi (2003, p. 173), tendo em mira a construção de personagens nas
fôrmas em prosa, “do Romantismo ao Realismo, houve uma passagem do vago ao
típico, do idealizante ao factual”. Além disso, ele acusa nos realistas a operação
de um distanciamento metódico de suas personagens e dos demais componentes da
ação, pela existência de uma busca de impessoalidade na descrição do meio e no
tratamento das pessoas que nele transitam, à semelhança dos homens dedicados às
ciências naturais.
Há um esforço, por
parte do escritor anti-romântico, de acercar-se impessoalmente dos objetos, das
pessoas. E uma sede de objetividade que responde aos métodos científicos cada
vez mais exatos nas últimas décadas do século”. (BOSI, 2003, p. 167)
Não
está em desacordo com Moisés (2004, p. 379), segundo o qual “os realistas
preconizavam um enfoque objetivo do mundo, em oposição ao subjetivismo
romântico”, nem com Afrânio Coutinho, que assim pontifica a propósito de tal movimento
literário:
Em
conclusão, o Realismo é a tendência literária que procura representar, acima de
tudo, a verdade, isto é, a vida tal como é, utilizando-se para isso da técnica
da documentação e da observação contrariamente à invenção romântica.
Interessado na análise de caracteres, encara o homem e o mundo objetivamente,
para interpretar a vida. Utilizando-se das impressões sensíveis, procura
retratar a realidade graças ao uso de detalhes específicos, o que faz que a
narrativa seja longa e lenta e dê a impressão nítida de fidelidade aos fatos.
(COUTINHO, 2001, p. 189-190)
Para
além de traçar essas especificidades gerais do Realismo, opondo-as às do
Romantismo, Afrânio Coutinho cuida ainda do desenvolvimento dessa escola no contexto
particular do Brasil, como também de questões estruturais estritamente vinculadas
ao fazer literário, aí igualmente contrapondo, do modo implícito, Romantismo e
Realismo.
Em
conformidade com a estética geral do Realismo, os ficcionistas realistas
brasileiros dão maior interesse à pintura de personagens, à caracterização e à
descrição de sua vida, do que à organização da trama. (COUTINHO, 2001, p. 196)
Não
podemos declarar que algum desses estudiosos laborasse em erro ao discutirem
Romantismo e Realismo, notadamente se o que tomamos em consideração é toda a
literatura ocidental, com olhos tanto na poesia, quanto na prosa. Todavia, se convergirmos
a nossa visão especificamente para o romance brasileiro arraigado no século XIX,
algumas das teorizações sobre Romantismo e Realismo, por eles expostas, passam
a não ser muito condizentes com a verdade. O que de fato separa a estética
romântica da realista, nesta perspectiva particular, é menos o compromisso com
a retratação fiel ou a idealização da realidade, e mais a concentração do
interesse em estações específicas da vida dos protagonistas e é neste exato
sentido que, a nosso ver, a nupcialidade funciona como divisor de águas: o
Romantismo cuida, por assim dizer, dos “antecedentes”, das peripécias e obstáculos
ao enlace dos enamorados adolescentes ou ainda na primeira juventude, ao passo
que o Realismo ocupa-se com os “conseqüentes”, com a vida em comum depois do “sim”
matrimonial (seus tédios, seus desconfortos, suas insatisfações) ou das
primeiras experiências sexuais clandestinas (seus medos, suas angústias). Em
face disso é que o adultério é um tema tão rotineiro no romance sob esta
estética literária, como também o concubinato e outras ocorrências tidas ao
tempo como desregramento sexual.
A
fase do “namoro” e noivado, objeto predileto do romance no Romantismo, é
justamente o estádio em que, ainda jovens e inexperientes, e flutuando na sublimidade
daquilo que Stendhal chama de “amor-paixão”, os heróis e as heroínas de fato
idealizam sua situação presente e, sobretudo, a futura, e essa é a realidade
daquele momento, de forma que a narrativa que faltasse ao tom idealizador e não
conferisse ao amor-paixão adolescente a supremacia sobre todas as coisas, neste
cenário, faltaria à verdade da situação psicológica que pretende narrar. Tanto
é assim, que depois da cerimônia nupcial dão-se normalmente apenas algumas
indicações sobre a felicidade geral dos esposos ou diz-se algo não muito além
de alguma variante do “e foram felizes para sempre”, porque é exatamente essa a
expectativa moral dos recém-casados.
Por
seu turno, saltando mais ou menos rapidamente a fase de “namoro” e noivado dos
protagonistas e indo logo para a constância mesma do concubinato ou do casamento,
objeto da predileção do romance no Realismo, em especial se o conúbio ou enlace
deveu-se a concupiscências irrefreáveis, conveniências de família e interesses
alheios ao amor, tem-se o estádio em que, mais amadurecidos e experientes,
sujeitos menos ao amor platônico que à sensualidade, os heróis e as heroínas de
fato já não idealizam tanto, mas calculam, enredam, seduzem; abre-se-lhes o
leque de mazelas existenciais como o tédio, as paixões clandestinas, a necessidade
da dissimulação, o adultério, a vaidade desmedida, as ambições sem limites, a
busca de satisfações brutais e todo o cortejo de aflições e enfermidades tão conhecidas
desses escritores, como do público.
Uma
demonstração disso pode ser obtida da confrontação de romances românticos tais
como A Moreninha ou O Moço Loiro, de Joaquim Manuel de
Macedo; A Escrava Isaura, de Bernardo
Guimarães; ou a maioria dos romances urbanos de José de Alencar; com romances
realistas como Memórias Póstumas de Brás
Cubas, Quincas Borba, Dom Casmurro, de Machado de Assis, O Cortiço, Casa de Pensão e O Mulato de Aluísio Azevedo; O Missionário, de Inglês de Sousa; A Normalista, de Adolfo Caminha.
Ora,
qualquer pessoa, com idade entre os 15 e os 18 anos, costuma ser assaz
diferente dela mesma, depois que ultrapassa os 25 ou 30, sobretudo se houver um
casamento de permeio. Serão outras as concepções de vida, as expectativas de
futuro, as necessidades imediatas, o acúmulo intelectual e a experiência pessoal.
Dessa
forma, entendemos que as diferenças entre a estética do Romantismo e a do
Realismo, no romance brasileiro do século XIX, ligam-se menos ao maior ou menor
apego à retratação fiel do mundo e do ser humano ou mesmo à impessoalidade do
narrador, e mais ao interesse concentrado em distintas estações da vida dos
protagonistas, antes ou depois dos esponsais, ainda adolescentes ou já mais
maduros, com os sonhos e ilusões, problemas e desejos desta ou daquela etapa da
vida.
De
qualquer sorte, o enquadramento de romances na fixidez de uma escola literária
nunca foi isento de problemas, uma vez que a obra, por si mesma, sempre
encontra meios de escapar, um pouco que seja, às gavetas teóricas preestabelecidas,
onde habilmente os teorizadores procuram guardá-las.
1.3.
O Narrador
O narrador e a focalização
constituíram-se nas categorias literárias fundamentais em cuja função
materializou-se o processo investigativo deste trabalho. Quanto ao conceito e à
instituição do narrador literário, assim se posiciona Silva (2010, p. 695): “Dentre
as personagens possíveis de um romance, há uma que se particulariza pelo seu
estatuto e pelas suas funções no processo narrativo e na estruturação do texto
– o narrador”.
Conquanto
em princípio compreenda o narrador como mais uma dentre tantas personagens que
povoem um romance, sem ressalvas quanto ao narrador onisciente verbalizando em
terceira pessoa (heterodiegético), Silva retoma o tema, ao discutir a possibilidade
de um romance sem narrador (ou com narrador ausente), firmando este
posicionamento:
O problema não pode
consistir em estabelecer uma dicotomia entre textos narrativos com
locutor-narrador e textos narrativos sem locutor-narrador, mas sim em
distinguir entre textos com um narrador autonomizado como instância doadora da
narrativa, não coincidente com o autor textual, e textos narrativos com um
narrador de “grau zero”, de impossível diferenciação relativamente ao autor
textual (...). Só nos textos do tipo primeiramente referido é que o narrador se
apresenta como personagem. (SILVA, 2010, p. 697)
Portanto,
em conformidade com a lição de Silva, o narrador é figura cardeal, nunca
ausente da diegese romanesca, mas com um estatuto variável em função do grau de
autonomia, sendo certo que goza de maior soberania o narrador autodiegético
(que é o narrador-personagem e também protagonista, em primeira pessoa), ao
passo que o narrador heterodiegético (aquele que não é personagem, em terceira
pessoa), em uma focalização sem restrições, consubstancia-se no de menor independência,
confundindo-se, pois, com o autor textual (mas nunca com o autor empírico, inconfundível,
segundo o mesmo Silva).
No
tocante, aliás, a essa diferenciação entre narrador, autor textual e autor empírico,
assim se pronuncia Silva:
O narrador, como
esclarecemos ao analisar a problemática do emissor na comunicação literária,
não se identifica necessariamente com o autor textual e muito menos com o autor
empírico – identificação esta típica de um biografismo ingénuo ou preconcebido
–, pois ele representa, enquanto instância autonomizada que produz
intratextualmente o discurso narrativo, uma construção, uma criatura fictícia
do autor textual, constituindo este último, por sua vez, uma construção do
autor empírico. (SILVA, 2010, p. 695)
Como
se vê, Silva alarga a distância que separa o escritor (autor empírico) e o
agente que de fato narraria a trama literária (narrador), pondo entre ambos a
figura do “autor textual”, que seria concomitantemente uma criatura do ficcionista
e o criador do narrador, sendo este último a entidade responsável pela fiação
do tecido textual. Semelhante alargamento, de resto, minora consideravelmente o
comprometimento ideológico e, acima de tudo, a responsabilidade pessoal do escritor
em face da sua obra, para além de restringir e mesmo volatilizar – quase a um
ponto evanescente – o estatuto da onisciência autoral, sendo, por isso mesmo,
uma postulação não isenta de controvérsia. Não compramos, por seu valor de face
e no particular, esta teoria veiculada por Silva, até porque, em uma escala de
distâncias, a alegação de “biografismo ingénuo ou preconcebido” está mais perto
do simples insulto ou da intimidação autoritária, do pedante bloqueio ao
contraditório, do que de um respeitável argumento científico.
Massaud
Moisés, aliás, manifesta-se contrariamente a tal postulado, sustentando, por
sua vez, a total responsabilidade do escritor (que ele designa simplesmente
como “autor”, não cogitando de “autor textual” outro que não o próprio escritor)
para com o narrador e a obra em sua globalidade ou pontos particulares, vendo,
nos diversos aspectos da focalização narrativa, meros artifícios pelos quais o prosador
pretende debalde ocultar-se. Vejamos:
Em última instância,
o ficcionista é onisciente ainda quando concede às personagens a faculdade de
conduzir a narrativa segundo seu prisma óptico. É que os pontos de vista
constituem expedientes, disfarces teatrais, com que o autor dissimula que
conhece tudo quanto ocorre nas suas obras, ao menos por ser quem as construiu.
Decerto, a colaboração do inconsciente deve ser ponderada, mas o ficcionista
não labora em transe.
Mesmo nas ocasiões em que a personagem atua fora das balizas
imaginadas pelo criador, este continua onisciente, na medida em que acaba por
se dar conta, guiado pela intuição, do conteúdo que se lhe apresenta como novo
e surpreendente. Enfim, onisciente porque a obra nasce dele, entendendo-se
onisciência não como sinônimo de consciência plena, lucidez crítica, mas como
conhecimento amplo, pela memória, pela imaginação e pela reflexão, dos
materiais da ficção: o Homem, a Natureza, o Tempo e a História. (MOISÉS, 2003,
p. 72)
Esposamos
neste trabalho uma posição vizinha do que aí vai sustentado por Massaud Moisés,
por nos parecer mais consentâneo com a realidade da criação literária. Isso
porque, se por um lado parece-nos inviável para a crítica literária tomar por
pressuposto uma distinção muito tênue (quase uma indistinção) entre o ficcionista
e o narrador, por outro lado, afigura-se-nos abusivo e temerário – pela
interposição de estratos e mais estratos de “autorias” e “criadores” construídos
teoricamente, abstratamente – afastar de tal maneira uma obra de seu autor, que
o faça dela desaparecer quase por completo, permanecendo apenas como uma abstração
longínqua e intangível. Isso seria a morte da responsabilidade e do mérito
individuais, que, assim, cederia lugar ao coletivismo. Não cede. Sempre haverá
na obra uma projeção do universo do seu autor, do seu gênio, do seu jeito único
de estar no mundo e refleti-lo. O autor não está morto (como quisera Rolland
Barthes), nem a obra, uma vez pronta, é anônima, como desejam outros. Isso não
significa projeção direta, necessariamente biográfica, do autor em sua obra, mas
projeção daquilo que o angustia, que vive irrequieto dentro dele e reclama
alguma forma de escape, de expressão, de sublimação.
Não
professamos a crítica literária de linha biográfica (por considerar que podemos,
por exemplo, analisar As Mil e uma Noites não obstante lhe desconheçamos
o autor), mas não a repudiamos por completo, por
vislumbrarmos aí alguma utilidade eventual, subsidiária, no estudo de certos
aspectos da obra. Aliás, no tocante ao biografismo, como em tantas outras
questões, convém fugir a posicionamentos extremados – nem biografismo total,
nem biografismo nenhum.
De
resto, um dos mais relevantes estudiosos da vida e da obra machadiana, a
brilhante Lúcia Miguel-Pereira, assume uma linha de análise eminentemente biográfica
e nem por isso sua contribuição deve ser desprezada. “Quanto a mim, creio ser impossível compreender
a obra de Machado sem estudar-lhe a vida, sem procurar entender-lhe o caráter”
(MIGUEL-PEREIRA, 1949, p. 13). Divergimos quanto à assertiva da completa impossibilidade
de compreensão da obra machadiana (ou de qualquer outra autoria) sem estudar a
vida e o caráter do seu autor, todavia concordamos que este conhecimento pode
auxiliar o intérprete e ser um instrumento a mais na composição do aparato
teórico a ser empregado no processo de análise crítica das obras do autor do Memorial de Aires.
Entretanto,
no concernente à focalização, ressaltamos a pertinência da proposição encontrada
no mesmo Silva (2010), notadamente as díades “focalização heterodiegética versus focalização homodiegética e
autodiegética”, “focalização externa versus
focalização interna”, “focalização omnisciente versus focalização restritiva”, “focalização interventiva versus focalização neutral” e
“focalização fixa versus focalização variável
e múltipla”, por cuja virtude desabrocham-se possibilidades objetivas de estudo
do narrador e do ponto de vista, categorias literárias a que imputamos a
responsabilidade pela riqueza e pela variedade dos romances da maturidade
machadianos, em contraposição à estrutura temática básica recorrente.
Chama-se
“focalização heterodiegética” àquela que traz um narrador não participante na
diegese textual, o que geralmente ocorre nas narrativas verbalizadas em
terceira pessoa; ao passo que “focalização homodiegética” é aquela na qual o
narrador é também personagem e, portanto, partícipe na diegese, cabendo
mencionar um tipo especial de focalização homodiegética, dita “autodiegética”,
que é aquela em que a personagem que narra é também protagonista e não apenas
simples comparsa ou personagem secundária.
Na
“focalização interna”, o narrador invade o mundo interior e a subjetividade de
uma ou mais personagens, dando a conhecer os seus pensamentos e motivos mais
recônditos; enquanto que na “focalização externa” o narrador atém-se aos
aspectos exteriores, comportamentais e atitudinais, a tudo quanto seja visível
e audível, digamos, “testemunhável” nas personagens.
Na
“focalização omnisciente” o narrador revela conhecimento global e irrestrito,
tanto do aspecto externo, quanto interno das personagens e das ações presentes
no universo espácio-temporal instaurado pela narrativa; ao passo que na “focalização
restritiva” não há essa onisciência, adotando geralmente o narrador apenas o
ponto de vista de uma personagem.
A
“focalização interventiva” é aquela em que o narrador interrompe a narrativa,
seja para tecer considerações ou julgamentos diretos, seja no sentido de interpelar
o leitor, chamando-lhe a atenção para isto ou aquilo; já a “focalização
neutral” é, ao contrário, aquela em que o narrador, buscando um afastamento do
texto e uma ocultação de si mesmo, e concentrando-se na exposição dos fatos e
atos diegéticos, não interrompe o fio do relato, abstendo-se, tanto quanto seja
possível, da emissão direta de juízos e da interpelação do leitor.
Por
fim, na “focalização fixa” as focalizações precedentemente definidas mantêm-se
constantes no curso da narrativa, como uma focalização que permanece onisciente
do início ao fim; por outro lado, na “focalização variável e múltipla” há
variação e multiplicidade de focalizações na mesma narrativa, que pode, verbi gratia, encetar-se onisciente e
depois transmudar-se em restritiva ou caracterizar-se por uma multiplicidade de
focalizações restritivas.
2.
DA GUINADA NA TRAJETÓRIA ROMANESCA MACHADIANA, DA SUA FORTUNA CRÍTICA E DA FUNDAMENTAÇÃO
TEÓRICA
Como
dito, a obra de Machado de Assis é rica e vária, mas chama a atenção o número
de vezes em que glosou o mote do adultério. Este, como tema literário, remonta
aos primórdios mesmos da literatura. Já na Ilíada,
obra com a qual Homero “inaugurara” a literatura ocidental, o tema impõe-se,
pois ali se relata que a causa primária da Guerra de Tróia foram os amores
adulterinos havidos entre Páris, príncipe troiano, e Helena, rainha de Esparta,
esposa do rei Menalau, amores esses que culminaram no rapto de Helena por
Páris, ao qual o marido ultrajado reage reunindo aliados e promovendo a guerra,
em resguardo da sua honra agravada.
Na
literatura francesa, de imensa voga no curso dos séculos da modernidade, a
temática do adultério também é constante, auferindo especial destaque a publicação
do romance Madame Bovary, por Gustave
Flaubert. Por convenção, tem-se que esta obra debuta o Realismo, enquanto
estética literária, no Ocidente. Machado de Assis foi, sem dúvida, influenciado
por esta voga, seja porque transitou vivamente pelo Realismo (ainda quando
questiona e contesta alguns dos seus postulados, sobretudo o excesso de
descrições, os determinismos e a escassez de pudor), seja porque tratou do
adultério com recorrência, muito embora, em Machado, tanto o Realismo quanto o
adultério sejam tratados com uma coloração e um estilo assaz próprios, a imprimir
um relativo distanciamento do romance flaubertiano, como dos demais
realistas-naturalistas. Aliás, muito já se discutiu a propósito do adultério na
obra machadiana. Alfredo Bosi o discute nos seguintes termos:
Da história vulgar de
adultério de Brás Cubas-Virgília-Lobo Neves à triste comédia de equívocos de
Rubião-Sofia-Palha (Quincas Borba), e
desta à tragédia perfeita de Bentinho-Capitu-Escobar (D. Casmurro) só aparecem variantes de uma só e mesma lei: não há
mais heróis a cumprir missões ou a afirmar a própria vontade; há apenas
destinos, destinos sem grandeza. (BOSI, 2003, p. 180)
Já
aí percebemos que Bosi também vislumbra certa regra de composição e certa recorrência
temática nos romances machadianos, porém, de sua análise, emerge o
desaparecimento do herói tradicional, do ente majestoso capaz de proezas
supra-humanas, como substância das narrativas. Além disso, essa mesma recorrência,
variando, serve, para Bosi, de baliza ao juízo valorativo, ao julgamento estético
das obras, ao afirmar a implícita superioridade da “tragédia perfeita”, em
relação à “triste comédia de equívocos” e à “vulgar história de adultério”.
Todavia,
da leitura dos cinco romances aqui estudados, sentimos que falar em “adultério”,
“triângulo amoroso” ou “ménage à trois”
é muito genérico, haja vista a peculiaridade com que se apresenta nas histórias
de Machado de Assis, o qual se interessava por arranjos triangulares bastante específicos.
Daí porque a nossa investigação perseguiu a “comborçaria ou rivalidade
fraternal masculina”, temperada pela “infecundidade masculina”.
Em
Portugal, o filão do adultério foi explorado de modo marcante por Eça de
Queirós, ao dar a lume O Primo Basílio.
No que concerne a esta obra, motivou em 1878 um duplo trabalho de crítica
literária por parte de Machado de Assis, que a analisou com certa severidade,
chegando a acoimar de “um títere” a personagem Luísa, em cujos amores ilícitos
está centrada a trama queirosiana.
Como
se isso não bastasse, há ainda, na crítica de Machado de Assis, uma pouco velada
argüição de subserviência doutrinária, segundo a qual Eça de Queirós, aderindo à
militância realista-naturalista sem quaisquer ressalvas, teria copiado os
procedimentos de composição romanesca e as diversas teorias deterministas que,
na literatura então emergente, eram sustentadas pelo francês Émile Zola, adepto
do naturalismo literário – por isso mesmo é que a personagem Luísa não teria
moto próprio.
Ao
que tudo indica, é a partir daí, dessa crítica à composição literária sob a
batuta do determinismo, que Machado de Assis estabelecerá a sua idiossincrática
visão sobre a comborçaria ou rivalidade fraternal masculina, retomando-a seguidamente,
sob variadas perspectivas, mas sempre notadamente impregnada dos ressaibos da
infecundidade masculina.
Esta
polêmica instaurada entre Machado de Assis e Eça de Queirós, tendo por ponto de
partida a crítica machadiana a O Primo
Basílio, foi objeto de recente trabalho de Gisélle Razera. Sua abordagem,
diferentemente da nossa, é a da literatura comparada. Amparando-se nos
conceitos da “angústia da influência”, proposto por Herald Bloom, e da
“polêmica velada”, avançado por Mikhail Bakhtin, ela sustenta e procura demonstrar
que as Memórias Póstumas de Brás Cubas
são, ao fim e ao cabo, uma réplica ao romance protagonizado por Luísa e
Basílio.
Nas páginas do Cruzeiro, Machado externou opinião
contrária ao método de composição usado por Eça de Queirós em O
Primo Basílio e também se manifestou antagônico a alguns
pressupostos do Realismo. Considerando a concepção de angústia da influência, proposta por Herald Bloom e o conceito de polêmica velada formulado por Mikhail Bakhtin,
postula-se que, ao escrever as Memórias
Póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis praticou alguns dos movimentos
revisionários descritos por Bloom, operando reparos em pontos do método de composição
que julgou falhos em O Primo Basílio e, por
intermédio de Brás Cubas, questionou alguns dos pressupostos da representação realista
zoliana. (RAZERA, 2011, p. 07)
Em verdade, tomando como
ponto de partida a discussão proposta por Razera, podemos inferir ou pensar que
as Memórias Póstumas de Brás Cubas seriam
um prolongamento de resposta, ou antes, a demonstração prática, na
materialidade da obra de arte, da resposta teórica já desencadeada com a
crítica literária veiculada na revista O
Cruzeiro em 1878. Naturalmente, impunha-se, nesse movimento revisionário,
demarcar distinções. A principal delas, segundo Razera, apresenta-se sob a
forma de inovação quanto ao narrador.
Entre tantas
inovações que Memórias Póstumas de Brás
Cubas inaugurou na prosa machadiana, o método de narração talvez tenha sido
a mais significativa: um narrador em 1ª pessoa que conta a sua vida a partir da
própria morte, um defunto-autor. (RAZERA, 2011, p. 129)
De fato, desde esse
momento, repousa no narrador uma das senhas mais profícuas para a compreensão
da riqueza e da variedade na obra machadiana. Porém, a nosso ver, esse estudo
do narrador permanecerá sem uma consistência globalizante, em estado de incompletude,
se se fixar em apenas um dos romances e se não for conjugado com a análise da cristalização
de uma estrutura recorrente e de uma temática que, pela iteração, torna-se
obsessiva, na fase artística que se abre com a publicação das Memórias Póstumas de Brás Cubas.
A forma de
representação narrativa de Brás Cubas, além de simbolizar o momento da
viravolta machadiana, traz consigo outras informações: quando Machado de Assis
pôs em movimento o narrador Brás Cubas, um morto a contar a sua história,
afrontou uma série de pressupostos do Realismo que se tentava implantar, a
começar pela exigência da verossimilhança. Conforme observado por Schwarz,
desde o início das Memórias Póstumas de
Brás Cubas foi evidenciada uma vontade de chamar a atenção. “O tom é de
abuso deliberado, a começar pelo contra-senso do título, já que os mortos não
escrevem”. (RAZERA, 2011, p. 131)
Essa
refutação de Machado de Assis a alguns dos postulados do Realismo (mais desabridamente,
do Naturalismo) não significa total rejeição à nova escola literária – tampouco
completa renúncia a todos os preceitos do Romantismo, que ainda despontarão em
um ou outro momento, embora com relativa raridade, nos romances da nova fase.
Significa que ele passará à prática de um realismo à sua maneira, preferindo a
alusão e o subentendido à descrição porfiada dos espetáculos grotescos ou
despudorados que os naturalistas lançavam ao rosto do leitor; preferindo uma
heroína “forte”, complexa, como Virgília ou Capitu, a uma que acusa de “fraca”,
“títere”, como Luísa; preferindo, enfim, a análise dos caracteres à descrição
minuciosa de ambientes e objetos, a seu ver, acessórios.
Assim
procedendo, Machado de Assis estaria talvez a ser ainda mais realista do que
Eça de Queirós e os demais militantes da nova escola, à medida que não se
deixaria embair pelas impressões epiteliais. É, pelo menos, o que sustenta
Luciane Reinke em recente dissertação de mestrado, com supedâneo nas teorias reproduzidas
por Theodor Adorno:
Estaria assim o autor
elegendo o romance como uma forma de resistência à reificação, à coisificação
do indivíduo no mundo contemporâneo. O rompimento com o realismo e a criação de
novas formas de linguagem seriam uma saída para alcançar o verdadeiro
significado da essência do que se apresenta, quebrando o processo de
mistificação. (REINKE, 2012, p. 12)
Há,
porém, problemas com essa proposta. Basta um exame perfunctório da biografia e,
sobretudo, da prosa literária machadianas para vislumbrarmos a implausibilidade
do alvitre de Luciane Reinke, isso por não constar que Machado de Assis, à
semelhança dos autores panfletários, haja em algum momento utilizado a obra de
arte literária, notadamente seus romances, como simples meio para contrapor
“resistência à reificação” ou a qualquer categoria abstrata que exista apenas
enquanto esquema mental de ideologias políticas. Por estar embriagada da
doutrina socialista de Theodor Adorno, Luciane Reinke projeta o seu próprio
marxismo nos romances do autor do Quincas
Borba, o que, na melhor das hipóteses, leva a uma leitura pouco feliz dos
artefatos literários em questão, tendo em vista que Machado de Assis é pouco ou
nada permeável a tais utopias ou a seus postulados – di-lo bem o conto A Sereníssima República. De resto, a
quebra dos processos de mistificação passa, definitivamente, pela quebra das
ideologias mistificadoras.
Reinke,
nesse mesmo trabalho, depois de pedir licença à mistificação dominante nos nossos
cursos de ciências humanas, estuda o narrador machadiano a partir da análise de
um conto (Galeria Póstuma) e três
romances (Iaiá Garcia, Esaú e Jacó e Memorial de Aires). Sua hipótese avança
no sentido de que haveria uma continuidade de personagens até culminar no Conselheiro
Aires, narrador e personagem secundária do último romance de Machado de Assis.
Ao proceder à sua investigação, ela não buscou apontar estruturas recorrentes, que
é nosso objeto, mas tencionou
[...] compreender a
importância dos personagens Luís Garcia, Conselheiro Aires e Joaquim Fidélis,
base para a constituição do narrador do Memorial
de Aires. Para isso, verificou-se pela comparação que Machado de Assis
configurava tipos semelhantes ao Conselheiro Aires, dos romances Esaú e Jacó (1904) e Memorial de Aires (1908), através dos
personagens Luís Garcia, do romance Iaiá
Garcia (1879) e Joaquim Fidélis, do conto Galeria Póstuma (1883-1884). (REINKE, 2012, p. 05)
O
seu foco, portanto, é a construção de uma personagem a partir de um continuum de predecessores. Para ela,
vai ocorrendo não uma acumulação, mas sim um refinamento dos caracteres das
personagens em sucessivos contos e romances, até chegar-se a uma personagem
definitiva, que, na seqüência por ela examinada, seria o narrador do Memorial de Aires. Narrador que, ainda segundo
ela, é suspeito porque emprega um tom irônico:
No Memorial de Aires, o narrador Conselheiro
Aires mostra através de tom irônico que sua sinceridade pode ser colocada à
prova:
“Quando eu era do
corpo diplomático efetivo não acreditava em tanta coisa junta, era inquieto e
desconfiado; mas se me aposentei foi justamente para crer na sinceridade dos
outros. Que os efetivos desconfiem!”
Não se pode confiar
em um narrador que afirma para o leitor desconfiar dele. Por isso, é necessário
suspeitar do seu discurso. (REINKE, 2012, p. 17)
Permitimo-nos
divergir de Reinke, também neste ponto. Primeiro, porque o narrador, na
passagem trazida à colação, não exorta os leitores a que desconfiem dele, porém,
isso sim, exorta os diplomatas que estão em funções a manter acesas as lâmpadas
da desconfiança (como em tempo ele próprio o fizera, só deixando de fazê-lo na condição
de diplomata aposentado), naturalmente em face das delicadas atribuições que cumprem,
intermediando as relações, por vezes tensas, entre os Estados ou entre seus
chefes; segundo, e sobretudo, porque, para pôr em dúvida a credibilidade do narrador,
entendemos que um tom irônico, se de fato presente, por si só não é bastante, sendo
imprescindível imputar, concretamente, a tal narrador ou a qualquer personagem
a cujo discurso não se queira conferir confiabilidade, alguma contradição ou
incongruência, confrontando o seu enunciado ou a sua fala com alguma evidência ou
indício material veiculado pela narrativa e que faça prova ou conduza o
pensamento em sentido contrário, sob pena de essa afirmação de desconfiança
configurar-se em uma arbitrariedade que depõe contra o caráter mesmo de
objetividade que se espera de uma análise científica e vir sob medida para
satisfazer interesses pessoais ou ideológicos.
De
resto, uma desconfiança não perfeitamente fundamentada, ou de todo infundada, abre
espaço para que, no limite, a análise seja baseada na instauração de um
cepticismo generalizado, que pode voltar-se contra toda e qualquer manifestação
comunicativa, sem excluir o próprio discurso acadêmico dos autodenominados “teóricos”
e “analistas”.
Aliás,
desconfiar dos “teóricos” e “analistas” que manifestem desconfiança
pré-moldada, ou desconfiem sem amparo em elementos concretos trazidos pela obra
examinada, é restaurar o crédito literário das mesmas obras e ampliar as
possibilidades de leitura consistente, pela restrição mesma das molduras
preconcebidas por eles para ajustar os possíveis sentidos aos seus compromissos
ideológicos.
De
mais a mais, a ironia, antes de ser um dado objetivo que ampare uma
desconfiança contra a atuação do narrador construído pelo ficcionista para
conduzir a história contada, é um rico recurso literário, ao qual lançam mão os
mais bem-sucedidos escritores, sem prejuízo da fiabilidade. Para o crítico
estadunidense Harold Bloom, a ironia é uma espécie de metáfora e, portanto,
carrega em seu bojo uma polissemia viva, a qual, posto não seja imprescindível,
é um dos notáveis elementos presentes nos grandes monumentos literários. Bloom
lamenta a proliferação de ideologias políticas nas faculdades de letras, a
acarretar nas criações atuais, dentre várias conseqüências que considera funestas,
a indigência ou mesmo o desaparecimento dos elementos constituintes da genuína
prosa literária, a exemplo das figuras de linguagem como a ironia, que cedem
espaço ao vulgar engajamento panfletário. Diz ele:
No fim da trilha da
ironia perdida existe um passo derradeiro, depois do qual o valor literário
será irrecuperável. A ironia é apenas uma metáfora, e a ironia de dois períodos
literários distintos, raramente, será a mesma. Porém, se não houver um
renascimento da visão irônica, algo mais do que aquilo que outrora chamávamos
“literatura de ficção” será perdido. (BLOOM, 2001, p. 23)
Segundo
esse eminente crítico, uma extirpação da ironia (em favor dos “engajamentos”) traz
consigo um dano irreparável ao valor estético das obras de ficção. Aliás, para
ele, a qualidade artística dessas obras pode mensurar-se pelo nível de ironia
nela destilada pelo escritor e recepcionada pelos leitores.
Para ser percebida
pelo leitor, a ironia requer certa atenção, além da habilidade de contemplar
idéias opostas, conflitantes. Uma vez destituída de ironia, a leitura perde, a
um só tempo, o propósito e a capacidade de surpreender. Se buscarmos, na
leitura, algo que nos diz respeito, e que pode ser por nós usado para refletir
e avaliar, constataremos que esse algo, provavelmente, terá um conteúdo
irônico, mesmo que muitos professores de literatura desconheçam o que seja
ironia, ou onde a mesma possa ser encontrada. A ironia liberta a mente da
presunção dos ideólogos, e faz brilhar a chama do intelecto. (BLOOM, 2001, p.
23-24)
De
acordo com Bloom, como vemos na passagem acima, a ironia presente no tecido
literário é não apenas um brilhante exercício da inteligência, mas também
desempenha uma função de relevo no que concerne ao caráter de novidade e surpresa
aduzido pelas produções literárias. Em conformidade com ele, sem provimento de
ironia é inviável cogitar a literatura.
Do meu ponto de
vista, a criação literária sempre contém um certo grau de ironia, e por isso
Oscar Wilde fez a advertência de que toda poesia ruim é sincera. Mas a ironia
não é uma condição precípua da linguagem literária, e o significado nem sempre
é um andarilho exilado. No sentido mais amplo do termo, “ironia” implica dizer
algo cujo real significado difere do conteúdo óbvio, às vezes chegando mesmo a
sugerir o oposto do que é dito. (BLOOM, 2001, 182)
Aqui
o grande crítico relativiza um pouco a importância da ironia para a literatura.
Se de início asseverava que a obra de ficção não deixa de estar sujeita a algum
nível de ironia, flexibiliza depois tal assertiva com a ressalva de que a
ironia não é condição necessária e obrigatória do texto literário, nem está presente
em todo ele, e o faz em boa hora, porque, com efeito, nem tudo que se afirme no
artefato literário terá significação oposta ou bem diferente do que lá está
expressamente dito, sobretudo em si tratando das fôrmas em prosa. Não o tem, no
mais das vezes, pois do contrário toda a narrativa ganharia contornos de
surrealismo ou de incoerência psiquiátrica. Importa, portanto, situar com
precisão os pontos cruciais em que a ironia apresenta-se de fato nas obras, daí
porque, antes de tudo, um bom crítico literário deve saber distinguir denotação
e conotação, identificando qual delas prevalece em cada passagem do texto, pondo
em evidência aquilo que o seu autor, por razões as mais diversas, preferira camuflar
ou apenas sugerir, mediante o recurso a figuras conotativas ou alegóricas, em
especial a ironia.
Por
outros termos, essa ressalva de Bloom assegura-nos que os sentidos possíveis do
texto literário, embora sejam múltiplos, não são “um andarilho exilado”, ou
seja, não estão em todo e qualquer lugar onde os “engajamentos” e os compromissos
prévios com “militâncias e ativismos” pretendam encontrá-los, além de ser uma
arma poderosa para arrostar os adeptos das mais variadas ideologias. Esses
militantes e ativistas infiltrados na academia, segundo Bloom, distorcem a obra
literária, a fim de enquadrá-la nos seus esquemas preconcebidos de
representação, ou de substituição da realidade. No combate que trava contra as
análises literárias ancoradas em ideologias, diz Bloom:
Thomas Mann, o mais
irônico dos grandes escritores deste século, já parece perdido. As biografias
que surgem são alvos de resenhas que destacam o homoerotismo do autor, como se
o único interesse que ele possa despertar é a constatação de ter sido gay, aliás, o que lhe assegura um lugar
no currículo dos programas de Letras. É como priorizar no estudo de Shakespeare
a sua suposta bissexualidade; o delírio da atual onda contrária ao puritanismo
parece não ter limite. (BLOOM, 2001, p. 23)
Como
vimos, Harold Bloom opõe-se obstinadamente às análises que, deixando de lado o
exame objetivo das categorias literárias propriamente ditas (como a qualidade
do recurso expressivo empregado para caracterizar as personagens, dando-lhes
vida palpitante; para criar um narrador marcante e inusitado; para estabelecer
um tempo e um espaço significativos; para tecer um enredo envolvente), enveredam-se
pelo socialismo, pelo feminismo, pelo homoerotismo, pelo racialismo e por
outras ideologias que, na sua visão perspicaz, infestam as apreciações literárias
desde os decênios iniciais do século XX, distorcendo-as.
A
ironia, quando presente na ficção romanesca de Machado de Assis, é um recurso
fino e altamente valorativo, não se prestando, por isso mesmo, a ser mero
mecanismo para desqualificação de seus admiráveis narradores, como irrefletidamente
postula Luciane Reinke.
Seguindo
uma linha interpretativa semelhante à de Gisélle Razera, embora sem mencionar
expressamente a “angústia da influência” ou a “polêmica velada”, Carla Vianna,
em sua tese de doutoramento, vislumbra no romance Quincas Borba nova resposta de Machado de Assis a O Primo Basílio.
Como já tratamos
anteriormente, O Primo Basílio,
romance publicado por Eça de Queirós em 1878, provocou intenso debate entre a
crítica literária, tanto na brasileira quanto na portuguesa, uma vez que essa
obra mobilizou o público leitor dos dois países. Diante do êxito de público
alcançado por essa obra do autor português, Machado de Assis não passou
incólume, já que veio a público problematizar questões estéticas presentes no
romance mediante a veiculação de duas intervenções críticas que causaram
celeuma na intelectualidade da época. Os textos críticos de Machado de Assis
suscitam algumas interrogações que orientam a análise desenvolvida na presente
discussão, uma vez que podemos perceber na narrativa de Quincas Borba uma provável relação intertextual com o mesmo romance
que foi polemicamente criticado por ele. (VIANNA, 2012, p. 225-226)
Mais
do que entrever o vínculo de intertextualidade entre esses dois romances, Carla
Vianna fornece um dado relevante para a linha de investigação a que nos
propusemos neste trabalho, qual seja: desde que polemizou com Eça de Queirós em
1878, a
propósito da publicação de O Primo
Basílio, Machado de Assis como que estabelecera uma estrutura básica fixa para
as suas próprias produções, estrutura essa reproduzida de maneira indefectível
nos seus romances publicados subseqüentemente, deixando a substância da variedade,
em contraponto, a cargo do narrador e da focalização.
As
ligações que os estudiosos citados já demonstraram existir, aproximando O Primo Basílio ora das Memórias
Póstumas de Brás Cubas, ora do Quincas Borba, servem à nossa pesquisa,
à medida que revelam uma continuidade entre os próprios romances machadianos da
maturidade, continuidade essa que, a nosso sentir, existe de uma maneira
bastante especial nos cinco romances que analisaremos a seguir.
No
livro História Concisa da Literatura
Brasileira, a obra de Machado de Assis merece especial atenção por parte de
Alfredo Bosi. Analisando as Memórias
Póstumas de Brás Cubas, ele ressalta os procedimentos de linguagem ali
utilizados pelo autor a fim de, ante o sentimento dos contrastes, suscitar o
humor pela subversão dos códigos tradicionais. Para ele, esta seria a mais
bem-sucedida ruptura obrada por este romance:
Quem diz de uma
paixão de adolescente que “durou 15 meses e 11 contos de réis”; ou do espanto
de um injustiçado que “caiu das nuvens”, convindo em que é sempre melhor cair
delas que de um terceiro andar; ou ainda, da fatuidade que “é a transpiração
luminosa do mérito”, está na verdade operando, no coração de uma linguagem
feita de lugares-comuns, uma ruptura extremamente fecunda, pois, roída a casca
dos hábitos expressivos, o que sobrevém é uma nova forma de dizer a relação com
o outro e consigo mesmo. (BOSI, 2003, p. 181)
Ainda
no referido livro, tomando o Conselheiro Aires como fio condutor, Alfredo Bosi
analisa conjuntamente os romances Esaú e
Jacó e Memorial de Aires,
vislumbrando neles o que seria, a seu ver, a filosofia machadiana:
Nem ódio nem amor.
Lê-se, em Esaú e Jacó, uma confissão
de fatalismo que explica a indiferença professada nas frases acima: “não se
luta contra o destino: o melhor é deixar que nos pegue pelos cabelos e nos
arraste até onde queira alçar-nos ou despenhar-nos”.
Menos do que
“pessimismo” sistemático, melhor seria ver como suma da filosofia machadiana um
sentido agudo do relativo: nada valendo como absoluto, nada merece o empenho do
ódio ou do amor. Para a antimetafísica do ceticismo, a moral da indiferença.
(BOSI, 2003, p. 182)
Para
Bosi, como vimos, a filosofia de Machado de Assis seria o indiferentismo, que
se sobreporia ao pessimismo acusado por outros críticos e consubstanciar-se-ia
na ausência de ódios ou amores e na bovina resignação aos desígnios do destino.
Não impugnaremos acirradamente esta formulação de Bosi, até porque ela,
enquanto filosofia do Conselheiro Aires, está bem escorada em subsídios concretos
veiculados pelos dois citados romances, embora não seja inatacável, levando-se
em consideração que é possível discutir o interesse com que Aires acompanha o
desenrolar dos fatos postos nas duas tramas. Percorreremos, porém, um caminho
interpretativo um pouco distinto do de Bosi, haja vista que não identificamos a
pessoa de Machado de Assis com a figura do Conselheiro Aires, nem entendemos
que este seja, dentre todas as personagens de todos os romances, o privilegiado
porta-voz daquele, sem embargo de reconhecer que toda personagem, a fortiori se se trata da que conduz a
narrativa, traz algo de seu criador, propaga algumas de suas concepções, entretanto
um não é o outro.
Não
abstraímos uma filosofia geral machadiana a partir do exame de uma personagem
específica, ainda que alçada à condição de narrador ou presente em mais de uma
narrativa, mas construímos uma visão holística de seu romance da maturidade com
base no estudo de todas as suas principais personagens, com ênfase na relação
que mantenham com as duas temáticas cá investigadas, juntamente com a posição e
o feixe de características dos cinco narradores.
2.1.
A Polêmica em Derredor do Dom Casmurro
No exterior, coube à
estadunidense Helen Caldwell, militante do partido político feminista,
realizar, na obra machadiana, uma das “interpretações” de maior impacto. De
fato, Caldwell (e na sua trilha os críticos que se lhe tornaram tributários),
ao publicar em 1960 o discurso The
Brazilian Othello of Machado de Assis, inverte, ou, antes, subverte por
completo a trama do Dom Casmurro, com
o intuito de promover uma campanha de absolvição de Capitu (que passaria a ser considerada
uma pobre e inocente mulher apaixonada pelo marido representante do perverso
patriarcado) e, naturalmente, a consectária acusação contra Betinho, tido como
um machista burguês enfermamente cioso e caluniador que, acossado por sua consciência
e procurando apaziguá-la, teria resolvido escrever suas memórias, nas quais
distorceria maquiavelicamente os fatos, imputando à inocente esposa morta uma
culpa só existente em sua transtornada mente de advogado ciumento.
Bem,
antes de discutirmos com mais detença a citada obra de Helen Caldwell, é necessário
investigar que espécie de discurso é o seu (o feminismo) e com que desiderato
foi elaborado – o esforço ingente para “inocentar” Capitu e “condenar” Bentinho
parece mui singelamente decorrer do fato de este ser “homem” e aquela, “mulher”.
No entanto principiemos
pelas noções mais simples. Embora de início ocupe o
universo da ficção, o artefato literário, uma vez acabado e vindo a lume, passa
a fazer parte do mundo como um objeto real (posto encerre características
peculiares, inclusive a dependência de um leitor), com existência autônoma e
com a faculdade de exercer influência sobre a realidade que o gerara. Essa
condição de objeto do mundo torna possível o estudo sistemático da obra
literária, abrindo-se um ramo de exploração do conhecimento à maneira
científica, preenchido pela atividade da crítica literária. Esta, tanto quanto
possível em razão das suas especificidades, deve ser conduzida com a
imparcialidade da ciência, em contraposição às paixões da ideologia.
A
oposição visceral entre ciência e ideologia existe por virtudes de duas formas
bem distintas e específicas de interagir intelectualmente com o mundo. As duas
parecem ser necessárias à condição humana, tendo em vista que nenhuma delas,
isoladamente – ou mesmo as duas em conjunto –, jamais conseguira dar resposta
satisfatória a todas as angústias e incertezas, curiosidades e desejos do ser
humano – animal complexo e contraditório, que tanto se nutre da realidade,
quanto da ilusão.
Uma
dessas formas de interação intelectual com o mundo investiga, descreve, analisa
e procura entender a realidade como ela de fato é, independentemente da torcida
pessoal dos investigadores – e aí estamos na zona de atuação da ciência, cujo
objetivo é a obtenção de conhecimento sobre essa realidade; a outra busca elaborar
um eloqüente discurso sobre a realidade, não tal como é, mas tal como os
discursadores sonham ou desejam que ela seja – e aí estamos diante da atividade
ideológica, cujo objetivo é a obtenção e o exercício de poder sobre as pessoas.
Precisamente em virtude disso é que todo sistema ideológico, por intrínseca
impossibilidade de aceitá-la sem comprometimento da própria condição de
existência, nega e esconde a verdade.
A
atividade ideológica, por sua vez, pode ser subdividida em dois ramos: um que
busca o poder por meio da exploração de atividades religiosas; outro que o
procura mediante a exploração de atividades políticas. Essa subdivisão não implica
rigorosamente nenhuma oposição entre os dois ramos, mas apenas a existência de algumas
especificidades sobre a fundamentação de cada crença (metafísica, no primeiro
caso; utopia política, no segundo). Sim, a ideologia pressupõe, sempre, uma
crença dogmática: em uma divindade; em um partido; em uma teoria apenas
enunciada, mas nunca demonstrada; etc.
Em
todas as sociedades modernas, mas notadamente onde já se estabeleceu a
democracia, o ramo político da atividade ideológica é constituído por dois gêneros
de partidos, reunindo sectários mais ou menos apaixonados e militantes: por um
lado, a ramificação dos partidos políticos que buscam a formalização
institucional a fim de que os seus membros disputem diretamente o poder pelos meios
legais disponíveis (em geral eleições por sufrágio universal); por outro lado, a
ramificação dos grêmios políticos que dispensam a formalização, preferindo
disputar alternativa e informalmente o poder no seio de instituições de
prestígio como as universidades e as igrejas, por exemplo. Esses dois gêneros
de grêmios e partidos, para melhor exercerem o poder, naturalmente coligam-se
uns com os outros em razão das afinidades e interesses comuns. Os partidos
políticos do segundo tipo, os não formalizados, são de regra os mais radicais
em suas postulações, pelo fato mesmo de que, para eles, o exercício do poder
prescinde da formação de maiorias ou consensos e será tanto mais expressivo
quanto maior for o domínio que exercer sobre a maioria psicologicamente
amordaçada ou cerebralmente entanguida. Aliás, o exercício vertical desse poder
é especialmente forte dentro do próprio partido, sujeitando os militantes a
passar por processos de “lavagem cerebral”, que assim se tornam mais fanatizados
ou enragés, tendo por principal
conseqüência justamente a perda de nuanças psicológicas e a minoração da
complexidade individual, de modo que se fazem bem mais previsíveis as suas
ações e palavras, sentimentos e considerações, por serem uma reprodução de
chavões partidários – e não são poucos os críticos literários que, assim diminuídos
em sua primitiva potencialidade para o livre exame de qualquer questão posta,
tornam-se meros reprodutores de chavões desse jaez.
Dentre
os partidos políticos informais específicos, podemos apontar o “feminismo”, “o
movimento homossexual”, “o movimento negro”, “o marxismo”, dentre outros tantos
que fazem incursões políticas pelas mais diversas área das chamadas “ciências
humanas” (crítica literária inclusa), como parte essencial de sua estratégia na
luta pelo poder – e na seara da crítica literária no Brasil não há melhor lugar
para exercitar a empolgação do poder do que o assim considerado “melhor
romance” (Dom Casmurro) do reputado
“melhor escritor” (Machado de Assis), como bem percebera Helen Caldwell.
Fora
dessa “vontade de poder”, aliás, perde sentido a faina dos críticos literários
das últimas décadas no propósito de fazer crer – como se se tratasse de processo
judicial a ser vencido per fas et per nefas
– na inocência da personagem Capitu, quando o que de fato
lhes cabe, no particular, é desvendar fleumaticamente os mecanismos lingüísticos
que constituem a função poética da linguagem literária e dão lastro à estética
verbal da obra machadiana; revelar o sentido geral de sua obra e a maneira pela
qual ele constrói e faz mover as personagens que a povoam; descrever a técnica
expressiva e narratológica (casada à antiga[4]
com a sutileza e a profundidade do pensamento) por meio da qual o grande
literato produz o prazer estético e implementa as múltiplas possibilidades de
construção de sentido para o seu texto. Por infelicidade, um trabalho assim não
se coaduna com os queridos e desejados palanques político-partidários ou com o
vaidoso e gratuito exibicionismo, chocando-se, pois, com as ocupações da
crítica literária atual, cujos analistas, em estrugente maioria, são antes devotos
da demagogia política, da erudição gratuita, da invencionice disparatada, que
da simples ciência, do simples esclarecimentos dos fatos e sucessos literários.
E sendo obrigado a citá-los (aos analistas), a título de “revisão de
literatura” ou “fundamentação teórica”, ninguém passa incólume por essa discurseira
ruidosa – talvez nem nós, que contra isso cá nos insurgimos com alguma veemência.
Naturalmente,
embora se apresentem com um verniz acadêmico, nenhum desses partidos, formais
ou informais, exerce atividade científica – e entendemos que a crítica
literária deve ser uma atividade científica, na esteira do que, discutindo o
advento da crítica literária no Brasil do século XIX e o sucedâneo da simples impressão pela
apreciação rigorosa, sustenta Regina Zilberman: “a mudança da concepção sobre a
atividade crítica, classificada como fazer científico, fundada em princípios e
fiel a uma metodologia” (ZILBERMAN, 1989, p. 89). Não está Regina Zilberman
sozinha. Também Silviano Santiago assim concebe (conquanto ele mesmo não
consiga praticá-la) a crítica literária moderna, como podemos inferir destas
palavras:
[...] a produção
crítica e ensaística dos não especialistas se revelou insuficiente face às
novas exigências de rigor teórico defendidas pela crítica universitária,
atualizada pelos critérios de pesquisa em métodos de leitura (SANTIAGO, 2004,
p. 165).
Esse caráter científico é
uma das linhas divisórias entre o labor do poeta ou prosador (que cria a ficção
literária desde seu modo singular de sentir e observar o mundo) e o trabalho do
crítico literário que a analisa e examina objetivamente. Está aí implicado que
nem todo discurso (ainda que eventualmente brilhante) que o crítico consiga artificiosamente
tecer a propósito da obra é a verdade, ou simples leitura coerente, da obra em questão. Não raro é
pura fantasia ideológica ou idiossincrática. Que Camões transfigure
poeticamente um acidente geográfico em Gigante Adamastor
é normal, aceitável e até desejável em literatura; que, no momento da análise
literária, o cientista da literatura queira dar largas asas à imaginação e imitá-lo
– como faz John Gledson a pretexto de interpretar deliradas alegorias – é algo
com o qual não podemos resignar-nos, por mais engenhosa que seja tal “viagem”
interpretativa, a qual, portanto, diz respeito apenas à pessoa do intérprete, à
projeção que este faz de si mesmo, mas não à obra supostamente interpretada,
além de atentar contra o princípio da objetividade que deve nortear o trabalho
analítico.
Bem, voltando à oposição
entre atividade científica e ideológica, esclareçamos que não é que um mesmo
sujeito singular não possa desenvolver, paralelamente ao seu labor científico,
uma ação religiosa ou política. Pode. O que acontece é que, quando tal sujeito
estiver no exercício de uma atividade religiosa ou política, não estará fazendo
ciência, e vice-versa. Ciência e ideologia são atividades não só contrapostas,
mas mutuamente excludentes. Helen Caldwell discursa sobre o romance Dom Casmurro na qualidade de militante
do partido feminista, de acordo com os interesses dessa agremiação informal,
que não se confundem com a análise objetiva da crítica literária.
Vejamos a imagem de Bento
Santiago por Caldwell (2002, p. 20): “Sem demora ele aparenta ser um homem
sutil e, além de tudo, um advogado, cujas palavras convém ao leitor pesar
cuidadosamente”.
Desde o início do seu
discurso, Caldwell procura infirmar a credibilidade da personagem Bento
Santiago, também narrador do romance, com argumentos que passam pela atribuição
de sutileza a ele e pela frisada notação de que se trata de um advogado, sendo
certo que, segundo afirma Caldwell, é conveniente desconfiar das pessoas
exercentes de semelhante profissão. Analisando tal argumento, de logo vemos que
Caldwell raciocina por meio de estereótipos e generalizações problemáticas e
inconsistentes. Esse tipo de raciocínio, pela sua eficiência em arrebatar
multidões, é reeditado continuamente nos discursos políticos ou apenas preconceituosos.
Políticos de diversos matizes e épocas o empregaram. Para verificá-lo, basta
substituirmos o termo “advogado”, presente no argumento de Caldwell, por termos
como “homossexual”, “negro”, “judeu”, “burguês”, dentre outras dezenas de
possibilidades; então, ninguém duvidaria de que estaríamos, respectivamente,
diante de discursos hoje tachados de “homofobia”, “racismo”, “nazismo” e
“marxismo”. Helen Caldwell, discursando sobre a personagem Bento Santiago, dá
aos advogados o tratamento que um hitlerista daria um judeu – ou que um
stalinista daria a um burguês – pressupondo-os, apenas pela sua condição de profissionais
do Direito, sujeitos merecedores da desconfiança geral.
Para demonstrar sem paixão
que Bentinho é indigno de confiança, Helen Caldwell deveria buscar, nas
entranhas do Dom Casmurro, os
elementos objetivos que pudessem sustentar sua análise, mas não o faz,
preferindo, como vimos, enveredar-se pelo caminho do discurso de
desqualificação subjetiva por estereótipos e generalizações apressadas, de tal
modo que a circunspecção do narrador do Dom Casmurro, vista e sentida a cada
capítulo do romance sem jamais se contradizer, mantém-se incólume.
Depois de assim racionar a
propósito de Bentinho, Helen Caldwell increpa-o de “suspeito”, em face dos seus
ciúmes:
Permitam-nos examinar
os três “elementos principais” em Dom Casmurro
e compará-los com suas contrapartes em Otelo. Uma
vez que a culpa ou inocência de Capitu dependem inteiramente do testemunho de
Santiago, cujo ciúme, por si só, já torna seu testemunho suspeito, irei
postergar o elemento Desdêmona para os últimos capítulos e tomar no momento
presente os elementos Otelo e Iago. (CALDWELL, 2002, p. 32)
Bentinho de fato é um
tanto ciumento, o texto literário do Dom
Casmurro assim o afirma; e Helen Caldwell dá-lhe crédito neste como em
outros pontos que lhe parecem favoráveis à defesa da “sua cliente”, mas não lho
dá, quando a narrativa desfavorecesse a suposta inocência de Capitu, no que
incorre em incoerência – ou esperteza – que de qualquer sorte afronta a
economia interna do texto machadiano.
Ora, pois! Precisamente ao
avesso de que deseja fazer crer Helen Caldwell no seu discurso político
androfóbico com verniz de crítica literária, em termos rigorosamente lógicos, o
fato de um dos cônjuges manifestar ciúmes, por si só, não torna o outro
necessariamente inocente ou culpado (até porque alguma graduação do ciúme, em
algum momento, faz-se presente em quase todos os liames amorosos do mundo
civilizado. Indo além: o ciúme, tal como se apresenta ao longo da prosa
machadiana da maturidade, jamais é um tema autônomo, subsistente por si mesmo,
não sendo senão, via de regra, um desdobramento ou uma nuança subsidiária da
temática geral da comborçaria ou rivalidade fraternal masculina, de modo que os
ciúmes dos maridos nunca são gratuitos). Desta forma, tal inocência, ou culpa, não
sendo determinável unicamente com arrimo em manifestações de ciúme, deve ser, com
critério e minúcia, averiguada na realidade concreta sob exame[5].
Para Helen Caldwell, que
se põe na posição de advogada de Capitu[6] e cujo
estratagema de defesa consiste na judicialização da análise literária,
reconvindo de modo a fazer de Bentinho “o verdadeiro réu”, toda a narrativa
resume-se a “nisto devemos crer” e “nisto não devemos crer”, olhando para o
romance como um consumidor olha para as prateleiras do supermercado e escolhe
os produtos que deseja levar para casa, ignorando todos os demais, como também
a seqüência e a organização geral das prateleiras, porém, ainda assim,
pretender fornecer a interpretação global do romance.
Ela parte do pressuposto
de que o narrador é suspeito, sem, contudo, apontar, no romance em questão,
quais as passagens que infirmam a sua idoneidade narrativa ou que o desmentem.
Entendemos que, para o analista literário, não basta afirmar “isso” ou “aquilo”
sobre a obra, sendo imprescindível indigitar, na própria obra, onde está o
“isso” e o “aquilo” – no caso, ela deveria apontar e demonstrar quais seriam as
passagens do romance que teriam sido adulteradas pelos ciúmes de Bentinho, ônus
do qual não se desincumbe.
Ainda quanto à problemática
do ciúme, Silviano Santiago diz – em um reducionismo estarrecedor e
embasando-se subservientemente na citada obra de Helen Caldwell, então no
fastígio e a que Silviano não consegue arrostar – que a história de Bentinho,
Capitu e Escobar “é antes estudo do ciúme, e apenas deste” (SANTIAGO, 1978, p.
31). É necessário analisar diretamente o Dom
Casmurro, a fim de saber se ele é de fato só isso ou se é algo mais, que os
antolhos não permitiram ver ao crítico.
Outro ponto para lá de inconsistente
no discurso de Helen Caldwell é a leitura do Dom Casmurro como simples transposição do Otelo, como se fora mera reedição da tragédia de Desdêmona. De
fato, o narrador-personagem do Dom Casmurro
alude algumas vezes à peça de Shakespeare, a que, aliás, assistiu (de resto, já
pelo menos desde as tramas urbanas de José de Alencar era comum, contanto que
não fossem de humilde posição econômica, as personagens romanescas assistirem à
encenação de peças européias nos teatros da Corte brasileira). Porém, de
qualquer sorte, tal narrador alude ou cita outras tantas obras ou autores, a
exemplo de romances de Walter Scott, ou passagens bíblicas, ou ainda a Divina Comédia. Estas alusões, tout court,
não tornam a obra de Machado cópia de nenhuma outra.
De mais a mais, não há entre
o Dom Casmurro e o Otelo, definitivamente, nem a mais leve
e ligeira sombra da correspondência postulada pela leitura anglocêntrica de Helen
Caldwell.
Primeiro, porque Capitu,
por sua indubitável obliqüidade e dissimulação, não se confunde nem um pouco com
a inocência cândida e certa de Desdêmona. Ora, enquanto esta – movida
unicamente pelo amor que Otelo lhe inspirara, ao contar-lhe as tribulações e
vicissitudes da vida guerreira – sacrifica-lhe a residência na pátria, a bênção
paterna (casando contra o gosto e a vontade do pai), a presença dos amigos, as
afinidades de raça e de faixa etária, os ricos pretendentes, a confortável e
privilegiada condição de filho único de um nobre senador Veneziano, tudo para acompanhar
o amado marido nas incertezas e incomodidades da guerra – aquela, sem nenhum sacrifício
e mobilizada por um feixe complexo de pretensões, sentimentos e interesses,
contrai um casamento vantajoso, aprovado e aplaudido por todos os seus parentes
e amigos.
Segundo, porque, no enredo
machadiano, não há nem sombra de uma intriga capciosa, armada por um sujeito perverso
e despeitado, fingido e maquiavélico, como é o alferes Iago, que por meio da
incriminação de uma mulher sem dúvida inocente, pretende dar vazão ao seu
rancor gratuito, à sua maldade orgânica e à sua ambição sem mérito.
Terceiro, porque nem mesmo
os ciúmes de Bentinho são exatamente iguais ou simplesmente comparáveis aos furiosos
e extremados zelos de Otelo, seja no caráter, seja na extensão, seja na agudeza[7].
Sentimos, como já dito, um
vasto anglocentrismo no discurso da feminista norte-americana, que interpreta o
conjunto da composição de Machado de Assis quase exclusivamente à luz da
literatura inglesa, notadamente pela obra de Shakespeare, o que constitui um
reducionismo com o qual dificilmente poderíamos compactuar. Vejamos:
O Otelo de Shakespeare aparece no
argumento de vinte e oito narrativas, peças e artigos. Otelo não foi a única peça de Shakespeare da qual Machado se
serviu: Romeu e Julieta serve de
trama para um romance e nove contos; o personagem Hamlet aparece um pouco por
contaminação – mesmo quando se está tratando de Otelos; Ofélia, Jaques,
Caliban, Lady MacBeth e outros personagens ressurgem miraculosamente nos
subúrbios do Rio de Janeiro. Mas detenhamo-nos, neste trabalho, em Otelo e Dom Casmurro. (CALDWELL, 2002, p. 18-19)
Caldwell não está muito
distante de formular, contra Machado de Assis, uma acusação de plágio. Acusação
improcedente, pois os dados apresentados por ela não são demonstrativos de suas
afirmações, sobretudo porque lhes falta referencial de relatividade. Se Machado
de Assis houvesse escrito umas quarenta ou cinqüenta “narrativas, peças e
artigos”, o número “vinte e oito” e a expressão “um romance e nove contos”,
apontados por Caldwell (e desde que verdadeiros), poderiam ser significativos e
até, talvez, corroborar em parte suas asserções. Ocorre, porém, que as
“narrativas, peças e artigos” machadianos contam-se na casa das várias centenas,
quase um milhar (só contos são cerca de duzentos e é bem maior o número de trabalhos
publicados profissionalmente ou em colaboração com periódicos), de tal maneira
que esse dado (vinte e oito, mais um, mais nove), cotejado com o todo (várias
centenas ou um milhar), torna-se pouco relevante, não se prestando à comprovação
de que fosse Machado de Assis simples tributário do célebre dramaturgo inglês –
e nem sabemos se seus números são verdadeiros, pois Caldwell não transcreve as
passagens dos escritos machadianos que lhes dão lastro.
De resto, essas obras de
Shakespeare não “servem de trama” para as obras do brasileiro, mas são apenas
referidas ou aludidas, aliás, menos do que tantas outras obras, de tantos
outros autores, de variada nacionalidade, que o anglocentrismo de Caldwell não lhe
permitira entrever. Nem há autor que seja absolutamente original – todos mais
ou menos degustam as iguarias do banquete literário dos grandes autores do
passado ou das tradições orais do povo, e o próprio Shakespeare não é exceção,
sobretudo porque a composição de suas principais tragédias, no mínimo, é francamente
tributária de histórias que há séculos corriam o continente europeu.
Em verdade, na “análise”
de Caldwell o grande dramaturgo inglês torna-se onipresente na obra machadiana,
não porque ele de fato o seja, mas porque a paranóia da feminista anglocêntrica
assim o torna, para satisfação de seus interesses partidários. No concernente
ao romance Dom Casmurro, em particular,
Helen Caldwell, a partir de algumas menções e alusões, como dissemos acima,
interpreta-o quase como uma simples e subserviente adaptação do Otelo, de Shakespeare:
O título desse
capítulo é “Uma ponta de Iago”; desse ponto em diante, o Otelo-Santiago toma
para si também o papel de Iago, manipulando seus próprios lenços para atiçar o
furor de seu próprio ciúme. O Iago inicial – José Dias – reverte gradualmente
sua opinião sobre Capitu, trabalha a favor de sua união com Bentinho. (CALDWELL,
2002, p. 25)
Aqui, como no mais, Helen
Caldwell analisa o Dom Casmurro não
como ele é (respeitando sua coerência interna), mas como ela desejaria que ele
fosse, de modo a atender às exigências de sua militância política. Nesse
sentido, causa espécie o caráter perfunctório e fantasioso da leitura da
personagem José Dias realizada por ela – para não falarmos de Bentinho, objeto
central de sua androfobia. Ora, oportunamente veremos, quando levarmos a efeito
a investigação sobre este romance, um pouco de quem seja o agregado José Dias,
que em nada se confunde com Iago.
Da mesma forma, a Capitu
que emerge do discurso de Helen Caldwell tem bem pouco ou nada que ver com
aquela personagem que povoa a diegese do romance machadiano. Vejamos:
Como uma boa esposa
luso-brasileira, ela nunca “contraria” Santiago.
Mas a verdadeira
motivação de todos os atos de Capitu é o seu amor, seu ilimitado amor por
Santiago, e o orgulho que tem desse amor. É o seu amor que fortalece a união
conjugal. (CALDWELL, 2002, p. 107)
Aqui, uma vez mais!,
estamos diante não do que efetivamente há no Dom Casmurro, mas daquilo que, pela interpretação delirante que faz
com amparo no seu anglocentrismo e na ideologia do seu partido político, Helen
Caldwell gostaria que nele existisse, como forma de igualar, à força, Capitu e
Desdêmona. Veremos oportunamente se Capitu é ou não uma cândida e apaixonada heroína
romântica, e se seus passos são ou não guiados tão só por um “ilimitado amor”, ou
se tal sentimento é mesmo “a verdadeira motivação de todos” os seus atos, como
quer fazer crer o partido feminista norte-americano. Reconhecemos, entretanto,
que Capitu é uma personagem fascinante e é natural que muitos
críticos, enamorados dela, queiram ser seu advogado ou fazer dela símbolo partidário,
na impossibilidade de levá-la ao altar em segundas núpcias...
O estratagema de Helen
Caldwell para inflar artificialmente a dúvida e amortecer até as mais varonis conclusões
da crítica literária objetiva consiste no seguinte: destacar de forma seletiva
um ou outro ponto um tanto mais elíptico da narrativa, ainda que pouco ou nada
relevante (até porque seria de todo inverossímil que, em um relato
memorialístico, o narrador se recordasse de tudo); atacar, da maneira mais
apaixonada, os principais estudos pregressos, ainda que apenas com argumentos
baseados em estereótipos; afirmar, de forma categórica, passional e com toda a
convicção, exatamente o inverso do que reside expressamente escrito em cada
página da obra, assassinando sua coerência interna; inventar, arbitrariamente,
uma identidade entre o Dom Casmurro e
a tragédia de Otelo e Desdêmona; e, last not least, ignorar sistematicamente o peso de
todas as evidências e estudos em sentido oposto, inflando artificial e
exacerbadamente eventuais pequenas incertezas associadas ao estilo do autor, à
técnica narrativa empregada e ao próprio fazer literário.
Essa alucinação
interpretativa, a despeito de ser totalmente infeliz e improcedente, pôde
alcançar sucesso acadêmico no Brasil ou porque simplesmente veio do estrangeiro
(não vencemos ainda o nosso velho “complexo de vira-latas”) ou porque encontrou
apoio irrestrito na coligação de partidos políticos informais que já então
dominavam amplamente as faculdades de ciências humanas, impondo a alunos e
professores a sua visão ideológica, ainda quando escandalosamente dissociada da
verdade.
Aliás, o acirrado e
profundo mergulho em doutrinas ideológicas, o não pensar senão sob as estritas balizas
de uma ideologia absorvente e paranóica – base onde fora gestada a
irracionalidade que levara Helen Caldwell a deflagrar, contra o romance
machadiano, esse grave crime interpretativo chamado O Otelo Brasileiro de Machado de Assis – é, guardadas as devidas
proporções em termos de conseqüências práticas, rigorosamente o mesmo fenômeno
que no curso dos tempos vem motivando o cometimento de crimes hediondos contra
a humanidade, a exemplo das matanças ocorridas nas incontáveis “guerras santas”
dos últimos séculos ou dos genocídios perpetrados por Stálin, Mao Tsé Tung, Hitler
e outros criminosos de menor espectro, mas igual irracionalidade alucinada de
base ideológica.
Enfim, analisamos aqui a “crítica
literária” feminista pela importância que auferira com a publicação, por Helen
Caldwell, do Otelo Brasileiro de Machado
de Assis. Em que pese às críticas que cá lhe fizemos – as quais dizem
respeito à sua atuação no âmbito literário –, entendemos que o feminismo é um partido
político cuja existência é tão legítima quanto a de qualquer outra agremiação ideológica
(política ou religiosa), contanto que não exorbite de sua área de atuação; porém,
seja como for, não condescendemos com a ingerência do proselitismo político ou
religioso na atividade científica.
Por outro lado, se
houvesse uma “crítica literária catolicista”, com semelhante repercussão e a subseqüente
influência acadêmica angariada pela crítica feminista, seria aqui igualmente
considerada, e é provável que então tivéssemos que analisar a seguinte leitura
do Dom Casmurro, em que Capitu quase
desapareceria: “Esta obra é uma grande parábola sobre a necessidade de todos
sermos tementes e obedientes a Deus, para gozarmos da Sua bem-aventurança e
fugirmos a Seu castigo. Dona Glória prometera seu filho a Deus, porém, tentada
pelo Inimigo, roubou-o ao serviço divino e deu-o ao mundo. Deus, para castigar
a ofensa e utilizando-se da vizinha da família como instrumento da punição, fez
que o filho de dona Glória padecesse na vida mundana a mesma ausência de filhos
próprios que teria no casto serviço da Santa Madre Igreja de Deus,
substituindo-se, contudo, a honra deste pela desonra de marido enganado”. Esta suposta
leitura catolicista, aqui confeccionada apenas para efeito de ilustração, seria
tão boa quanto a leitura feminista de Helen Caldwell ou qualquer outra das
centenas de leituras ideológicas que um cérebro imaginoso é capaz de construir
– todas igualmente arbitrárias e destituídas da objetividade científica.
Aliás, ad argumentandum, essa interpretação catolicista
está muitíssimo menos desautorizada no romance do que a feminista ou a
marxista, tendo em consideração a não desprezível presença, no Dom Casmurro, de personagens, figuras e
alusões ao universo eclesiástico cristão. Entretanto, o que aí vai já basta à verificação
de que, engolfado em uma prévia doutrina de representação utópica do mundo, é
relativamente fácil, para um político ou ativista de talento mediano, ir
deformando pouco e pouco a obra literária até fazê-la enquadrar-se no seu sistema
ideológico pré-moldado. Porém, essa conduta sempre esbarra no fato de que um
grande monumento literário, como o Dom
Casmurro, traz em si uma imensa capacidade de resistência às interpretações
fantasiosas ou deformadoras, razão pela qual vem sobrevivendo bem aos
sucessivos ataques dos militantes políticos infiltrados nas letras.
E por falar em doutrina
prévia de representação utópica do mundo, assim é que um Roberto Schwarz, tal
qual Helen Caldwell (mudando apenas de partido político informal: saindo o
feminista e entrando o marxista), nos livros Ao vencedor as batatas, Um
mestre na periferia do capitalismo e Duas meninas, procura
encaixilhar a obra machadiana nos esquemas mentais da ideologia marxista, de
tal modo que ele, de fato, não lê o que foi escrito por Machado de Assis, senão
o que ele gostaria que Machado de Assis houvesse expressado nessas obras, se este
não fosse infenso às teorias utópicas – “teorias do papel, válidas no papel,
mancas na prática” (ASSIS, 2007, p. 150) – como o nosso superno prosador escreve
no conto A Sereníssima República. Eis
a verdadeira grandeza de Machado de Assis, o qual, com perfeição e parcimônia,
consegue com duas palavras e uma metáfora dar, ironizando-as, a exata definição
das doutrinas políticas nefelibatas, como a do marxismo ao qual está em
subsunção a leitura de Roberto Schwarz. Isso porque não emerge dos romances
machadianos nenhum propósito primordial no sentido de criticar alguma espécie
de “elite” ou de “patriarcado”, mas suas narrativas desnudam com finura e
mordacidade o ser humano em si mesmo, independentemente de qualquer recorte
“social” arbitrário.
No entanto Helen Caldwell,
incansável, afirma ainda que o enredo dos romances machadianos possuiria como base
única “o drama resultante de naturezas contrastantes”, atribuindo ao próprio
Machado tal asserção:
Essa é a história de
Santiago – uma história de traição pela mulher com o melhor amigo. Mas Machado
de Assis (em contraste com sua criatura Santiago) não tinha o hábito de
escrever romances de intriga. A base de seus romances, como ele mesmo afirma em
mais de uma ocasião, é mostrar o drama resultante da inter-relação de naturezas
contrastantes. Ele acredita evidentemente ser esta a única base para o enredo. (CALDWELL, 2002, p. 31)
Nosso
trabalho procurou contribuir no sentido de avaliar que, se de fato há uma
estrutura básica única para o enredo machadiano, sobretudo na maturidade
romanesca, ela poderia estar na recorrência temática da comborçaria ou
rivalidade fraternal masculina e da infecundidade masculina, e não naquilo que
alega a feminista.
Conquanto
carente de base racional e da imparcialidade científica, o discurso de Caldwell exerceu (e ainda exerce)
grande influência nos subseqüentes trabalhos de crítica literária voltados para
a obra machadiana, em especial para o Dom
Casmurro, em uma prova de que a paixão é realmente mais forte que a razão,
como diria Medéia. O resultado disso são análises literárias eivadas de
contradição, ainda quando realizadas por críticos de primeira água,
como Alfredo Bosi. Para este, na análise de faz do romance de Bentinho, Escobar
e Capitu:
Falta o adolescente
Bentinho que, traído pela mulher amada e pelo melhor amigo, virou Dom Casmurro.
Na verdade, um romance de Machado não se deve resumir: e como fazê-lo se o que
neles importa não é o fato em si, mas a constelação de intenções e de
ressonâncias que o envolve? Ainda que Capitu não houvesse cometido o adultério
(e o romance não dá nenhuma prova decisiva), tudo nela era a possibilidade do
engano, desde os olhos de ressaca oblíquos e dissimulados, que se deixavam
estar nos momentos de raiva “com as pupilas vagas e surdas”, até às mesmas
idéias que já em menina se faziam “hábeis, sinuosas, surdas, e alcançavam o fim
proposto, não de salto, mas aos saltinhos”. (BOSI, 2003, p. 181)
Como
conciliar a afirmação de que Bentinho fora traído “pela mulher amada e pelo
melhor amigo”, com esta outra, de que o romance não dá nenhuma “prova decisiva”
do adultério? Ou bem se assevera que Bentinho foi traído, não havendo,
portanto, dúvida quanto ao adultério; ou se declara que não há “prova decisiva”
da ocorrência deste, e, portanto, não se pode afirmar a existência de traição. Aliás,
dupla traição (conquanto a perfídia de Escobar, curiosamente e ao contrário da
de sua amante, jamais haja merecido maior debate ou simples direito a
advogado). É de ressaltar que cá não questionamos o “Ainda que Capitu não houvesse cometido
o adultério”, uma ressalta pertinente em análise literária,
mas a contraditória afirmação subseqüente, a qual, no particular, configura-se
hoje uma concessão quase obrigatória ao discurso de Caldwell, embora a ela nem
todo crítico literário brasileiro submeta-se, como é o caso de Massaud Moisés:
Figura trágica,
Capitu é o símbolo da dissimulação: criminosa e vítima ao mesmo tempo, atada a
qualidades que a perderam, é mais um anátema que bênção a sagacidade com que
manobra o seu pequeno mundo doméstico. Incapaz de amar, mesmo a Escobar, de
quem teve o filho que Bentinho não lhe podia oferecer, a síndrome da
maternidade apenas disfarça o trágico destino de sibila, a cumprir ordens
míticas. (MOISÉS, 2001, p. 95)
Como
vimos, Massaud Moisés, na passagem reportada, ao salientar a impossibilidade
reprodutiva de Bentinho, sepulta qualquer dúvida concernente aos amores
subterrâneos de Capitu e Escobar e, assim, não desposa a tese revolucionária da
feminista norte-americana Helen Caldwell. De resto, a filiação de Ezequiel é um
ponto sobre o qual a crítica literária tem estabelecido renhida controvérsia,
que enfrentaremos mais detidamente em capítulo próprio. No mais, Moisés assevera
ainda a incapacidade de Capitu para o amor, afirmação que tromba frontalmente
com o discurso de Helen Caldwell, para a qual, como já vimos, Capitu é uma amantíssima
esposa luso-brasileira, movida unicamente por amor e vítima inocente dos ciúmes
doentios do marido insensível.
No entanto, em que pese à
contradição, Alfredo Bosi fala expressamente na ausência de “prova decisiva” do
adultério de Capitu (e já agora não temos mais como escapar à judicialização da
análise literária). O que é “prova decisiva”? Ele não explica. A princípio
parece algo subjetivo, mas podemos pensar que prova decisiva é aquela que não
deixa margem para dúvidas, uma espécie de “prova cabal”. Existe isso? No mundo
das abstrações matemáticas acostumamo-nos a crer que exista (embora um céptico
empedernido, ainda aí, afirme suas dúvidas), mas, e no mundo material? Será que
aquilo que aparece diante dos nossos olhos é prova cabal, decisiva e
indubitável seja lá do que for? Nossos sentidos são indefectíveis? Será que se
todos os magistrados exigissem a exibição de prova cabal, algum réu seria condenado
em algum lugar do mundo? Apesar de ninguém o discutir, será que existe “prova decisiva”
de que Virgília cometera adultério com Brás Cubas? Será impossível que o “defunto
autor” haja inventado tudo aquilo que lá vai narrado nas Memórias Póstumas de Brás Cubas só por vindita, já que fora
preterido em sua pretensão matrimonial? Afinal de contas, o que ali vai é a
“sua versão dos fatos”, como dizem os chicaneiros travestidos de críticos
literários... Em verdade, em se querendo duvidar, não restará nem uma única
certeza neste mundo – nem no outro. Nem mesmo o “cogito” cartesiano
salvar-se-á.
Os exames de DNA, enquanto
“prova decisiva”, estão muito em voga e diante deles, se positivos, nenhum
homem escapa de pagar pensão alimentícia. Sobre tais provas, diz o cientista
Sérgio Danilo Pena:
A
sonda F10 (...), adaptada para um procedimento não-radioativo com
quimioluminescência, detecta de 15
a 20 fragmentos variáveis de DNA maiores que 4 kb por
indivíduo (...) e sozinha permite uma probabilidade média de exclusão de
99,98%. A associação da F10 com duas outras sondas multilocais [DNF24 e (CA)n]
permite uma poder de exclusão superior a 99,999999%. (PENA, 1997, p. 234)
Isso é prova cabal? Não é,
embora seja o que disso mais se aproxime no mundo material como agora o
conhecemos. No primeiro percentual apresentado pelo lúcido cientista, há em
média dois erros a cada dez mil investigações e, mesmo no segundo, ainda resta cerca
de um erro a cada cem milhões de casos, e isso considerando que nenhum pesquisador
da equipe jamais adulterará um exame desses (confiar na ética do ser humano
nunca foi sem problemas). Porém, com arrimo em um exame assim, dezenas de
homens são diariamente condenados ao pagamento de prestação alimentícia. Por
quê? Porque nenhum julgador racional, para firmar sua convicção, procura “prova
cabal” – só quem trabalha com semelhantes exigências são, novamente, os
cépticos mal-intencionados e os advogados chicaneiros, com vistas a tentar de
alguma maneira beneficiar-se do milenar instituto do in dubio pro reo.
Ora, certa margem de
dúvida e de incerteza é inerente às coisas deste mundo, por isso mesmo é que, ao
invés da prova cabal, a postura geral do juiz prudente, em qualquer caso, é procurar
saber se, perante o conjunto dos testemunhos e indícios materiais coligidos, há
dúvida razoável, não desprezível, quanto à autoria dos fatos imputados ao réu,
ou uma probabilidade não insignificante de ser ele inocente, considerando a
normalidade da vida de um ser humano e o concurso de circunstâncias que regularmente
envolvem suas ações. Não havendo uma dúvida ou uma probabilidade assim, não
resta senão resignar-se às evidências.
Deixando de lado, pois, a
insensata procura por uma impossível “prova cabal”, que não pode ser encontrada
nem sequer em um exame de DNA (o qual adquire credibilidade apenas por tornar
insignificante e desprezível a margem de incerteza), veremos, no caso de Capitu
e Escobar, com amparo positivo no exame minucioso das circunstâncias e razões
trazidas pela prosa machadiana, se há ou não dúvida razoável quanto à
existência da possível ligação amorosa clandestina.
Augusto Meyer, notável
admirador e estudioso da obra de Machado de Assis, assim se pronuncia sobre
Capitu, atribuindo-lhe a ela, e não a Bentinho, o estigma da insensibilidade:
Capitu atravessa o
livro numa névoa de mistério. (...) A subterraneidade profunda que o leitor
adivinha através da imagem superficial, passa apenas por três momentos de
erupção incontida: quando se revolta contra a teimosia de D. Glória, quando se
despede do cadáver de Escobar e quando, enfim, diante da acusação viva que é o
filho, confessa – confessa? – num relancear de olhos a sua culpa. No entanto,
êsses três momentos fugitivos em nada alteram a impassibilidade da sua hipocrisia,
que é de uma consistência estrutural. (...) Capitu mente como transpira, por
necessidade orgânica. (MEYER, 1947, p. 60-61)
Segundo ele, Capitu é uma
personagem nebulosa, e a narrativa, mostrando-a assim, corrobora o caráter
dissimulador e escorregadio da nora de dona Glória. Augusto Meyer aponta a
raridade e a brevidade dos instantes em que Capitu, diante do narrador-personagem (e, ipso facto, do leitor), emerge do
subterrâneo e revela-se tal como é, logo se recolhendo de novo à sua estratégia
de ação e de autodefesa, que passa necessariamente pelo fingimento, à maneira
de Tartufo. No entanto, segundo podemos inferir de suas palavras, há dúvida
quanto ao fato de o último gesto de Capitu ser ou não uma confissão de culpa,
não obstante seja certo, para Meyer, que o engano e a arte do logro em Capitu,
de tão praticados e assimilados, tornaram-se algo natural nela, uma segunda
pele, incorporando-se-lhe de tal modo que ela com facilidade alcança manter-se
impassível, ainda quando diante da acusação mais tremenda.
Em ensejo propício veremos,
com espeque nas próprias narrativas machadianas, qual é o feixe de motivos
dessa exibição de impassibilidade (desde já adiantamos que não é apenas por
“necessidade orgânica”, pois ela dificilmente mentiria assim se não houvesse
algo mais em causa) e a importância desses “momentos de erupção incontida”.
Ganharam nomeada nas
últimas décadas as publicações de John Gledson sobre a obra de Machado de
Assis, sobretudo a propósito do Dom
Casmurro. O seu pressuposto fundamental é no sentido de que o narrador deste
romance é um “enganador”. Essa afirmação de Gledson é tão absolutamente
crucial, tão cardinal, que um crítico literário sério, ao formulá-la, dedicar-lhe-ia
até mesmo metade do livro, só para documentá-la bem e ampará-la com toda a
firmeza, tão formidáveis são suas conseqüências e seus desdobramentos na
análise. Todavia, e surpreendentemente, não o faz, de modo que essa afirmação capital
jaz em profundo estado de leviandade.
Para além disso, como aludimos
algumas páginas antes, sua interpretação baseia-se em alegadas “alegorias” por
sob as quais o romancista teria escamoteado a verdade.
Vejamos se há razões para
isso. Quanto ao narrador, diz ele:
Primeiro, ele é,
evidentemente, um enganador que está tentando nos persuadir de uma dada versão
dos fatos de sua história; mas, visto que também tenta persuadir a si próprio
(e talvez por ser um bom advogado), podemos confiar nos fatos da maneira como
nos são fornecidos (se o termo “fato”, um tanto vago, puder ser aceito por
enquanto). (GLEDSON, 1991, p. 21)
Prima facie,
chama a atenção o destacado emprego do advérbio “evidentemente”, dando a
entender que é claríssima – e, por conseguinte, indiscutível e axiomática,
porque por todos facilmente percebida – a sua alegação de que o narrador é um
enganador. Já aí estamos diante de uma intimidação ao leitor, que, como é
natural, não quererá ser o único a não ver aquilo que é tão auto-evidente que só
uma obtusidade mórbida poderia deixar de percebê-lo. Ocorre que tal situação do
narrador não é tão evidente assim, como pretende fazer crer Gledson, o qual, porventura,
utiliza tal método intimidatório a fim de desobrigar-se da incumbência de
fornecer subsídios concretos com que fundamente a sua suposição – sem os quais,
de resto, semelhante alegação permanece inteiramente infundada (ou fundada no incrível
estereótipo do advogado, repetindo Helen Caldwell).
No
decurso de seus presunçosos e enfadonhos livros, Gledson não aponta, na obra
machadiana, uma única contradição, incongruência ou incoerência significativa
por cujo condão pudéssemos afirmar convictamente que o narrador do Dom Casmurro engana-se ou engana-nos com
tal ou qual declaração, deste ou daquele capítulo. Ao invés disso, tomando solertemente
o engano como já misticamente “provado”, segue argumentando que o narrador
dá-nos apenas determinada “versão dos fatos” – como se a narrativa não nos
desse o fato enquanto verdade literária, e houvesse outra versão possível, que
desmentisse a primeira (o adultério de Virgília e Brás Cubas também é apenas
uma “versão dos fatos”?). Ora, em literatura de ficção, ao inverso do que
ocorre no universo comum em que vivem as “pessoas reais”, não há uma versão dos
fatos, passível de ser desmistificada por ulteriores versões; há unicamente os
fatos apresentados ou aludidos na obra, os quais podem ser interpretados, mas
nunca desmentidos, pois são tudo, peremptoriamente. O ulterior advento de uma
nova “versão dos fatos”, em formato de obra literária, será outra criação, da
qual a primitiva permanecerá de todo independente; e se vier em formato de
crítica literária, será puro delírio, pois esta não possui o condão de
modificar a estrutura e a coerência interna da obra.
Aliás,
muitas ideologias políticas descrêem de fatos, acreditando apenas na existência
de versões – como os nazistas, para os quais uma mentira repetida mil vezes
tornava-se uma verdade. Lego, ou, antes, triste engano, pois os fatos em si mesmos
jamais poderão ser alterados. Uma mentira ou uma versão enganosa deles, ainda quando
repetida um milhão de vezes e crida por um milhão de anos, nunca deixará de ser
o que é – uma mentira. Uma vez vindo à tona a verdade, todos os precedentes
séculos em que vigera a versão falaz dos fatos tornam-se objeto de admiração
escarninha ou até de piedade – que o digam os defensores do geocentrismo
ptolomaico. Essas ideologias trouxeram seu ideário também para a análise literária,
na qual igualmente descrêem dos fatos (as obras em si), para dar crédito apenas
a suas inventadas versões (as interpretações fantasistas que fazem dessas obras
com base em seu receituário político ou religioso).
John
Gledson mantém-se firmemente cativo desses procedimentos ideológicos,
dispensando-se de arrolar provas e descuidando-se da realidade que o cerca (o
artefato literário). Por exemplo: a sua suposição de que o narrador escreve
para persuadir a si mesmo e ao leitor, ele também não a sustenta com elementos que
haja expressamente encontrado no romance, e de novo, como sempre, Gledson esquiva-se
de demonstrar, conscienciosamente, com supedâneo em quais dados concretos,
presentes na obra, elabora as suas suposições e constrói as suas mirabolantes
ilações.
Como
se tudo isso não bastasse, John
Gledson fornece-nos prova bastante de que ele mesmo é que é um embusteiro,
desmerecedor de confiança, pois suas palavras são francamente contraditórias e
incoerentes. Demonstremo-lo: tendo deixado genericamente expresso que o
narrador do Dom Casmurro é um enganador
cujo intuito é convencer o leitor e a si mesmo, um instante depois afirma que
“podemos confiar nos fatos da maneira como nos são fornecidos”. Ora, ou bem
Bentinho é um enganador (e, portanto, não podemos confiar nos fatos tais como
os apresenta), ou ele não o é (e, portanto, podemos confiar). Em termos
rigorosamente lógicos, não é possível uma terceira situação para ele. Tertium non datur.
No mínimo, é prova de confusão mental
pedir que confiemos nos fatos tais como aduzidos por um reputado enganador.
Suas graves contradições e
incoerências, porém, não param por aí. Tendo afirmado que “evidentemente”
Bentinho é um enganador (e neste “evidentemente” não cabe dúvida, pois a
nitidez é total), dois parágrafos adiante, discutindo agora uma possível intervenção
direta de Machado de Assis na narrativa (autodiegética) do Dom Casmurro, declara, no particular, que “pouco ou nada, no Dom Casmurro, é tão nítido assim, mas a
intervenção do autor ainda está presente de modo subjacente em toda a obra”
(GLEDSON, 1991, p. 21).
Ora, ou é bem verdade que o
caráter do protagonista pode ser percebido “evidentemente” na narrativa, ou é
bem certo que nesta há “pouco ou nada” que seja nítido (nem se alegue que justamente
o caráter do protagonista possa incluir-se nesse “pouco ou nada”, pois seria
absurdo), mas nunca as duas coisas ao mesmo tempo, que, mutatis mutandis, equivale a dizer que uma mulher está grávida e,
simultaneamente, que ela não está grávida... Ou ela está, ou não está; ou o
romance deixa perceber com nitidez a questão mais relevante ou não o deixa. Não
há uma terceira hipótese. Tertium non datur, de
novo. Essas contradições e incoerências reiteram-se no decurso das
cansativas páginas de John Gledson, corroborando inelutavelmente, não o caráter
enganador da personagem machadiana encarregada da narração, mas a total inépcia
do crítico literário em questão.
Outro
vezo de Gledson é interpretar o romance machadiano tomando uma ou outra passagem
particular como sendo uma “alegoria”, para cuja interpretação apega-se, com
total arbitrariedade, a uma palavra ou frase que, sem embargo da irrelevância
na economia da narrativa, são adrede ou randomicamente pinçadas da obra e com
isso embarca Gledson em uma larga e laboriosa invencionice, viajando para
galáxias longínquas, mui distantes da ação da narrativa. Exemplifiquemos: ele
diz existir uma grande alegoria no
Dom Casmurro, mais precisamente no
episódio em que Bentinho e Manduca estabelecem uma polêmica com base em suas respectivas
preferências por russos e turcos na Guerra da Criméia. Amparando-se tão-somente
nessa simples alegação de existência de alegoria e sem se escorar em
absolutamente nenhum elemento concreto trazido pela narrativa machadiana, John
Gledson transforma a Guerra da Criméia (presente no romance) na Guerra do
Paraguai (de todo ausente dele), a Rússia em Brasil e Argentina, a Turquia em
país governado por Solano López (GLEDSON, 1991, p. 120-126), de tal modo que só
nos resta indagar que tipo de alucinação é a sua, uma vez que para montar esta
“alegoria”, diferentemente das outras, ele nem sequer se vale de uma única
palavrinha solta no texto, o que é mais chocante.
Outro
delírio de Gledson: a partir do nome de Massinissa (um otimista dirá que aqui,
pelo menos, ele arranca desde uma palavra presente no romance, o que já é um
avanço em comparação à alegoria da Guerra do Paraguai), um dos quatro bustos
decorativos da sala da casa de Bentinho, mencionado de passagem no início e ao
final do romance, Gledson afirma: “Não só Capitu é comparável a Sofonisba (e de
maneira mais minuciosa que pela simples boa vontade na aceitação do veneno),
mas igualmente Bento a Massinissa” (GLEDSON, 1991, p. 139).
Como
acabamos de ver, a simples menção da existência deste objeto de decoração na
casa do protagonista, tout court,
já basta para o crítico ir desencavar a história de Massinissa e cravar,
arbitrariamente, que este é Bentinho, o marido que serve veneno à mulher, e
Capitu é Sofonisba, a esposa que aceita ser envenenada... Pouco importa, para
Gledson, que Bentinho nem sequer saiba quando nem onde a família adquirira tais
objetos (isso, na sua explicação mirabolante, em que é contumaz, seria a
intervenção direta de Machado de Assis da narrativa autodiegética...). É de
cogitar sobre o que diria Gledson se a sua escolha proposital ou aleatória
recaísse arbitrariamente em outro qualquer objeto irrelevante referido no
romance, ou mesmo em um dos outros bustos, o de Nero, por exemplo. Aí decerto
ele diria, fazendo uma vasta incursão pela história do Império Romano e tratando
de interpretar trabalhosamente a suposta “alegoria”, que Bentinho é Nero, o imperador
incendiário, e Roma é Capitu, a esposa que aceita ser incendiada...
Mas
no quesito invencionice, a título de interpretar fantasiadas alegorias, John
Gledson é insuperável, porventura por isso mesmo faça tanto sucesso nas Letras
destes tristes trópicos. Vejamos mais um caso, no qual ele consegue transformar
Ezequiel, cuja participação no romance cinge-se praticamente a “perder” a mãe,
em “alegoria” do fim do Império Brasileiro!
De fato, uma indireta
referência final ao imperador sugere que Ezequiel possa ser identificado com o
Império moribundo, em vez de o ser com uma esperança no futuro. Trata-se do seu
interesse pela arqueologia, disciplina pela qual d. Pedro II também era apaixonado,
paixão revelada especialmente no fim do reinado, quando fazia viagens à Grécia,
à Palestina e ao Egito (em fins de 1876). (GLEDSON, 1991, p. 140)
John
Gledson parece não ter grande noção daquilo que os latinos designavam por “non
sequitur”.
O interesse da personagem Ezequiel pela arqueologia está longe de significar, de
forma necessária ou mesmo remota, referência indireta a d. Pedro II, só porque
este, dentre mil outros e sem nenhuma preferência capital, também apreciava o assunto,
mas é tal o pressuposto do crítico inglês. Daí a identificar Ezequiel com o
próprio Império Brasileiro e tomar a morte próxima desta personagem como uma
“alegoria” para o fim do regime monárquico nacional foi um pulo. Nesse
exercício de forjar “alegorias” arbitrárias parece mesmo haver o inconfessável
desejo de encontrar pretexto para intermináveis incursões eruditas e demonstrações
de conhecimento de fatos históricos. Essas incursões e demonstrações são
perfeitamente legítimas e bem-vindas, contanto que o artefato literário sub oculis assim o exija para a sua
melhor compreensão e maior esclarecimento, mas são aborrecidas e falazes, quando
gratuitas ou desmedidas. Enfim, por meio das análises de John Gledson ficamos a
conhecer muito sobre a História Geral ou do Brasil, porém quase nada sobre os
romances machadianos...
Nem
a nossa crítica às falácias de John Gledson deve ser tomada como negação da
existência de alegorias nas obras literárias. Elas aí existem, mas a sua
afirmação demanda uma demonstração conscienciosa por parte do intérprete, sem a
qual o significado passa a ser aquele “andarilho exilado” de que fala Harold Bloom.
Ora, como temos visto, as associações arbitrárias que subjazem à superstição
popular são menos discricionárias e inverossímeis que aquelas que fundamentam
as alegorias de Gledson... É de imaginar o olhar irônico de Machado de Assis, o
riso ao canto da boca, se, por infortuna, lesse semelhantes críticos!
2.2.
Até Aonde Vai a Liberdade do Intérprete
O
escritor e crítico literário Umberto Eco, dentre tantos cuidados, também se pusera
a analisar o fenômeno da interpretação de textos em geral e de monumentos literários
em particular. Não é o caso de realizarmos aqui um inventário da vasta gama de
assuntos tratados na obra deste grande estudioso italiano. Ater-nos-emos a
alguns pontos nodais de Interpretação e
Superinterpretação, de Os Limites da
Interpretação e de alguns ensaios por ele publicados, abordando dos tópicos
cá discutidos.
De
logo notamos que Umberto Eco ocupa-se da explicitação de conceitos atinentes à
distinção entre o uso e a interpretação de textos. O uso, segundo Eco (2005),
concerne ao fato de o leitor desconsiderar as intenções e a coerência interna
do texto, empreendendo uma livre associação de idéias a partir de palavras ou
frases isoladamente pinçadas do tecido escrito, notadamente o literário. O
exercício da interpretação, ao revés, compele o intérprete ao respeito às
intenções e à coerência interna do texto, devendo ser-lhes fidedigno. Tal
exercício traz em si a implicação de que a obra consubstancia-se em alguns
termos literais aos quais o intérprete não pode fugir.
O
uso, sobretudo tendo como objeto uma obra literária, torna-se um problema, quando
rotineiramente arroga para si o status
de interpretação, hipótese em que se converte em abuso, ensejando a construção
de delírios, alucinações e paranóias, travestidos de análise literária. Com tal
fundamento, identificamos que é exatamente este o subjacente fenômeno diretor dos
procedimentos de análise ou proposta de leitura literária adotados pelos militantes
dos partidos políticos informais anteriormente citados, pois eles não investigam
o artefato literário em si, nem lhe pretendem de fato desvendar as
significações, mas o utilizam como mero meio de reafirmação ou propagação de
sua doutrina partidária e de seu poder político, cuidando, porém, de ataviar tal
procedimento com algumas roupagens da crítica literária.
Avançando,
Umberto Eco concentra-se na definição da conduta que deve nortear a genuína
interpretação das obras literárias. Entendamos o seu pensamento.
A leitura das obras
literárias nos obriga a um exercício de fidelidade e de respeito na liberdade
da interpretação. Há uma perigosa heresia crítica, típica de nossos dias, para
a qual de uma obra literária pode-se fazer o que se queira, nelas lendo aquilo
que nossos mais incontroláveis impulsos nos sugerirem. Não é verdade. (ECO,
2003, p. 12)
A
“perigosa heresia crítica” da qual fala Umberto Eco é filha de investidas ideológicas
ao campo das ciências humanas, investidas que, na seara da crítica literária,
ancora-se em uma atual visão degenerescente das propostas da Estética da
Recepção. Esta última linha de proposição de sentido do texto literário
pretende realçar, não sem razão, a importância e o contributo do leitor (seja enquanto
leitor-modelo, concebido teoricamente pelo próprio autor do texto, seja
enquanto leitor empírico, com seus instrumentos pessoais de interpretação) no processo
de estabelecimento dos possíveis sentidos desses artefatos, isso já desde o estádio
de concepção das obras, o que não significa, como corruptamente faz a
mencionada heresia, uma liberdade irrestrita de leitura. Os possíveis
significados dos monumentos literários decerto são muitos, talvez
potencialmente incomensuráveis (não o nega Umberto Eco), contudo, nem por isso podem
ser levados a todo e qualquer lugar a que desejem conduzi-los o instinto
incontido e as paixões irrefreáveis dos críticos literários irrefletidos,
imponderados ou a serviço de ideários preconcebidos.
Umberto
Eco ainda põe ênfase na circunstância de que isso seria “típico de nossos
dias”, o que provavelmente é uma alusão ao radicalismo conceptual e interpretativo
das pessoas submetidas (ao longo de toda a carreira acadêmica) ao fanatismo de
múltiplos movimentos ideológicos incrustados nas instituições de ensino do
nosso tempo – daí a visão degenerescente que têm da Estética da Recepção, à qual
aludíamos, como de tudo o mais –, embora isso não seja propriamente apanágio do
século XX e início do XXI, haja vista que os séculos imediatamente precedentes
também conheceram as suas radicalizações e os seus fanatismos.
Eco
aprofunda sua análise, pontificando:
Os textos literários
não somente dizem explicitamente aquilo que nunca poderemos colocar em dúvida
mas, à diferença do mundo, assinalam com soberana autoridade aquilo que neles
deve ser assumido como relevante e aquilo que não podemos tomar como ponto de partida para interpretações livres.
(ECO, 2003, p. 13)
Em
conformidade com o pensamento de Umberto Eco, é a própria obra literária (intencio operis) que permite ou não a
existência de polissemia, de dúvida quanto ao todo ou a quaisquer de suas
passagens, autoriza ou não as leituras propostas pelos receptores (e essa
“intenção da obra” não se confunde com a intencio
auctoris e, por outro lado, está relativamente distante da intencio lectoris), por isso mesmo é que
não podemos hesitar sobre a existência do adultério de Virgília, sob uma paranóica
alegação de que a narrativa das Memórias
Póstumas de Brás Cubas tratar-se-ia apenas de uma “versão dos fatos”. E,
neste contexto, será que podemos pôr em cheque a comborçaria envolvendo
Bentinho e Escobar em derredor de Capitu? O Dom
Casmurro, aquele livro escrito por Machado de Assis, assim o permite, assim
o autoriza? Veremos oportunamente se o próprio romance traz, como diz Umberto Eco,
algum elemento “relevante” por cujo meio reste perfeitamente autorizada uma
interpretação que absolva “a apaixonada e amorosa” Capitu e ponha o “caluniador”
Bentinho no banco dos réus, como querem Helen Caldwell e os demais críticos que
lhe são caudatários.
Vejamos,
ainda, como Umberto Eco exemplifica um dado irrelevante e, portanto, não
autorizado pelo romance para servir de suporte à sua interpretação:
No início dos Três mosqueteiros, diz-se que d’Artagnan
chegou a Meung montado em um sendeiro de catorze anos, na primeira segunda-feira
de abril de 1625. Quem tiver um bom programa em seu computador pode estabelecer
imediatamente que aquela segunda-feira era dia 7 de abril. Uma maravilha para trivia games entre devotos de Dumas. Mas
pode-se basear em tal dado uma superinterpretação do romance? Eu diria que não,
pois o texto não torna o dado relevante. (ECO, 2003, p. 14)
Aqui,
o paralelo com as interpretações oferecidas por John Gledson impõe-se. Será que
a menção ao busto de Massinissa ou a afirmação en passant de que Ezequiel detinha certo gosto pela arqueologia são
informações que, na montagem do quebra-cabeça central da trama, são tornadas especialmente
importantes pelo romance Dom Casmurro,
a ponto de erigirem-se em base para a sua interpretação? Tal como Umberto Eco,
diremos “que não, pois o texto não torna o dado relevante”. No romance
machadiano, aliás, o busto de Massinissa é até muito menos relevante do que, exempli gratia, o de Júlio César, pois este
é mais mencionado e por meio dele ficamos (capítulo XXXI) a saber do encanto e
da admiração de Capitu, ao ter notícia de que o triunfador da Guerra das Gálias
presenteara uma senhora com uma jóia no valor de seis milhões de sestércios, o
que diz algo não desprezível sobre o seu caráter interesseiro e arrivista.
Ora,
o tal busto de Massinissa e o gosto de Ezequiel pela arqueologia, por si
mesmos, estão para o Dom Casmurro
assim como ser sete a primeira segunda-feira de abril está para os Três mosqueteiros – uma informação para
lá de secundária no contexto na obra, indigna, pois, de dar suporte à sua
interpretação abrangente.
Por
fim e com certo remoque, Umberto Eco critica os delírios consubstanciados nas
interpretações ideológicas com base na psicanálise, no marxismo, no homossexualismo,
dentre outros. Fá-lo nestes termos:
A quem nos dissesse
que d’Artagnan fora impelido por uma paixão homossexual por Porthos, que o
Inominado fora induzido ao mal por um irrefreável complexo de Édipo, (...) que
Panurgo fez o que fez por ódio ao nascente capitalismo, poderíamos sempre
responder que nos textos aos quais se faz referência não é possível encontrar
nenhuma afirmação, nenhuma sugestão, nenhuma insinuação que permita que nos
abandonemos a tais derivas interpretativas. O mundo da literatura é um universo
no qual é possível fazer testes para estabelecer se um leitor tem o sentido da
realidade ou é presa de suas próprias alucinações. (ECO, 2003, p. 14-15)
Umberto
Eco, tal como Harold Bloom, procura traçar rígida fronteira entre o campo da
denotação e o da conotação (aliás, reconhecer onde há prevalência da denotação
e onde a preponderância é da conotação, no texto literário, é uma atividade à
qual os críticos atuais, em maioria, não estão aptos, como em tempo depreendêramos
da análise de Harold Bloom sobre a incapacidade de reconhecimento de ironias
por parte deles), sendo certo que apenas no pertinente à conotatividade pode
haver autorização para edificações hermenêuticas a critério do analista literário.
Isso implica sentenciar que, no tocante às afirmações literais, denotativas, presentes
nos textos, não há o que se inventar nem discutir, não há interpretação fora do
que estiver expressamente dito, sob pena de o intérprete dar provas de estar
sob o efeito “de suas próprias alucinações”, não passando no teste de leitura
do qual trata Umberto Eco. Por isso mesmo é que as interpretações de Helen
Caldwell, John Gledson, Luciane Reinke et
caterva denunciam a perda do “sentido da realidade”, pois nelas eles asseveram
aquilo que simplesmente não é autorizado pela materialidade do texto literário
machadiano; distorcem-no, corrompem-no, enveredando-se pelos caminhos aos quais
os lavam suas respectivas alucinações ou paranóias.
O
paranóico não é o individuo que percebe que ‘enquanto’ e ‘crocodilo’ aparecem
curiosamente no mesmo contexto: o paranóico é o indivíduo que começa a se
perguntar quais os motivos misteriosos que me levaram a reunir estas duas
palavras em particular. O paranóico vê por baixo de meu exemplo um segredo, ao
qual estou aludindo (ECO, 2005, p. 57).
A leitura de John Gledson ilustra perfeitamente a paranóia
a que se refere o pensador e teórico italiano. A partir de palavras soltas,
como “Massinissa” e “arqueologia”, Gledson interroga-se sobre quais “motivos
misteriosos” teriam levado Machado de Assis a empregar em dado momento do
romance Dom Casmurro esses termos,
qual seria o segredo por trás de tais escolhas, e com base tão somente nisso já
se põe paranoicamente à caça de explicações... Ocorre que as explicações já são
conhecidas de antemão, fornecidas por suas crenças políticas ou informações historiográficas,
de tal forma que seu trabalho de interpretação consiste em usar o texto literário
como mero meio para a reafirmação de crenças prévias ou, na mais generosa das hipóteses,
para fazer exibicionismo de dados da historiografia.
Luciano Amaral Oliveira, em um trabalho intitulado Os Limites do Poder do Leitor, onde
estuda e demonstra a relevância do significado denotativo das palavras postas
nos textos, insurgindo-se contra a total desconsideração desse significado, propõe
um exemplo simples, mas que ilustra com brilhantismo duas coisas: por um lado,
o tipo de articulação que deve existir entre texto e leitor na produção de sentido
enquanto construção interpretativa, a qual não prescinde do sentido literal dos
termos presentes no texto, como ponto de partida, nem do concurso do leitor,
com seu prévio cabedal de conhecimentos do mundo e experiências intelectuais, de
modo que leve a bom termo uma leitura que não desrespeite a imperiosa necessidade
de coerência; e, por outro lado, a espécie de alucinação que acomete os críticos
que defendem, com fanatismo, os direitos irrestritos do leitor. Ei-lo:
Uma
analogia apropriada à relação do texto com o leitor na construção da coerência
pode ser feita com a relação da maçã com quem a come na construção do sabor da
maçã. O poeta Jorge Luis Borges (2004, p. 12) faz o seguinte comentário acerca
de algo que Berkeley escreveu:
Falando
sobre o bispo Berkeley (que, permitam-me lembrar, foi um profeta da grandeza
dos Estados Unidos), lembro que ele escreveu que o gosto da maçã não estava nem
na própria maçã – a maçã não pode ter gosto por si mesma – nem na boca de quem
come. É preciso um contato entre elas.
A
analogia que proponho é a seguinte: a maçã equivale ao texto; o comedor da maçã
equivale ao leitor; e o sabor da maçã equivale à coerência do texto. Assim como
o sabor da maçã não está nem nela nem na boca de quem a come, mas no encontro
entre as duas, a coerência do texto não está nem nele nem nos olhos de quem o
lê, mas no encontro dos dois.
É
pouco provável imaginarmos alguém comendo uma maçã e dizendo que ela tem gosto
de jaca ou de picanha argentina temperada com sal e alho assada na brasa.
(OLIVEIRA, 2009, p. 5)
Diante
do quanto temos posto e exposto até aqui e aproveitando esse esclarecedor
exemplo de Oliveira, não nos resta senão concluir – a propósito da interpretação
de John Gledson (transmutando Guerra da Criméia em Guerra do Paraguai, Bentinho
em Massinissa e Capitu em Sofonisba, a esposa envenenada) ou de Helen Caldwell
(transformando Bentinho em uma mistura de Otelo e Iago e Capitu em Desdêmona) –
que ambos morderam uma maçã,
mas sentiram o gosto de “picanha argentina temperada com sal e alho assada na
brasa”, tão poderosa é a alucinação da militância política.
Ainda
em relação a John Gledson, cumpre discutir o caráter historiográfico de suas
análises. Afora as incongruências e contradições, confusões e incoerências já
apontadas, tudo em Gledson é (não raro forçando muito a mão) associar palavras,
personagens ou episódios machadianos com a História Geral ou do Brasil (ou,
ainda, com anacrônicos estereótipos de “classe social” ou categoria
profissional), no que é inferior a Lúcia Miguel-Pereira, a qual os associa com
a história pessoal do autor, sem necessidade de forçar ou torcer os fatos – não
sabemos até que ponto Machado de Assis conhecia os acontecimentos históricos
indigitados por Gledson, mas decerto não desconhecia as ocorrências de sua
própria vida, no que a crítica literária biográfica da brasileira é superior à
historiográfica do inglês, sobretudo a propósito de um autor como Machado de
Assis, que não escreveu romances históricos nem epopéias.
Todavia,
essas duas vertentes da crítica literária – historiográfica e biográfica – são
igualmente problemáticas, à medida que vão de preferência buscar respostas fora
do universo artístico instaurado pela obra, o que não se nos afigura a melhor
proposta de análise literária, embora elas possam servir e ter algum valor enquanto
instrumento auxiliar da crítica, contanto que a História e a biografia sejam aí
encaixadas sem violência, com naturalidade e pertinência, como faz Lúcia
Miguel-Pereira.
Como
visto até aqui, a obra machadiana, notadamente o Dom Casmurro, tem suscitado interpretações as mais díspares. Isso
posto, procedendo à presente pesquisa, coletamos dados passíveis de lastrear a
chancela ou a refutação das conflitantes e controvertidas postulações dos
teóricos e críticos expostos.
3.
OS ROMANCES MACHADIANOS DA MATURIDADE
3.1. Memórias Póstumas de Brás Cubas
Este
romance de 1881, o primeiro da maturidade machadiana e reputado um divisor de
águas na sua produção literária, escrito “com a pena da galhofa e a tinta da
melancolia” (ASSIS, 2010, p. 15), traz, em seu esqueleto e estrutura básica, tanto
a comborçaria fraternal masculina, quanto a infecundidade masculina, e é em
função dessa dupla temática que entenderemos o fundamento da galhofa e o da
melancolia, respectivamente. Considerando, por outro lado, que essa temática é
recorrente nos romances subseqüentes – assim o sustentamos ab ovo – é na figura do narrador e na especificidade da focalização
que encontraremos o diferencial deste e dos demais romances, cotejados uns com
os outros.
O
sui generis narrador das Memórias Póstumas de Brás Cubas é alguém
que, depois de morto, delibera escrever as suas memórias, protagonizando a trama.
Trata-se, pois, de um narrador autodiegético. Ele tece o romance segundo uma
focalização restritiva, porque, embora morto, não é onisciente, nem tem acesso à
subjetividade das demais personagens senão por fina análise e arguta dedução
desde um ponto de vista exterior, segundo podemos observar em várias passagens,
a exemplo do episódio narrado no capítulo “O Vergalho”, envolvendo a personagem
Prudêncio. Este fora escravo da família Cubas e sempre apanhara maus-tratos do
pequeno Brás. Depois de adulto e alforriado, Prudêncio adquirira um escravo
para uso próprio. Pois bem, no aludido episódio, capítulo LXVIII, o “defunto
autor”, após testemunhar por acaso uma ação de Prudêncio, que espancava e
xingava o adquirido escravo, deduz com singular finura (e não menos singular
ironia) as razões íntimas de seu ex-escravo, o qual estaria a maltratar sem
piedade aquele outro escravo como modo de desforrar-se, “com alto juro”, dos
antigos maus-tratos que ele, Prudêncio, em pequeno apanhara de Brás Cubas. Nos
próprios termos do relator, aquilo “era um modo que o Prudêncio tinha de se desfazer
das pancadas recebidas – transmitindo-as a outro” (ASSIM, 2010, p. 110).
Mais
um eloqüente exemplo dessa argúcia analítica do narrador atuante sob
focalização restritiva, novamente temperada com uma extraordinária mordacidade irônica,
está no capítulo LXX, tendo por objeto a constituição moral dona Plácida e a
necessidade que tinha ela de encontrar algo que lhe apaziguasse a consciência
do proxenetismo, ao receber, e admitir, o ofício de acoutar e mediar “o pecado”
de Brás Cubas e Virgília.
A
narrativa, em outro plano, instaura também uma focalização interna, haja vista
que o narrador – sempre com certo ar escarninho de defunto que já tudo diz
desdenhar – investiga e divulga as suas próprias motivações subjetivas; mas
essa focalização interna diz respeito apenas ao mesmo Brás Cubas, derivando
para focalização externa no concernente às demais personagens.
Para
além disso, a focalização é interventiva, por virtude de o narrador a todo momento
interpelar o leitor (como ocorre nos já discutidos casos de Prudêncio e dona
Plácida), fazendo digressões ou expondo o seu juízo pessoal acerca dos fatos e
acontecimentos, que são uma das especificidades mais marcantes do estilo
machadiano. De resto, muitas dessas ocorrências são, elas mesmas, marginais à
seqüência da narrativa e, não raro, constituem-se em meros pretextos para a
emissão dos anteditos juízos. Nem por isso esses acontecimentos e digressões deixam
de estar muitas vezes entre as passagens de maior interesse literário, enquanto
finura de pensamento ou lavor de linguagem.
Por
último, vemos que esta é, ainda, uma focalização majoritariamente fixa,
mantendo-se praticamente inalterada no transcorrer da narrativa.
Como
uma das peculiaridades desse narrador, muito já se salientou a circunstância de
ser ele um “defunto autor”, fato apontado como a grande originalidade ou
diferencial do romance. Não o negamos, tendo sub oculis a literatura em língua portuguesa como um todo. Porém,
no cotejo específico com os demais romances da maturidade do próprio Machado de
Assis, a seguir estudados, este não parece ser o maior diferencial deste
narrador, senão um artifício engenhoso e inusitado, bem-sucedidamente adotado
com o fim de captar a confiança do leitor – em que pese ao aparente paradoxo do
recurso ao fantástico. Aliás, enquanto artifício, os ficcionistas românticos
não procediam de maneira muito diferente ao simular uma troca de cartas ou empreender
outros expedientes com o desiderato de fazer crer o leitor na “verdade” da
história narrada, quiçá para além dos limites da ficção literária.
Nesse
sentido, não são poucas as passagens em que o narrador Brás Cubas, para ser
crido em sua sinceridade, insiste na situação de achar-se morto e, por
conseguinte, não possuir compromisso fora da verdade. Reforça a afirmação,
declarando também não ter já receio algum da opinião pública, nem algum dos
incontáveis interesses que movem os homens no mundo e, portanto, procura fazer acreditar
na inexistência de razões para ele não dizer a mais límpida e acabada verdade.
É o que vemos, exempli gratia, neste
notável capítulo XXIV:
Talvez espante ao
leitor a franqueza com que lhe exponho e realço a minha mediocridade; advirta
que a franqueza é a primeira virtude de um defunto. (...) O olhar da opinião,
esse olhar agudo e judicial, perde a virtude, logo que pisamos o território da
morte; não digo que ele se não estenda para cá, e nos não examine e julgue; mas
a nós é que não se nos dá do exame nem do julgamento. Senhores vivos, não há
nada tão incomensurável como o desdém dos finados. (ASSIS, 2010, p. 60-61)
Esplêndida
é a manobra lingüística do narrador, bem assim a finura com que encadeia e
arremata o seu pensamento, de tal modo que o fim proposto (ser crido em sua
franqueza) perde interesse imediato perante a forma e a agudeza por cujo meio tudo
é dito. E, no fim das contas, se o seu relato merecer credibilidade, não será
pela circunstancial razão de achar-se morto, mas pela verossimilhança auferida
na contextura dos fatos narrados.
Todavia,
se ser “defunto autor”, como afiançamos, não é o diferencial desse narrador no
conjunto dos romances machadianos da maturidade, mas um singular e paradoxal recurso
para atrair credibilidade para as suas declarações, onde estará esse
diferencial? A nosso juízo, ele está na posição que Brás Cubas ocupa no
triângulo da “comborçaria fraternal masculina”, ou seja, o relator das Memórias Póstumas de Brás Cubas coincide
com a personagem que ocupa o vértice destinado ao amante, ao sujeito que engana
e atraiçoa, e que, sentindo-se causa de uma grande “infração e vencedor de
outro homem, fica legitimamente orgulhoso” (ASSIM, 2010, p. 168), como confessa
no capítulo CXXXI. A posição de amante, dando-lhe fumos de superioridade em
relação ao rival e atiçando-lhe a vaidade e a presunção, lastreia a sua postura
zombeteira – a “pena da galhofa”.
Brás
Cubas faz-se o amante de Virgília, casada com Lobo Neves. A emulação entre Brás
Cubas e Lobo Neves tem início antes dos esponsais deste com Virgília, porque o
primeiro também pretendia a mão legítima da casadoira e bela rapariga – e a cadeira
de deputado daí decorrente, por força da influência política do futuro sogro. No
universo deste romance, aliás, dificilmente podemos vislumbrar algum ato
desinteressado das personagens, as quais se mobilizam quase que exclusivamente
com o fito de satisfazer seus próprios interesses, apetites e paixões.
Porém,
como dizíamos, Brás Cubas também pretendia a mão de Virgília, tendo a escolha
conjugal, no entanto, recaído sobre Lobo Neves, daí a pouco feito deputado. Nem
por isso houvera algum laivo de animosidade aparente entre ambos, antes pelo
contrário, tornaram-se amigos e já no capítulo L vemos Brás Cubas receber um
convite cortês de Lobo Neves, a fim de que comparecesse à residência deste
“para uma reunião íntima” (ASSIS, 2010, p. 82). É justamente o estreitamento da
amizade de Lobo Neves e Brás Cubas que dará a este as possibilidades de exercer
a sedução que redundaria “na queda” de Virgília. Verdade é que ela já de si não
fosse nenhuma santa, por isso mesmo que não contrapôs resistência ao requesto
de Brás Cubas, tendo-se, ao revés, mostrado aquiescente desde o princípio, quando
ele lhe pressionara a mão com força durante uma valsa que dançaram na tal
“reunião íntima”.
No
capítulo LVIII vemos Lobo Neves a fazer confidência a Brás Cubas, em uma
demonstração de amizade e confiança que culminará no convite para que Brás
Cubas o acompanhe como secretário, na primeira vez que Neves fora distinguido
politicamente com uma nomeação para a presidência de uma província do Império
brasileiro de então. Esta amizade só cessará, quando, anos depois, Lobo Neves
receber uma carta anônima denunciadora dos amantes, momento a partir do qual
tratará Brás Cubas apenas com a formalidade necessária a evitar o escândalo,
mas sem a amizade ou a confiança priscas. Até então, todavia, será tão grande a
intimidade de Brás Cubas no domicílio de Lobo Neves, que é lá mesmo que ocorre
a consumação da posse clandestina de Virgília, como vemos confessado no
capítulo LXVII:
Para mim era aquilo
uma situação nova do nosso amor, uma aparência de posse exclusiva, de domínio
absoluto, alguma coisa que me faria adormecer a consciência e resguardar o
decoro. Já estava cansado das cortinas do outro, das cadeiras, do tapete, do
canapé, de todas essas coisas, que me traziam aos olhos constantemente a nossa
duplicidade. Agora podia evitar os jantares frequentes, o chá de todas as noites,
enfim a presença do filho deles, meu cúmplice e meu inimigo. (ASSIS, 2010, p.
109)
O
adultério ocorrera na residência da família durante um bom lapso de tempo
(conquanto cause certa surpresa que, de dentro da casa, ninguém mais o percebesse
ou suspeitasse, sem embargo de que a carta anônima que o delatara pudesse ter
partido desde lá), até que determinadas desconfianças públicas compelissem os
amantes a providenciar um espaço próprio, uma casinha retirada que servisse de
ninho para os seus amores subterrâneos.
Como
vimos do último excerto, a freqüência de Brás Cubas no lar dos Neves era
diária, ao menos para tomar “o chá de todas as noites” (também no Dom Casmurro os casais Bentinho e
Capitu, Escobar e Sancha, manterão uma proximidade crescente, até tornar-se de
igual maneira nímia e diária). Há, no comportamento e nas atitudes de Lobo
Neves, mais que simples cortesia ou cálculo de político, pois a par disso ele de
fato dispensa um tratamento fraternal a Brás Cubas, o qual se vale justamente da
confiança advinda dessa fraternidade, que lhe franqueara o acesso ao domicílio
familiar, para colher como amante a esposa do outro. Se Virgília trai os votos
do matrimônio, Brás Cubas trai os historicamente não menos consagrados votos da
amizade e da hospitalidade, extraindo desse logro e dessa dobrada aleivosia o
maior e mais refinado prazer, em que pese ao travo deixado pela consciência da
duplicidade do seu comportamento. Muito clara, portanto, a comborçaria fraternal
masculina como uma das bases desta trama romanesca.
Contudo,
Virgília, à semelhança de Capitu e diferentemente da Luísa de O Primo Basílio, é uma personagem
complexa. Seus movimentos são por vezes singulares e até imprevisíveis. Ouçamos
a reflexão de Brás Cubas e a conclusão a que chega, depois da morte e sepultamento
de Lobo Neves, já no avançado capítulo CLII:
Não podia sacudir dos
olhos a cerimônia do enterro, nem dos ouvidos os soluços de Virgília. Os
soluços, principalmente, tinham o som vago e misterioso de um problema. Virgília
traíra o marido, com sinceridade, e agora chorava-o com sinceridade. Eis uma
combinação difícil que não pude fazer em todo o trajeto; em casa, porém,
apeando-me do carro, suspeitei que a combinação era possível, e até fácil.
(ASSIS, 2010, p. 184)
O
amor do amante, ao que parece e como bem entreviu o arguto narrador, não
significara para ela um compulsório e total desamor do marido, tendo podido conciliar
complexamente dentro de si sentimentos que usualmente seriam considerados antinômicos
ao ponto do inconciliável.
Aliás,
vislumbramos aí, por artes da personalidade não-linear de Virgília, uma espécie
de refinamento na comborçaria fraternal masculina machadiana, em que a mulher partilhada
equilibra-se entre os dois comborços, sem que nenhum deles deixe de merecer a
sua cota de sinceridade momentânea (aqui alguns pensariam em puro cinismo de
Virgília, mas entendemos que a complexidade de um ser humano comum é
incompatível com rótulos unívocos).
Outro
fator digno de nota, no tratamento machadiano deste tema, é que só uma
perspectiva de amante, que da comborçaria tudo conhece desde sua própria
posição privilegiadíssima e para cuja vista não são dirigidos os véus da dissimulação
geral (à diferença do marido), permite sondar e descobrir certas verdades profundas
de um relacionamento à margem da moralidade vigente – e veremos, em ocasião própria,
que o Dom Casmurro traz uma situação
isomorfa a esta, quando Bentinho analisa o comportamento de Sancha no velório
de Escobar; contudo, a diferença do ponto de vista de Bentinho, em cotejo com o
de Brás Cubas, determina a diferença da conclusão a que chega cada narrador.
Não
há, porém, clandestinidade sem sustos. Tiveram-nos Virgília e Brás Cubas, em
especial a partir do aparecimento da antedita carta anônima, que os acoimava. O
susto máximo narra-se no capítulo CIV, quando o marido traído quase colhe os
adúlteros em flagrante delito. Ei-lo:
Dona Plácida, que
espreitava a ocasião idônea para a saída, fecha subitamente a janela e exclama:
– Virgem Nossa
Senhora! Aí vem o marido de Iaiá!
O momento de terror
foi curto, mas completo. Virgília fez-se da cor das rendas do vestido, correu
até a porta da alcova; (...) Esse curto instante passou. Virgília tornou a si,
empurrou-me para a alcova, disse a Dona Plácida que voltasse à janela; a
confidente obedeceu.
(...)
Virgília, que estava
a um canto, atirou-se ao marido. Eu espreitava-os pelo buraco da fechadura. O
Lobo Neves entrou lentamente, pálido, frio, quieto, sem explosão, sem
arrebatamento, e circulou um olhar em volta da sala.
(...)
Virgília punha o
chapéu, atava as fitas, arranjava os cabelos, falando ao marido, que não
respondia nada. A nossa boa velha tagarelava demais; era um modo de disfarçar
as tremuras do corpo. Virgília, dominado o primeiro instante, tornara à posse
de si mesma. (ASSIS, 2010, p. 144-145)
Nesses
transes é que deve avultar, absoluta, a capacidade de dissimulação, secundada
de um autocontrole a toda prova. Virgília, como Capitu, é perita consumada
nesta arte, não perdendo a presença de espírito nem mesmo perante a natural conjectura
de que o marido, mui provavelmente, não teria lá ido por acaso, mas instruído por
alguma denúncia, como a da já conhecida carta anônima. Tampouco de outra forma
explica-se o comportamento de Lobo Neves, o seu repentino aparecimento em local
tão desusado, o olhar perscrutador que lança a toda a sala, a sua frieza,
palidez, toda a sua atitude suspeitosa e inquisitiva.
No
entanto Virgília mantém-se nos moldes da mais perfeita impassibilidade, falando,
gesticulando, dir-se-ia mesmo respirando com a máxima serenidade, dominando com
incomensurável segurança toda a tensão eletrizante daquele lance grave,
equívoco, e da mais alta periculosidade para o seu destino, como se fora a mulher
mais inocente deste mundo, a mais digna de ser querida e acreditada pelo marido,
o qual, perante tamanha naturalidade e tudo julgando por ela, não poderia senão
conjecturar que se tratava, a denúncia, de uma calúnia torpe contra tão santa
esposa...
É
inevitável assinarmos a existência de paralelismo entre este romance e o Dom Casmurro. Oportunamente veremos que
Bentinho, em situação assaz análoga à de Lobo Neves, mas sem ter prévia
consciência dos fatos, uma vez que não recebera cartas delatoras, também esteve
bem próximo de surpreender os adúlteros em ação.
A
confirmação de que Lobo Neves não engoliu toda aquela patranha, todo aquele
fingimento, mas já possui algum conhecimento acerca do adultério, está no
capítulo CVII, no qual se transcreve um bilhete remetido por Virgília a Brás
Cubas (aspas originais):
“Não houve nada, mas
ele suspeita alguma coisa; está muito sério e não fala; agora saiu. Sorriu uma
vez somente, para nhonhô, depois de o fitar muito tempo, carrancudo. Não me
tratou mal nem bem. Não sei o que vai acontecer; Deus queira que isto passe.
Muita cautela, por ora, muita cautela.” (ASSIS, 2010, p. 148)
Altamente
sintomático de que o marido sabe da traição (a despeito de toda a dissimulação
protagonizada por Virgília e embora sob aquela margem de dúvida própria do
marido que não apanhou a mulher em flagrante delito, nem lhe ouviu uma
confissão expressa) é o fato de ele olhar tão demoradamente para o filho, como
a tentar surpreender na criança algum traço de um pai suposto...
Mas,
não. Esta criança, ao contrário de outra que conheceremos adiante, não possui
os pés e mãos iguaizinhos aos de certo amigo dileto da casa... Não perderá a
mãe, até porque, por mais que existam anônimas denúncias da prevaricação da
mulher, não há mais nada além disso, e de resto Lobo Neves capacita-se de que é
o pai do filho da esposa, porquanto não encontra elementos pelos quais duvidar de
tal paternidade. Não reúne, pois, razões que considere bastantes para repudiar
a consorte, não obstante possa afastar-se do amigo, e assim o faz até certo
ponto. Brás Cubas, contudo, não perde a serenidade, conquanto leia e releia o
bilhete da amante; tampouco o ar galhofeiro.
Mas
nem só da galhofa do amante faz-se a narrativa: há também, impregnada
irresistivelmente nas palavras do narrador, a “tinta da melancolia”. Esta
encontra estofo e justificação na outra temática recorrente nos romances
machadianos da maturidade: a infecundidade masculina. Conquanto encerre a
narrativa asseverando, com certa eloqüência impactante, haver colhido após a
sua morte – do fato de não ter tido filhos e, por conseqüência, de não haver
transmitido “a nenhuma criatura o legado da nossa miséria” (ASSIM, 2010, p.
190) – um saldo favorável em sua vida, isso, enquanto possível denotação, de
alguma forma é desmentido, ou ao menos relativizado no próprio curso do
romance, designadamente se tomarmos em consideração conjunta os capítulos XC,
XCIV, XCV e CXX.
Quando
Brás Cubas descobre a gravidez de Virgília e sente que pode ser pai, diz, no
capítulo XC:
Olhos do mundo, zelos
de marido, morte do Viegas, nada me interessava por então, nem conflitos
políticos, nem revoluções, nem terremotos, nem nada. Eu só pensava naquele
embrião anônimo, de obscura paternidade, e uma voz secreta me dizia: é teu
filho. Meu filho! E repetia estas duas palavras, com certa voluptuosidade
indefinível, e não sei que assomos do orgulho. Sentia-me homem. (ASSIS, 2010,
p. 133)
Aí
o vemos exultar com a mera notícia da possibilidade de transmitir seu legado a
alguma criatura. Esse orgulho, essa satisfação, esse deleite inefável, irrompendo
aos simples auspícios de paternidade (obscura), a nosso ver, não são muito consentâneos
com a negativa final.
No
capítulo CXX, interpelado pela irmã, desejosa de vê-lo casado com Nhã-loló, diz
o “defunto autor”:
Sem filhos! A idéia
de ter filhos deu-me um sobressalto; percorreu-me outra vez o fluido
misterioso. Sim, cumpria ser pai. A vida celibata podia ter certas vantagens
próprias, mas seriam tênues, e compradas a troco da solidão. Sem filhos! Não,
impossível. Dispus-me a aceitar tudo, ainda a aliança do Damasceno. Sem filhos!
(ASSIS, 2010, p. 159)
Não
são exatamente as palavras que costumamos ouvir de quem vê autêntico benefício
e proveito na ausência de filhos... As desvantagens da solidão, apenas
vislumbradas, já assombram o narrador. Outro ponto altamente significativo e enfraquecedor
da negativa final é a reiterada exclamação “Sem filhos!”, três vezes em tão
poucas linhas. Assim é que a negação de encerramento do romance, sonorosa e chocante
como pouquíssimas outras na obra machadiana e brasileira, confrontada com os
pensamentos traçados em diversos capítulos, em especial os XC, XCIV, XCV e CXX,
apresenta-se, na melhor das hipóteses denotativas, como uma ulterior racionalização
do fracasso consubstanciado na infecundidade masculina, racionalização que,
tomada pelo seu valor de face, busca torná-lo (o fracasso) não apenas
palatável, mas até desejável... Ironia post
mortem?
Convenhamos
que a negativa final não deixa de ser condizente com a condição de finado, o
qual, desde sua nova situação, afirma tudo desdenhar. Mas não desdenha tanto,
que não racionalize o seu pouco, sobretudo em se considerando as pregressas
manifestações acerca da paternidade. Essa racionalização, cotejada com o
restante da obra, faz crer na pouca denotatividade da negativa de encerramento enquanto
saldo superavitário da existência. Bem pode ser, em verdade, a maior ironia
deste narrador zombeteiro, que encontra prazer no desnudar mordazmente, nos
outros como em si mesmo, as pequenas e as grandes misérias da condição humana –
o interesse, a vaidade, as paixões desenfreadas, a venalidade, a ausência de
autênticas virtudes. Em suma, da “pena da galhofa” e da “tinta da melancolia” despede-se
todo um deplorável cortejo de misérias físicas ou morais, representadas de modo
mais ou menos camuflado no grande palco insensato que é este mundo.
De
qualquer sorte, ainda quando tomássemos como autêntica denotação a negativa
final (enquanto saldo positivo da vida, contabilizado após a morte) e desconsiderássemos
as contradições apontadas, tributando-as à mudança da condição de vivo para
finado – ainda assim o fato de não ter havido filhos continuaria a ser a grande
pedra no sapato do narrador, compelindo-o a encerrar o romance com um
pensamento acutíssimo (e irremissivelmente melancólico) em derredor dessa
matéria. A escolha da “chave de ouro” nunca é à toa, tampouco desprovida de
significância decisiva. A questão da infecundidade masculina avulta, pois, como
o outro grande tema das Memórias Póstumas
de Brás Cubas, de par com a comborçaria fraternal masculina, que tecida sob
a perspectiva do amante, dominador da focalização e do processo narrativo,
permeia grande parte do enredo – enredo, aliás, assaz acidentado pela
proliferação de digressões que, motivadas por toda sorte de comentários de
cunho filosófico, psicológico ou apenas galhofeiro, não raro constituem-se em
pontos altos do romance e, com certeza, em estigma inconfundível do estilo
machadiano.
3.2. Quincas Borba
O
ano de 1891 viu a publicação do segundo romance da segunda fase da produção literária
de Machado de Assis. Diferentemente do que ocorrera no anterior, o narrador do Quincas Borba é heterodiegético e
tricota a trama narrativa mediante uma focalização onisciente, haja vista que o
narrador põe-se fora da diegese romanesca e imiscui-se na subjetividade das
personagens, analisando-as sob todas as perspectivas e lendo-lhes, a seu bel-prazer,
todos os pensamentos, motivações e desejos. Por isso mesmo, o narrador instaura
também uma focalização predominantemente interna, em alternância com alguns momentos
de focalização externa.
Adicionalmente,
temos aqui uma focalização interventiva, por virtudes de o narrador, na mesma
esteira do seu congênere das Memórias
Póstumas de Brás Cubas, muitas vezes suspender o fio da narrativa e
dirigir-se diretamente ao leitor, como já assinalamos na discussão do romance precedente. É ainda uma focalização majoritariamente
fixa, mantendo-se praticamente inalterada no transcurso da narrativa.
O
Quincas Borba, sem embargo da
distância de dez anos, não é dissociado das Memórias
Póstumas de Brás Cubas. Antes, pelo contrário, há certa continuidade entre
ambos, não só quanto à temática e à estrutura básica recorrente, mas também no
concernente à presença de personagens que atuam em ambas. Com efeito, as
personagens Quincas Borba e Brás Cubas participam nas duas narrativas, embora,
no romance homônimo, Quincas Borba seja também o nome do cachorro de estimação
do filósofo de Humanitas, legado a Rubião junto com uma herança milionária.
Verdade
é que a freqüência de Brás Cubas em Quincas Borba
seja mínima: cinge-se à emissão de uma pequena carta (ou bilhete) a Rubião,
participando-lhe a morte do teórico do Humanitismo, no capítulo XIII. É
igualmente verdade que o filósofo Quincas Borba seja personagem secundária em
ambos os romances, mas não irrelevante, tendo em vista que a sua teoria do
Humanitismo, apenas esboçada no relato do “defunto autor”, será desenvolvida e
“comprovada” no Quincas Borba, cristalizando-se
na fórmula “ao vencedor, as batatas”, remate da alegoria explicativa do
Humanitismo. A trajetória mesma percorrida pelo protagonista Rubião, após o recebimento
da herança, parece ser a “comprovação” dessa filosofia com forte viés
darwiniano e, ipso facto, anti-socialista.
A
narrativa deste romance inicia-se sob a técnica do in medias res (diferentemente da narrativa das Memórias Póstumas de Brás Cubas, principiada sob o pouco usual método
do in ultimas res).
Nos
seus três primeiros capítulos (retomados a partir do capítulo XXVII, após o encerramento
do retrospecto[8] típico
da narrativa in medias res e
necessário à situação das personagens mais relevantes), temos um Rubião já rico
e às voltas com a crise de âmbito moral relacionada ao desejo de posse amorosa que
nutre no tocante à personagem Sofia. Esta é a bela e insinuante esposa de
Cristiano Palha, amigo recente de Rubião – amizade alimentada por velados
interesses de pouca nobreza: de um lado, Rubião, cujo desiderato é seduzir e colher
para amante a consorte do amigo; de outro lado, o casal Palha, interessado em auferir
o máximo proveito da riqueza do primeiro –, tudo temperado com pitadas de cinismo
e dissimulação. Aí está a temática da “comborçaria ou rivalidade fraternal
masculina”, predominante na primeira metade do romance. No entanto, contrariamente
ao ocorrido no romance de Brás Cubas, não haverá nesta “comborçaria ou
rivalidade fraternal masculina” a consumação da posse carnal, menos por
virtudes da mulher ou precauções do marido, do que por inépcia do amante.
Com
efeito, nesta narrativa o vértice destinado ao amante é majoritariamente
ocupado por Rubião, que, pascácio, se mostra inapto para a posição, que exige
uma argúcia e uma picardia que ele – limitado mestre de meninos e enfermeiro improvisado
de Quincas Borba, do qual herdará inopinadamente os milhões – estivera sempre
longe de possuir. Exemplos: no capítulo VI, o narrador onisciente revela que Quincas
Borba hesita em falar a Rubião sobre a filosofia Humanitas, por achá-lo incapaz
de compreensão; o filósofo volta a imputar-lhe incapacidade de compreender a
sua filosofia na carta transcrita no capítulo X, onde Quincas Borba também o taxa
de “ignaro”; nos diálogos travados com Quincas Borba, que finalmente lhe expõe
a sua filosofia, Rubião revela-se sempre pouco atilado e é ridicularizado familiarmente
pelo autor do Humanitismo. Enfim, quando, no comboio que o levará à Corte para
tomar posse da herança, Rubião trava por acaso conhecimento com o casal Palha,
mostra-se provinciano e incauto, estampando por ingênua vaidade a sua condição
de herdeiro.
No
outro vértice está o marido, que, diante da ingenuidade manifestada por Rubião,
emerge como figura dominante no início das relações que estabelecem. Atuando sob
focalização interna, no capítulo XXXV, o narrador nos denuncia que Cristiano
Palha é um homem vaidoso e de grande ambição, capaz de empregar a própria
esposa como meio para angariar vantagens, ou exibi-la como troféu. Fá-la
decotar-se com desgarre, de modo que, divulgando nos salões seus atributos mais
preciosos – a decantada perfeição do colo e o sublime contorno de seios, comprobatórios
de que ali há um marido feliz e bem-servido – obtenha a satisfação da sua fatuidade;
indu-la a obsequiar nimiamente Rubião, do qual Palha vai obtendo proveitos pecuniários
crescentes – sob a forma de presentes caros para a mulher, empréstimos
generosos, capital para uma sociedade em um armazém, fazendo-se, por fim,
depositário dos bens de Rubião.
Rubião,
encorajado pelos amiudados e convidativos obséquios da mulher de Cristiano
Palha e magnetizado pelos olhos envolventes e misteriosos de Sofia, cuja beleza
acima da média fascina-o, declara-se-lhe apaixonado, mas sem sucesso. Sofia esquiva-se
de semelhante pretendente e tudo relata ao marido. Na comborçaria, sempre há
enganadores e enganado e, neste caso, o enganado é Rubião. Marido e mulher (conquanto
não se desnudem de todo um perante o outro, cultivando aparências de
respeitabilidade, inclusive, na intimidade conjugal) estão juntos na empreitada
de envolvê-lo, e o narrador, com a sua onisciência, vai, notadamente no capítulo
L, desvelando as motivações íntimas de cada qual, mostrando a dificuldade que
têm para conciliar os seus reais desejos com as necessárias “aparências”.
Sofia, embora não sinta nenhumas atrações por Rubião, sedu-lo para servir aos
interesses do marido e também para regozijo da vaidade própria. Cristiano Palha,
ao saber que sua esposa é objeto de ousados galanteios por parte do amigo, só
pensa em como conciliar a honra de marido diante a mulher e a manutenção dos
lucros advindos da íntima amizade com Rubião, a quem define como “um simplório”,
prevalecendo o segundo interesse. Sofia, procurando ostentar escrúpulos, desempenha
perante o marido o papel de mulher honesta, ofendida pela ousadia de Rubião.
Porém,
a sua honestidade é relativa e nem só de lealdade para com o marido vive Sofia:
a lealdade conjugal vige no concernente a Rubião, pelo qual não sente ela atração
amorosa ou sensual. Igual fato não se dá em relação a outros pretendentes, como
Carlos Maria, também amigo da família. Este, depois de valsar[9]
demoradamente com Sofia em um baile, faz-lhe atrevidos galanteios de enamorado,
concluindo: “O mar batia com força, é verdade, mas o meu coração não batia menos
rijamente; – com esta diferença que o mar é estúpido, bate sem saber por que, e
o meu coração sabe que batia pela senhora” (ASSIS, 1997, p. 97). Sofia impressiona-se
com a audácia e com as palavras melífluas do rapaz e, à diferença do ocorrido
no caso de Rubião, aqui ela dissimula e embai o marido, nada lhe revelando do
sucesso. Desabrocha-se psicologicamente para a aventura. Contudo, também não se
consuma carnalmente o adultério nesta nova comborçaria ou rivalidade fraternal
masculina, uma vez que Carlos Maria, com a declaração que lhe fizera, não tem aparentemente
outro empenho, senão porventura o exercício de uma espécie de dandismo oratório
sob a forma de galantaria. Não insiste na encetada conquista, causando certa
frustração a Sofia. O tempo passa e Carlos Maria acaba casando-se com Maria
Benedita, prima da mesma Sofia, entrando, pois, para a família desta.
Rubião,
ainda quando avança na perda do juízo ou permaneça certo tempo sem ir vê-la, é
o único que mantém algum empenho em requestá-la, mas Sofia tem-lhe já
invencível aversão, como vemos no episódio que entra a ser narrado no capítulo
CLII. Fosse outro o requestador, diverso teria sido o desfecho da comborçaria ou
rivalidade fraternal masculina, segundo o narrador explicita no capítulo CLIV:
Nomes diversos
relampejavam no azul daquela possibilidade. Quanto pormenor interessante! Sofia
reconstruiu a caleça velha, onde entrou rápida, donde desceu trêmula, para
esgueirar-se pelo corredor dentro, subir a escada, e achar um homem, – que lhe
disse os mimos mais apetitosos deste mundo, e os repetiu agora, ao pé dela, no
carro, mas não era, não podia ser Rubião. Quem seria? Nomes diversos relampejaram
no azul daquela possibilidade. (ASSIS, 1997, p. 208)
Apesar
de viver aparentemente bem com o marido e sem embargo da célere ascensão social,
que a põe de repente em privança com damas da alta roda fluminense, como D.
Fernanda, cônjuge do deputado Teófilo – Sofia é presa de certa insatisfação
meio difusa e, ocasionalmente, fantasia aventuras. Não significa outra coisa a
alusão à lanterna de Diógenes no capítulo CLX: “procuro um homem”. Sofia entendia-se, fantasia peripécias
amorosas ilícitas, vislumbra deleites clandestinos, delícias proibidas, contudo,
tendo em vista a precoce deserção de Carlos Maria, não encontra o “seu homem”,
sua aventura extraconjugal, não obstante se ponha em disponibilidade moral e psicológica
para ser o pivô de uma típica comborçaria fraternal masculina. Posto dê motivo
de análise ao narrador onisciente, essa insatisfação dos desejos e das ideações
adulterinas de Sofia faz que a comborçaria, neste romance, permaneça no nível
da rivalidade.
Não
deixa de haver um pouco de melancolia no ar, em um crescendo, à medida que a
narrativa arrasta-se para o epílogo. Essa melancolia não está associada apenas à
tolice orgânica de Rubião, à insanidade que vai a pouco e pouco se apossando do
seu espírito, preparando o seu desfecho merencório, ou ao fastio de uma Sofia nunca
plenamente satisfeita. Ela associa-se também, e sobretudo, à temática da
“infecundidade masculina”. Com efeito, tanto Rubião, o protagonista, quanto
Cristiano Palha, o seu rival, sem esquecer o filósofo Quincas Borba, benfeitor
de Rubião – todos estão sujeitos ao triste fenômeno da “infecundidade
masculina”, culminando na extinção de suas respectivas progênies, já que nenhum
desses três homens possui filho, neto ou sequer um sobrinho.
Malsucedido
o amante, sobre cujo ponto de vista narra-se a maior parte do romance, não há
“pena da galhofa” no Quincas Borba,
como nas Memórias Póstumas de Brás Cubas,
mas apenas a “tinta da melancolia”. Uma melancolia esquisita, que sem alarde vai
penetrando pouco e pouco o ânimo do leitor, contristando-o, deprimindo-o. O
casal Palha acaba ricaço, Rubião, miserável – mas não se vislumbra felicidade
em nenhum deles, tampouco no filósofo Quincas Borba, morto logo no intróito.
Só
há um pouco de bem-aventurança tranqüila em alguma “ilha” isenta dos
padecimentos da infecundidade masculina e onde o casamento realiza-se por amor,
como no caso de Carlos Maria e Maria Benedita, abençoados com a concepção e
posterior paternidade logo depois de matrimonialmente consorciados. Embora sem
o colorido estilístico de um Joaquim Manuel de Macedo ou de um José de Alencar,
e partilhando algo da melancolia geral da obra, ainda assim existe uma
atmosfera de inelutável Romantismo na descrição específica deste casal, cuja
felicidade serena, sem dissimulações ou sobressaltos, dificilmente poderia ser matéria
da estética literária do Realismo-Naturalismo, talvez por isso mesmo seja delineada
em breves traços. Aliás, nunca foi ignorada a simpatia que Machado de Assis sempre
manifestara aos Românticos, em contraste com a dureza reservada a certos
adeptos da então nova escola, notadamente ao determinismo abraçado por Eça de
Queirós. Sendo ambos tidos pela crítica como autores “Realistas” (posto Machado
o seja apenas a partir de 1881), a controvérsia literária envolvendo Machado e
Eça, por virtude da crítica machadiana a determinados pontos da composição de O Primo Basílio, não deixa de chamar a
nossa atenção, mostrando a precariedade de certos enquadramentos de autores ou obras
em escolas literárias, mormente quando se sabe que Machado convivia bem com os
autores nacionais adeptos da estética Romântica, louvando sempre os citados Joaquim
Manuel de Macedo[10]
e, sobretudo, José de Alencar[11],
de cujos escritos recebera influência. Não nos consta haver Machado de Assis,
em algum momento, feito crítica literária formal e dura em desfavor de alguma
obra lavrada sob a égide da proposta Romântica, como fora a multimencionada
crítica ao romance protagonizado por Luísa.
A
personagem secundária Maria Bendita, tal como bosquejada pela narrativa, possui,
pois, o perfil de uma heroína Romântica, que poderia ser extraída do Quincas Borba e figurar sem estranhamento
em qualquer dos romances urbanos de José de Alencar, enquanto o protagonista Rubião,
vencido e envolto na “comborçaria ou rivalidade fraternal masculina” e na
“infecundidade masculina”, é um triste e detestável anti-herói Realista, que
cede ao casal Palha, triunfador, mas não menos triste e detestável, as batatas
herdadas ao filósofo darwiniano de Humanitas.
3.3.
Dom Casmurro
Eis
o terceiro romance da maturidade de Machado de Assis, compondo, juntamente com
as Memórias Póstumas de Brás Cubas, o
seu par de obras-primas romanescas. Tem sido, quando menos, o que mais vem
suscitando polêmicas através dos tempos a esta parte. Destaca-se pelo estilo
sugestivo, que insinua antes de afirmar, diferentemente da narrativa do
“defunto autor”, marcada pelo tom de desabusado desmascaramento. Os narradores
são semelhantes, ambos autodiegéticos, mas há a diferença crucial do ponto de
vista, consoante veremos adiante.
O
narrador do Dom Casmurro é a
personagem Bento Santiago, o Bentinho, o qual, por volta dos cinqüenta e poucos
anos de idade, procurando vencer o tédio e a solidão, empreende escrever a sua história.
Fá-lo em primeira pessoa, sendo o protagonista, ao lado de Capitolina, a Capitu.
A obra, tendo vindo a lume em 1899, antecedendo, portanto, o célebre romance proustiano,
parece ser uma “busca do tempo perdido” avant
la lettre, com a discrepância de que, ao avesso do que viria a postular o
francês, aqui o tempo é irrecuperável. É o que inferimos desta conhecida e
festejada passagem:
O meu fim evidente
era atar as pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência. Pois,
senhor, não conseguir recompor o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é
igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, vá; um homem
consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e esta
lacuna é tudo. (ASSIS, 1995, p. 12)
Todavia,
se não é possível recuperar o tempo perdido, há ao menos a possibilidade de
viver novamente o vivido e é a isto que o narrador se entrega, aliás, com um
objetivo a mais, revelado no capítulo final: saber se a Capitu que cometera o
adultério já existia em germe na menina e moça ou se esta, em razão de algum
incidente fortuito, transformara-se naquela. Toma o primeiro alvitre, que não
deixa de ser um tanto fatalista. A nosso sentir, essas possibilidades não são
excludentes, sendo antes complementares, à vista do entendimento de haver
necessidade de conjunturas favoráveis que ensejem a materialização de
tendências potenciais.
De
qualquer sorte, o romance, do ponto de vista em que é narrado, configura-se por
uma minuciosa captação dos indícios que ao tempo foram desprezados ou
desconsiderados, mas que, retrospectivamente, teriam o condão de revelar o encadeamento
de circunstâncias que culminariam na comborçaria fraternal masculina de
Bentinho e Escobar em derredor de Capitu.
A
focalização é interna em relação ao próprio narrador, porém externa no que
concerne às demais personagens, pois não é uma focalização onisciente. No
entanto, como sempre sucede aos narradores-personagens machadianos, este narrador
também apalpa a subjetividade das demais pessoas da história, tentando deduzir
seus sentimentos e suas razões recônditas. Um exemplo desse tipo de incursão do
narrador está no capítulo LXXX, relativamente às cogitações íntimas de dona
Glória, mãe de Bentinho, que por um lado precisa cumprir a promessa de torná-lo
padre, porém, por outro, deseja tê-lo ao pé de si.
No
mais, a focalização é também interventiva, reiterando, no particular, os anteriores
romances da maturidade de Machado. O relator interrompe algumas dezenas de
vezes a narrativa a fim de dirigir-se ao leitor, prendê-lo, interessá-lo, acaso
aliciá-lo (no sentido de não abandonar a leitura). São constantes os apelos ao
“amigo leitor”, à “querida amiga que me lês”, ao “senhor leitor”, etc. Este
sistema de focalizações não se altera ao longo do romance e, como dissemos já,
é em tudo idêntico ao das Memórias
Póstumas de Brás Cubas, exceto quanto ao ponto de vista.
A
originalidade do Dom Casmurro, assim,
está calcada na posição específica que o narrador ocupa na “comborçaria
fraternal masculina” tipicamente machadiana (bem dissimulada e sem espalhafato),
pois se na primeira história o “Mago de Cosme Velho” depusera a pena na mão do
amante, agora a entregou ao marido traído, sendo este (e seus naturais
desdobramentos, trabalhados de maneira magistral pelo ficcionista) o principal
motivo de diferenciação estrutural entre as duas obras-primas.
Porém,
de primeiro examinemos a problemática da infecundidade masculina. São muitas as
personagens que a ilustram já desde as páginas exordiais, que trazem a
adolescência do narrador: José Dias, agregado da família de Bentinho, é um
sujeito já qüinquagenário, aparentemente celibatário, sem filhos; a personagem “tio
Cosme” é um velho advogado, que depois da viuvez sem prole foi residir à casa
de dona Glória, sua irmã; “prima Justina”, também residente na casa de Bentinho,
é igualmente uma viúva velha, sem descendentes nem enteados, de modo que seu
finado marido constitui mais um quadro da inaudita galeria das figuras
ilustrativas da implacável infecundidade masculina das personagens romanescas
da maturidade machadiana.
Chegando
a um período mais avançado da narrativa, temos que o mesmo Ezequiel, filho de
Capitu e formador da convicção do adultério, morre ainda jovem e solteiro, sem
deixar descendentes. Aliás, até mesmo Escobar, que teve filhos com a esposa e a
amante, poderia ser enquadrado nesta maninhez de descendência, se estendermos
um pouco o alcance da infecundidade masculina e tivermos em mente, além da
morte de Ezequiel, o precoce desaparecimento da filha havida das bodas com
Sancha. Vejamos o capítulo CXXIX, no qual o narrador interpela teoricamente a
viúva de Escobar, como usa fazer com o leitor:
Dona Sancha, peço-lhe
que não leia este livro; ou, se o houver lido até aqui, abandone o resto. (...)
Não, minha amiga, não leia mais. Vá envelhecendo, sem marido nem filha, que eu
faço a mesma coisa, e é ainda o melhor que se pode fazer depois da mocidade.
(ASSIS, 1995, p. 154)
Eis
uma informação mínima, diluída no livro, mas que é relevante para a compreensão
da temática da infecundidade e, em última instância, para o estabelecimento do
melancólico clima de aniquilamento que emerge do romance: Sancha era filha
única e já não possuía pai nem mãe, quando da morte do marido; por isso partira
para a província do Paraná com a filha, a fim de abrigar-se junto aos
familiares do falecido marido. Contudo, no momento em que Bentinho
“escreve” o livro, está “sem marido nem filha”, o que nos faz crer que também a
menina morrera. Assim, também Sancha acaba por entrar no vastíssimo rol dos viúvos
sem descendentes que proliferam no romance machadiano da maturidade. Bentinho,
por seu turno, no momento em que se propõe a contar sua história, é igualmente
um viúvo sem “frutos”. Aliás, de todas as personagens que povoaram a obra com
alguma importância, restam apenas os dois, sem mais perspectivas senão aguardar
pacientemente a morte que extinguirá de vez suas respectivas progênies...
Pois
bem, é necessário discorrer mais detidamente a propósito da principal estampa
representativa da temática da infecundidade masculina: o próprio narrador.
Bentinho neste romance – assim como já sucedido com Brás Cubas e Rubião naqueles
que protagonizam – é a ilustração máxima dessa obsessão machadiana. É verdade
que na constância do seu infausto casamento com Capitu nascera uma criança,
Ezequiel, do qual, porém, não era o progenitor. Não nascera logo, mas somente
depois de cerca de três anos do enlace (o que podemos inferir do capítulo CIV,
combinado com o capítulo CVIII), quando já abertamente se lastimava a ausência
de rebentos.
Sobre
a paternidade de Ezequiel, já vimos, no capítulo de revisão da fortuna crítica
machadiana, que Massaud Moisés pronuncia-se no sentido de que ela não cabe a
Bentinho, pois este não podia oferecer filhos à mulher. Capitu, nos sete anos
em que permanecera em plena convivência com o marido (na faixa etária que vai
dos 23 aos 29 anos, de ordinário fértil), teve apenas uma única concepção, e nenhum
aborto. A impotentia generandi de
Bentinho é uma possibilidade concreta e perfeitamente admissível, pois encontra
várias evidências a ampará-la e reforçá-la, para além da improficuidade
conjugal.
Com
efeito, separado da esposa aproximadamente aos trinta anos de idade, ele colecionou,
depois disso, incontáveis “amigas” (hoje lhes chamaríamos “amantes”), como confessa
no capítulo CXLVII e deixa entrever nos capítulos II e CXIII; com uma delas,
aliás, Bentinho mantivera uma ligação por prazo mais dilatado, como podemos
inferir da circunstância de ter-lhe concedido regalias não efêmeras, como um
veículo para uso próprio e um cocheiro bem fardado para servi-la rotineiramente,
todavia não colheu filho algum desta como das outras mulheres com as quais se
relacionara intimamente (nem sequer algum aborto, como o de Virgília), indício
altamente sugestivo de sua impossibilidade orgânica de gerá-los, em especial se
considerarmos que a ação do romance passa-se em época anterior de décadas aos
métodos contraceptivos seguros da modernidade.
Porém,
se Ezequiel não é filho de Bentinho, terá que ser de outro – e aí entraremos na
“comborçaria fraternal masculina”.
A
aliança das inclinações pessoais e da personalidade complexa de Capitu, do
caráter sensual e interesseiro de Escobar e da ingenuidade incauta do Bentinho jovem
dera azo a esta célebre comborçaria, conquanto o seu nascimento e desenrolar
sejam naturalmente um tanto nublados pelo ponto de vista adotado (o do marido
traído) e, sobretudo, pela técnica narrativa aqui empregada por Machado de
Assis, sempre revestida pela preferência concedida à arte da sutileza e da sugestão,
de uma linguagem calculadamente cautelosa que instala uma diegese algo brumosa
e nevoenta (como não poderia deixar verossimilmente de ser, considerando-se a
idade e a situação geral da personagem que tece a narrativa), de tal maneira
que este romance, sendo prazeroso de ler, é escorregadio de analisar,
reclamando atenção especial do leitor aos pormenores nodais, semeados com uma
displicência de aparato. Nele evitam-se, ou, o que é mais comum,
procrastinam-se as asserções peremptórias, que ainda assim não saem sem miúdos,
e por vezes dispersos, preparativos, cuja fluidez é truncada pelos já
conhecidos processos digressivos. No entanto, os escolhos e despistes do
percurso, postos a serviço da verossimilhança do ponto de vista instituído, não
impedem que o leitor isento compreenda a coerência interna que dá o significado
global da história.
Pois
bem, a perícia na dissimulação, a agudeza da inteligência e a beleza exuberante
– tudo desenvolvido com notável precocidade – são as características
fundamentais em cuja função podem ser compreendidos os movimentos de Capitu. O
juízo inicial do agregado José Dias, que lhe acusara no capítulo XXV a obliqüidade
e a dissimulação, não se desmentiu ao longo da narrativa, mas antes foi sendo
confirmado pela sucessão das atitudes da própria Capitu. (Verdade é que o agregado
é uma personagem não menos solerte que a namorada de Bentinho, mas cujo ofício quase único é agradar de todas as
formas a família que o sustenta, e para tanto muda de parecer e opinião ao
sabor das circunstâncias, contanto que, assim, agrade mais e melhor a essa
família; presta-lhe, portanto, toda casta de
obséquios e louvações, independentemente daquilo que ele observasse ou pensasse
efetivamente, sendo em alternância sincero e hipócrita. José Dias não é destituído de argúcia,
pelo contrário; porém essa argúcia está a serviço do servilismo de que ele vive
– afinal, o homem não é mais que um agregado, alguém que sobrevive do favor de
estranhos. Logo, cada parecer de José Dias precisa ser cotejado com os demais
elementos da narrativa, e são esses demais elementos que, por um lado,
corroboram a obliqüidade e a dissimulação de Capitu, porém, por outro lado, desmentem
a ulterior opinião de que ela seja a melhor das esposas, opinião que o agregado
expressa quando ela já está legitimamente casada com o chefe da casa, contra o qual,
no cálculo do agregado, seria uma injúria, tão certa quão irremediável, um
senão à conduta ou à moralidade da esposa).
Um
dos muitos exemplos da aptidão de Capitu para a dissimulação está no capítulo
XXXVIII, quando ainda era solteira e cambiava à socapa as primeiras carícias
com o futuro marido: o pai de Capitu entra na sala logo depois de um beijo trocado
entre ela e Bentinho; enquanto este permanece atônito e tolhido, “sem língua”,
ela fala e age com tão natural desassombro que o pai nada suspeita, saindo dali
perfeitamente enganado (ao menos nesta passagem específica, pois em vários outros
momentos os pais de Capitu apenas fingem nada perceber). Fica a sugestão de que
algo análogo ocorrerá mais adiante, mudando-se o ludibriado, mas não a atitude dissimulada
da Capitu casada em relação à solteira. É o que lemos no capítulo CXIII, quando
já insinuado o vínculo ilícito com Escobar:
Ao teatro íamos
juntos; só me lembra que fosse duas vezes sem ela, um benefício de ator, e uma
estréia de ópera, a que ela não foi por ter adoecido, mas quis por força que eu
fosse. Era tarde para mandar o camarote a Escobar; saí, mas voltei no fim do
primeiro ato. Encontrei Escobar à porta do corredor.
– Vinha falar-te –
disse-me ele.
Expliquei-lhe que
tinha saído para o teatro, donde voltara receoso de Capitu, que ficara doente.
– Doente de quê? –
perguntou Escobar.
– Queixava-se da
cabeça e do estômago.
– Então, vou-me
embora. Vinha para aquele negócio dos embargos...
Eram uns embargos de
terceiros; ocorrera um incidente importante, e, tendo ele jantado na cidade,
não quis ir para casa sem dizer-me o que era, mas já agora falaria depois...
– Não, falemos já,
sobe; ela pode estar melhor. Se estiver pior, desces.
Capitu estava melhor
e até boa. Confessou-me que apenas tivera uma dor de cabeça de nada, mas
agravara o padecimento para que eu fosse divertir-me. Não falava alegre, o que
me fez desconfiar que mentia, para me não meter medo, mas jurou que era a verdade
pura. Escobar sorriu e disse:
– A cunhadinha está
tão doente como você ou eu. Vamos aos embargos. (ASSIS, 1995, p. 140-141)
O
alvitre desta passagem é no sentido de que Bentinho estivera muito próximo de
flagrar o adultério em ação (como seu homólogo Lobo Neves, no capítulo CIV das Memórias Póstumas de Brás de Cubas), mas
voltara para casa muito antecipadamente, ao final apenas do primeiro ato – dos
cinco que de ordinário compõem as peças dramáticas clássicas. Tudo aí cheira a
engano, desde a moléstia que evanesce miraculosamente, até à informação
importante sobre uns embargos de terceiros, a qual, entretanto – e assim é
consignado no capítulo CXV – “não valia nada”, e, obviamente, não justificava a
presença de Escobar a desoras na casa de Bentinho.
A
explicação mesma de Capitu, alegando haver agravado a enfermidade com o
desiderato de fazer o marido ir à diversão, poderia parecer um tanto insólita, estonteante
até, pois um padecimento mais grave da mulher tenderia, ao revés, a fazer o
marido desistir das distrações e prestar-lhe assistência – se o propósito da
alegação de agravamento não tivesse sido justamente não o acompanhar ao teatro.
Tudo no capítulo CXIII (inclusive a significativa ausência de alegria em
Capitu, mais condizente com uma frustração inopinada do que com a situação de alguém
que se livra por completo de um padecimento) sugere que Capitu, de ajuste com
Escobar, armara o afastamento do marido para estar a sós com o amante durante
aquelas horas da noite, por isso mesmo é que este não fora a casa jantar, mas
fizera-o na cidade, para não ter embaraços com a própria esposa.
De
resto, não foi esta a única vez que Escobar estivera na casa de Bentinho na
ausência deste, como prova o episódio da corretagem das dez libras esterlinas, relatado
no capítulo CVI (e notemos que também Brás Cubas encontrava meios de freqüentar
a casa de Virgília na ausência de Lobo Neves; aliás, são várias as situações
transpostas de um romance a outro, mudando o ponto de vista narrativo).
No
mesmo capítulo CXV do Dom Casmurro temos
a informação da repentina e estranha frieza arredia da mãe de Bentinho para com
a nora e, fato singularmente sugestivo, para com o neto. Capitu, como sempre,
justifica com arte a ocorrência: seriam os ciúmes e leves rusgas da tradição de
sogra e nora. Isso talvez explicasse a frieza em relação a si, mas não no respeitante
a Ezequiel.
Ainda
no capítulo CXV temos também a notícia da aceleração súbita do envelhecimento
de dona Glória, ela cujo amadurecimento até então vinha sendo tão lento, tão moroso,
a ponto de Escobar, julgando-a pela aparência, subtrair-lhe mais de dez anos (capítulo
XCIII). É de presumir, portanto, que teria já dona Glória conhecimento da
comborçaria, de tal modo que Bentinho porventura estaria na condição do adágio:
o último a saber! Ou seja, a sugestão da narrativa nessa passagem é no sentido
de que o envelhecimento de dona Glória, de natural tão retardado, saíra dos
trilhos ordinários em razão de alguma grave conjuntura – e que contexto poderia
ser mais grave para uma mãe extremosa do que o da desonra e desventura do filho
único? Que outra explicação plausível para o fato de uma avó, até aí tão
amorosa para com o único neto, de brusco esfriar-se com ele, afastar-se, exceto
alguma informação de que a criança possivelmente não seja seu neto? Criança
que, quanto mais cresce, tanto mais vai fazendo-se parecida com Escobar...
É
necessário conhecer um pouco mais o Escobar, a fim de avaliar melhor a sua
semelhança com Ezequiel e a sua afinidade com Capitu. Ele e Bentinho foram condiscípulos
no seminário para formação de padres, fazendo-se amigos; aliás, Bentinho, fosse
pela timidez, fosse por outra idiossincrasia qualquer, era mancebo de poucos ou
nenhuns amigos, no seminário mesmo Escobar fora o único. Dos anos que passara em São Paulo na faculdade de
Direito e do próprio exercício da advocacia não lhe vieram amigos íntimos cuja
importância subisse ao ponto de fazê-los merecedores de menção na narrativa. Só
Escobar. (Nem consideramos aquele velho tenor que algumas vezes ia jantar com o
Bentinho já velho e é unicamente referido naquele literariamente esplêndido,
mas digressivo e marginal capítulo IX, “A Ópera”).
Por
parte de Escobar, porém, a amizade não era desinteressada. Nos capítulos XCIII
e XCIV, a título de exibição de habilidades aritméticas, vemo-lo obter facilmente
a satisfação do seu desejo de descobrir qual é a renda mensal dos imóveis
alugados pela família do amigo; por uma brincadeira com as letras iniciais dos
nomes dos escravos da família, sonda-lhes o número; perscruta dados sobre a
grandeza das casas e da antiga fazenda dos Santiagos – tudo com naturalidade
artificial, mal disfarçada abelhudice, a que o jovem Bentinho, entretanto, não
malicia, tão avolumada é a sua ingenuidade e a confiança que vai depositando no
único amigo. Escobar, conhecendo as cifras e julgando ainda bela e fresca a mãe
do amigo, teria – segundo a opinião da “prima Justina”, expressa no capítulo
XCVIII – alimentado o interesse de levá-la ao altar em segundas núpcias. Há,
pois, em Escobar, algo daquele João Coqueiro de Casa de Pensão.
No
quesito do interesse Escobar e Capitu são semelhantes, porquanto também ela demonstra
para com Bentinho interesses que estão bastante além da pura e ingênua manifestação
dos sentimentos. Capitu não é uma heroína romântica, mas uma realista precoce: seus
passos não se guiam apenas pelo amor, embora este sentimento não esteja
necessariamente (ou por completo) excluído. Nem mesmo na adolescência, quadra
favorável, entrevemo-la suspirar ou flagramo-la em uma atitude evasiva, de
sonho ou idealização tipicamente românticos, senão sempre a mobilizar seus
extraordinários dotes de inteligência, para conduzir Bentinho e manobrar as
pessoas à sua volta, de tal modo que suas metas sejam atingidas não de uma vez,
de forma clara e direta, mas aos poucos, sinuosamente, ofidicamente. Vemo-la, outrossim,
dissimulando sempre e cada vez com maior desenvoltura, mas nem por isso o seu
interesse material deixa de transparecer aqui e além, como na admiração
demonstrada perante a notícia das dádivas milionárias de César (capítulo XXXI).
Capitu
detém uma personalidade complexa, tanto se move por interesse de bem-estar
material (o que talvez ocorra na maior parte do tempo), quanto por sentimentos um
pouco mais nobres (por exemplo, servindo a Sancha como enfermeira, por amizade,
como narrado no capítulo LXXXI), o que não raro atordoa a simplificação de quem
espera comportamentos lineares. De mais a mais, a primeira metade do romance
traz vários capítulos ilustradores da afetividade gestada na constante
proximidade de Bentinho, na qual ela vivia; cresceram juntos, bebera com ele as
primícias do coração.
Porém,
nem só de coração vive a rapariga pobre que almeja ascender socialmente e
desfrutar de bens tais como aqueles que ela encontra na casa do vizinho e
amigo, como informa o narrador, verbi
gratia, no capítulo XXXI:
Já então namorava o
piano da nossa casa, velho traste inútil, apenas de estimação. Lia os nossos
romances, folheava os nossos livros de gravuras, querendo saber das ruínas, das
pessoas, das campanhas, o nome, a história, o lugar. (...) A pérola de César
acendia os olhos de Capitu. Foi nessa ocasião que ela perguntou a minha mãe por
que é que já não usava as jóias do retrato; referia-se ao que estava na sala,
com o de meu pai; tinha um grande colar, um diadema e brincos. (ASSIS, 1995, p.
48-49)
Há
inegável arrivismo em Capitu, como há também curiosidade e certa lucidez na
inteligência das circunstâncias e pessoas que a cercam. Tudo isso era posto a
serviço da consumação dos seus propósitos. Nem havia outro caminho a seguir que
não fosse o do casamento – a sua sociedade não reservava melhor posição para as
mulheres, como se para elas não houvesse vida sem o oxigênio do liame matrimonial.
Essas núpcias, para Capitu, representavam tudo – a posse legal do seu amigo de
infância e namorado de adolescência, como também o conforto e o prestígio advindos
da investidura em uma abastada família como a do almejado marido. E por falar
em família, Capitu encontrara na própria casa o terreno profícuo para fazer
medrar as suas tendências naturais. Pádua e Fortunata também têm interesse material
na ligação da filha com Bentinho, ligação lobrigada desde sempre como um
bilhete de loteria; fazem vista grossa e ouvidos moucos ao namoro dos dois, ao
beija-beija pelos cantos da casa, mesmo sabendo que o rapaz está prometido à
vida eclesiástica; dissimulam constantemente, como se nada estivessem a
perceber. Com essa leniência caseira, aliada ao estreitamento de relações com a
família de Sancha, nem deve ter sido difícil, para Escobar, fazer chegar às
mãos de Capitu as cartas de Bentinho, ou receber as dela para remeter a este, nos
longos anos do curso de Direito. Capítulo XCVIII:
A separação não nos
esfriou. Ele foi o terceiro na troca das cartas entre mim e Capitu. Desde que a
viu animou-me muito no nosso amor. As relações que travou com o pai de Sancha
estreitaram as que já trazia com Capitu, e fê-lo servir a ambos nós, como
amigo. A princípio, custou-lhe a ela aceitá-lo, preferia José Dias, mas José
Dias repugnava-me por um resto de respeito de criança. Venceu Escobar; posto
que vexada, Capitu entregou-lhe a primeira carta, que foi mãe e avó das outras.
Nem depois de casado suspendeu ele o obséquio... Que ele casou – adivinha com
quem –, casou com a boa Sancha, a amiga de Capitu, quase irmã dela, tanto que
alguma vez, escrevendo-me, chamava a esta a “sua cunhadinha”. Assim se formam
as afeições e os parentescos, as aventuras e os livros. (ASSIS, 1995, p. 125)
Eis
um ponto nodal no processo de apropinquação de Escobar e Capitu. Durante cerca
de cinco anos foi Escobar o medianeiro das cartas trocadas entre Bentinho e sua
já agora prometida Capitu. Não é à toa que esta experimentasse vexame no
momento de confiar àquele “estranho” a primeira carta, por sentir que tal intermediação
traz em si implicações de cumplicidade nada triviais ou desprezíveis, sobretudo
em uma sociedade na qual, em função dos seus valores morais, a correspondência
de senhoras e senhoritas com um homem que não fosse seu pai, irmão ou marido
era julgada como um comportamento avesso à moralidade e, ipso facto, era intensamente patrulhada pelas famílias, de forma
que, para manter as aparências e salvaguardar a honra, uma tal correspondência devesse
ser por completo camuflada – do contrário, aliás, Bentinho e Capitu
dispensariam o intercessor, eles que em presença gozavam tanta liberdade, e
remeteriam as cartas diretamente um ao outro. Se eles, tão íntimos, precisavam
rebuçar a remessa e o recebimento das missivas, naturalmente o “obséquio” do
medianeiro dever-se-ia prestar com a máxima discrição – de modo discretíssimo,
como diria o agregado dos superlativos; de maneira que os envelopes deviam
passar das mãos de Escobar para as de Capitu, e vice-versa, seguindo um bem
arranjado sistema de cautelas e precauções, de sorte a manter afastados
eventuais olhos curiosos. Nem consta que Sancha ou seu pai soubessem da coisa,
o que podemos inferir principalmente por virtudes da ênfase que a narrativa põe
na circunstância de haver a intercessão de Escobar prosseguido, mesmo depois do
seu casamento com Sancha.
De
resto, o aceite de tal intermediação, por si só, era já um importante precedente
de transgressão na constituição moral de Capitu, uma primeira séria quebra do
padrão, da ordem, da moralidade em vigor.
Não
é necessário ser um Einstein para perceber que essa situação punha Capitu e
Escobar em notável estado cumplicidade, tão crescente quão naturalizada com o passar
do tempo. Força é declarar que o principal responsável por isso foi o próprio
Bentinho, que podendo dispor do agregado José Dias, preferiu o melhor amigo,
assim colaborando grandemente para o próprio infortúnio. Porque se o único
defeito de Escobar (que de pronto se impressionara com a beleza singular de
Capitu, como podemos deduzir daquele “Desde que a viu animou-me muito no nosso
amor”) fosse o interesse material, vá, o prejuízo talvez não fosse tão
catastrófico. Ele, todavia, em aditamento a isso, era homem sensual e dado a
aventuras amorosas. Vejamos um fragmento do capítulo CIV:
Escobar e a mulher
viviam felizes; tinham uma filhinha. Em tempo ouvi falar de uma aventura do
marido, negócio de teatro, não sei que atriz ou bailarina, mas, se foi certo,
não deu escândalo. Sancha era modesta, o marido trabalhador. Como eu um dia
dissesse a Escobar que lastimava não ter um filho, replicou-me:
– Homem, deixa lá.
Deus os dará quando quiser, e se não der nenhum é que os quer para si, e melhor
será que fiquem no céu.
– Uma criança, um
filho é o complemento natural da vida.
– Virá, se for
necessário.
Não vinha. Capitu
pedia-o em suas orações, eu mais de uma vez dava por mim a rezar e a pedi-lo.
Já não era como em criança; agora pagava antecipadamente, como os aluguéis da
casa. (ASSIS, 1995, p. 130)
Sem
embargo da circunspecção do narrador, temos aí a informação de que Escobar não era
exatamente santo e casto marido, sujeitava-se à luxúria extraconjugal ainda nos
primeiros anos de casado, não resistindo aos apelos da delectacio venerea, embora salvando as aparências. Nada que o
impedisse de possuir qualidades outras, ligadas ao trabalho e à honradez na
vida comercial. Também Escobar é uma personagem complexa. Não era propriamente
inimigo oculto de Bentinho; tinha-lhe amizade até certo ponto, a despeito de
não ser uma amizade a toda prova ou desprovida de interesse; prestava-lhe
pequenos favores eventuais, sobretudo no início da carreira de advogado do
amigo; procurava reconfortá-lo diante dos padecimentos da infecundidade
masculina (um cínico poderia dizer aqui que, sentindo o amigo desconsolado com a
falta de filhos, Escobar por amizade incumbira-se de resolver-lhe a complicação,
dando-lhe um – mas até para o cinismo há limites).
Como
se tudo isso não bastasse, acrescentemos a excessiva proximidade em que viviam
os dois casais, em certa altura freqüentando-se já com assiduidade diária (não
por acaso há igual situação na narrativa de Brás Cubas, como vimos oportunamente).
Nem aproveitou ao narrador a lição que atribui a João de Barros (capítulo
CXVII), segundo a qual os bons amigos devem guardar determinado distanciamento.
É
tanta proximidade que Sancha, na noite da véspera da morte do marido, narrada
capítulo CXVIII, chega ao ponto de oferecer-se como amante a Bentinho, quase
instaurando uma promiscuidade nos moldes daquela narrada na oitava novela da
oitava jornada do Decamerão, de
Giovanni Boccaccio[12].
(Verdade é que Bentinho – confundido pelo alarido de Sancha no dia seguinte,
quando morre Escobar, e sobretudo por só conhecer o mundo desde a desprivilegiada
perspectiva de marido – não reúne na própria experiência, como Brás Cubas,
elementos para concertar o oferecimento de Sancha na noite anterior, com o
choro do dia subseqüente; não consegue compreender que ela poderia, com igual
sinceridade, trair o marido hoje e prantear-lhe a morte amanhã. A oposição do
ponto de vista do narrador do Dom
Casmurro em relação ao das Memórias
Póstumas de Brás Cubas gera a oposição de convicções, como vimos em tempo ao
analisarmos, pela ótica do amante, o comportamento de Virgília no enterro do
marido).
Bem,
perante de tal oferecimento e considerando as forças naturais e culturais que
atuam sobre homens e mulheres em semelhanças circunstâncias, que não podemos
pensar dos respectivos cônjuges, se Sancha, modesta e tímida, dá tal passo na
direção de Bentinho – ele que está relativamente longe de possuir o mesmo arrojo
e esbelteza, experiência, estatura e porte atlético de Escobar?
É
tanta proximidade entre os casais, que Bentinho, conquanto se refreie, e não detenha
a mesma sensualidade máscula de Escobar, chega a ter desejos equívocos em
relação a Sancha – ela que está a igual distância de possuir os mesmos encantos
de formosura que Capitu. E observemos que Sancha e Bentinho, para além do muito
menor atrativo físico, da menor beleza no cotejo com os seus homólogos, jamais
tiveram a cumplicidade de Escobar e Capitu, nascida, quando mais não fosse, dos
vários anos da intermediação das cartas. Tudo isso considerado, não será
difícil concluir que, só em face dos elementos até então postos e tendo em
vista a analogia do caso de Sancha e Bentinho, é agigantada a probabilidade do
conúbio clandestino de Capitu e Escobar – configurando a tão repetida
comborçaria fraternal masculina. Ainda há, porém, o filho Ezequiel...
A
compreensão da semelhança física entre o menino Ezequiel e Escobar exige que
conheçamos, antes, um pouco da compleição corporal deste último, ao menos no
que houver de mais característico. Dá-no-la o narrador no capítulo LVI, tão
logo mencione o futuro amigo pela primeira vez. Vejamos:
Era um rapaz esbelto,
olhos claros, um pouco fugitivos, como as mãos, como os pés, como a fala, como
tudo. Quem não estivesse acostumado com ele podia acaso sentir-se mal, não
sabendo por onde lhe pegasse. Não fitava de rosto, não falava claro nem
seguido; as mãos não apertavam as outras, nem se deixavam apertar delas, porque
os dedos, sendo delgados e curtos, quando a gente cuidava tê-los entre os seus,
já não tinha nada. O mesmo digo dos pés, que tão depressa estavam aqui como lá.
(ASSIS, 1995, p. 80)
Deixemos
de lado a esbelteza, o sestro de não encarar o interlocutor e a fala meio
engrolada; concentremo-nos naquilo que é a maior peculiaridade física de Escobar:
a forma e as dimensões dos pés e mãos. Peculiaridades marcantes, haja vista que
Bentinho notou-as já desde os primeiros instantes do conhecimento com o
condiscípulo, ainda no seminário. Não teria dificuldades para ir notando-as, à
medida que essas especificidades físicas de Escobar, de cambulhada com suas
demais feições, iam reaparecendo, cristalinas, acusadoras, no menino Ezequiel,
mormente em razão da privança diária com o amigo, podendo, por conseguinte,
confrontá-las ou, antes, ser confrontado com elas a todo momento; e forçoso é admitir
que a semelhança não diz respeito apenas a simples aspectos fisionômicos, mas também
a características específicas pouco usuais como a formatura de pés e mãos especialmente
curtos e delgados.
A
indubitável semelhança entre Escobar e o filho de Capitu, aliada aos elementos
já acima mencionados e ao comportamento de Capitu nos lances dramáticos
imediatos à morte de Escobar, constitui um feixe de indícios materiais que determinaram
a convicção do narrador e a conseqüente separação do casal Santiago, com o
exílio de Capitu e do filho na Suíça. Na vida real (pedra de toque da
verossimilhança romanesca), tal conjunção de indícios daria que pensar a
qualquer marido.
Porém,
será que pode haver dúvida plausível, perfeitamente racional e objetiva, quanto
à grande e particular semelhança física de Escobar e Ezequiel, quando todo o
romance diz expressamente o inverso? Ou quanto à probidade da informação
prestada pelo narrador, enquanto tal em tudo tão circunspecto? Existirá alguma
possibilidade razoável de que o narrador esteja a caluniar a mulher de modo
deliberado e doloso, apenas para aplacar sua consciência? A narrativa, que é a
realidade com a qual trabalha o crítico literário, traz diversas substâncias proeminentes
a demonstrar que não. Em verdade, um leitor isento e livre de injunções e
escusos interesses político-partidários, que leia e examine o Dom Casmurro atentando em todos os seus
pormenores e sugestões, se por acaso cogitar da inocência de Capitu e suposta calúnia
de Bentinho (e que de si já é bastante improvável em um leitor em estado de normalidade
psicológica), não será senão para considerá-la remotíssima.
Para
documentar a resposta às questões postas no parágrafo anterior, vamos a uma das
mais determinantes dentre algumas informações precisas fornecidas por este caprichoso
artefato literário – o diálogo decisivo travado por Bentinho e Capitu no capítulo
CXXXIII (clímax da tensão romanesca), quando aquele diz não ser o pai de
Ezequiel:
– Só se pode explicar
tal injúria pela convicção sincera; entretanto, você, que era tão cioso dos
menores gestos, nunca revelou a menor sombra de desconfiança. Que é que lhe deu
tal idéia? Diga – continuou, vendo que eu não respondia nada –, diga tudo;
depois do que ouvi, posso ouvir o resto, não pode ser muito. Que é que lhe deu
agora tal convicção? Ande, Bentinho, fale! Despeça-me daqui, mas diga tudo
primeiro.
– Há coisas que se
não dizem.
– Que se não dizem só
metade; mas, já que disse metade, diga tudo.
(...)
Não disse tudo; mal
pude aludir aos amores de Escobar sem proferir-lhe o nome. Capitu não pôde
deixar de rir, de um riso que eu sinto não poder transcrever aqui; depois, em
um tom juntamente irônico e melancólico:
– Pois até os
defuntos! Nem os mortos escapam aos seus ciúmes!
Concertou a capinha e
ergueu-se. Suspirou, creio que suspirou, enquanto eu, que não pedia outra coisa
mais que a plena justificação dela, disse-lhe não sei que palavras adequadas a
este fim. Capitu olhou para mim com desdém, e murmurou:
– Sei a razão disto;
é a casualidade da semelhança... A vontade de Deus explicará tudo... Ri-se? É
natural; apesar do seminário, não acredita em Deus; eu creio... Mas não falemos
nisto; não nos fica bem dizer mais nada. (ASSIS, 1995, p. 162-163)
Temos
aí subsídios com base nos quais, com segurança, decidir das questões postas.
Admitamos, por amor do debate e ad
argumentandum, que uma interpretação de romance sustentada em procedimentos
de instrução de processo judicial, à guisa do que se formulou lá no Otelo Brasileiro de Helen Caldwell, ainda
possa ser considerada crítica literária positiva. Ainda aí um rábula contratado
pela “crítica literária” feminista para defender Capitu não poderia esquivar-se
a um princípio comezinho do Direito Processual, segundo o qual é defeso aos
advogados extrapolar as palavras do próprio cliente, ou ir contra elas. Não é à
toa que costumam orientá-lo a permanecer calado, não apenas para não fazer
prova contra si, mas também para dar-lhes total liberdade de ação defensiva.
Prestando livremente o cliente alguma declaração decisiva, os seus advogados a
ela prendem-se necessariamente.
Pois
bem, é a própria Capitu, principal interessada na causa da sua suposta
inocência, quem reconhece a semelhança física entre Ezequiel e Escobar, embora
acuse aí não mais que a casualidade e os imponderáveis desígnios da
Providência. Também é ela mesma quem reconhece que o narrador age por convicção
e, ipso facto, com sinceridade,
conquanto alegadamente induzido a erro por aquela antedita casualidade. Não há aqui
contradição na fala de Capitu, porque uma convicção sincera não implica, por si
só, acerto na tomada de julgamento; como também a hipocrisia não importa, obrigatoriamente,
em equivocada tomada de juízo. Os sinceros podem errar; como os hipócritas,
acertar, ao chegarem a uma conclusão.
A
própria Capitu, portanto, não contesta a idoneidade do marido nesta como em
outras passagens. Em verdade não há na obra subsídios (uma única fala, uma
única passagem, uma única afirmação) que permitam pôr objetivamente em dúvida a
idoneidade do relato feito pelo narrador – nem constituem prova do contrário as
ocorrências que ele aduz em desfavor de si mesmo ao longo do livro (como a ideação
de envenenar a criança), ou em possível contraste com suas convicções (como a
semelhança entre Capitu e a mãe de Sancha), pois ele não narra apenas o que
“lhe interessa”, mas tudo (sem excluir as ambigüidades) que lhe vem à memória de
homem velho e já sem parentes a quem prestar contas de sua vida. Aliás, não há
uma única passagem no Dom Casmurro,
com base na qual se possa declarar, sem leviandade, que o ciúme retrospectivo ou
o abjeto desejo de vingança contra uma pessoa já morta sejam os móveis que decidiram
Bentinho, vinte e tantos depois, a narrar a sua história. Tanto o capítulo II,
quanto o de encerramento, trazem as razões que motivaram a lavratura da
narrativa, não existindo, no universo do romance, a expressão de razões outras.
Resta, portanto, descobrir o que possui mais força de significação literária: o
arranjo das palavras, idéias e conceitos presentes na obra ou as crenças e
desejos nela projetados pela crítica literária politizada do momento. Apostamos
na primeira hipótese.
No
capítulo CXLV, quando do regresso de Ezequiel da Europa, estando já falecida a
mãe, temos a descrição do encontro entre “pai” e “filho” supostos. Da palestra
de ambos (e em um dos raros momentos nos quais a narrativa traz o discurso
indireto, quando o narrador não transcreve literalmente a fala da personagem),
avulta a seguinte passagem, na qual Ezequiel transmite a Bentinho o que deste lhe
dizia a mãe nos anos de Suíça: “A mãe falava muito em mim, louvando-me extraordinariamente,
como o homem mais puro do mundo, o mais digno de ser querido” (ASSIS, 1995, p. 168).
Ora, pois! É absolutamente forçoso reconhecer que isso não é, nem de longe, o
que diria ao filho uma mãe iníqua e torpemente infamada por um caluniador
perverso, zeloso apenas das prerrogativas da “classe social que representava” (como
declaram, em paranóica suposição, os políticos dedicados à crítica literária).
É, pois, a própria Capitu, em privança com o filho, quem reconhece a boa-fé e a
idoneidade de Bentinho. Ezequiel, como qualquer outro filho, não poderia jamais
cogitar em que seria injusto algoz da mãe um homem que ela mesma,
constantemente, dizia ser “o mais digno de ser querido”.
Bem,
retomando a antedita conversa decisiva entre Bentinho e Capitu, vemos que esta não
contesta a parecença de Ezequiel e Escobar, nem a idoneidade moral de Bentinho
(tampouco o faz depois de exilada pelo marido, como acabamos de verificar), mas,
de início, contesta, sim, o acerto da conclusão à qual este chegara com base
nesses mesmos fatos. Ou seja, o que se evidencia das citadas palavras de Capitu,
ditas em sua própria defesa até aí, é que o marido injuriava-a por indução de
uma infeliz coincidência de traços físicos entre o menino Ezequiel e o finado
Escobar (coincidência possível e já registrada pela semelhança de Capitu com a mãe
de Sancha, capítulo LXXXIII), agravada pelos ciúmes de Bentinho – embora estejamos
já fatigados de tanto saber que os ciúmes de um dos cônjuges não tornam o outro
eo ipso inocente (lá o comprova a
história de Lobo Neves e Virgília). No fundo, o máximo que se poderia alegar em
defesa da suposta inocência de Capitu, com supedâneo em suas próprias palavras,
é que ela tentou fazer crer ao marido que este seria tão vítima da fatídica parecença,
quanto ela mesma.
Não
o conseguiu, uma vez que suas palavras são incontinenti infirmadas por sua
reação ante o inesperado retorno da criança à sala, cuja imagem foi, por ambos,
irresistivelmente cotejada com o retrato de Escobar, que jazia sobre a mesa do
escritório, como informa-nos o capítulo CXXXIX:
Palavra que estive a
pique de crer que era vítima de uma grande ilusão, uma fantasmagoria de
alucinado; mas a entrada repentina de Ezequiel, gritando: “Mamãe! mamãe! é hora
da missa!” restituiu-me à consciência da realidade. Capitu e eu, involuntariamente,
olhamos para a fotografia de Escobar, e depois um para o outro. Desta vez a
confusão dela fez-se confissão pura. Este era aquele; havia por força alguma
fotografia de Escobar pequeno que seria o nosso pequeno Ezequiel. De boca,
porém, não confessou nada; repetiu as últimas palavras, puxou o filho e saíram
para a missa. (ASSIS, 1995, p. 163)
Capitu
poderia logo aí ter confessado tudo expressamente, “de boca”, mas não o fez.
Por quê? Porque ainda lhe queimava a esperança de manobrar Bentinho como sempre
fizera, o que não deixou de tentar, mesmo quando já exilada, como podemos ver no
capítulo CXLI. Confessar era a única atitude realmente irremediável. Nas Memórias Póstumas de Brás Cubas há uma
breve, porém assaz significativa e esclarecedora dissertação sobre o
comportamento de homens e mulheres nas relações “defesas”. Vamos a ela, pois é
o criador explicando sua criação por meio de uma de suas mais notáveis criaturas
– explicação que de resto se coaduna à perfeição com o tratamento que o
ficcionista dá à temática do adultério nas diversas obras em que ela sobressai.
Em pontos de aventura
amorosa, achei homens que sorriam, ou negavam a custo, de um modo frio,
monossilábico, etc., ao passo que as parceiras não davam por si, e jurariam aos
Santos Evangelhos que era tudo uma calúnia. (...) Além disso (refiro-me sempre
aos casos defesos), a mulher, quando ama outro homem, parece-lhe que mente a um
dever, e portanto tem de dissimular com arte maior, tem de refinar a aleivosia.
(...)
Mas seja ou não verdadeira
a minha explicação, basta-me deixar escrito nesta página, para uso dos séculos,
que a indiscrição das mulheres é uma burla inventada pelos homens; em amor,
pelo menos, elas são um verdadeiro sepulcro. Perdem-se muita vez por
desastradas, por inquietas, por não saberem resistir aos gestos, aos olhares; e
é por isso que uma grande dama e fino espírito, a rainha de Navarra, empregou
algures esta metáfora para dizer que toda aventura amorosa vinha a descobrir-se
por força, mais tarde ou mais cedo: “Não há cachorrinho tão adestrado, que
alfim lhe não ouçamos o latir”. (ASSIS, 2010, p. 167-168)
Para
Machado de Assis, não haveria verossimilhança em uma personagem feminina que
confessasse expressamente ao marido o cometimento do adultério. A razão disso
está no fato de que, para a mulher do contexto histórico em que vivera o autor
do Dom Casmurro, o gozo da
consideração familiar, do apreço dos amigos, da posição respeitável e honrada
na sociedade – todo ele dependia da boa fama, da reputação ilibada no casamento,
de onde se segue que qualquer ocorrência ou empresa passível de ofuscar,
manchar ou denegrir essa boa nomeada deveria ser empreendida sob todos os
disfarces e dissimulações imagináveis. Jamais confessada, nem sequer sob
tortura, sobretudo ao marido, fiador-mor da honradez e da honestidade da
esposa. A expressa confissão da infidelidade conjugal implicava a renúncia irreversível
e imediata de todas as considerações, todos os apreços, todas as posições e o que
mais houvesse, de modo que era um passo muito mais difícil de dar que aquele
que conduzia ao próprio adultério.
Por
isso mesmo é que as mulheres que enveredassem por um caminho interdito pelos
valores morais do seu meio, como Virgília e Capitu, se por infortúnio pisassem
em uma “casca de banana”, escorregando a tal ponto que lhes lobrigassem a
infâmia, procurariam tudo negar com toda a veemência e indignação, jurando
mesmo pelas chagas de Cristo e sob os Santos Evangelhos, agarrando-se, como um
náufrago à última tábua, à esperança de incutir dúvida no espírito do marido,
que de regra poderia reunir um bom conjunto de evidências, mas (supunham elas) não
a certeza, exceto se as colhesse em flagrante delito, não sendo esta a situação
de nenhuma das duas.
Ademais,
tal cena de flagrante aborrecia a finura machadiana e, ipso facto, é alheia aos seus romances da maturidade. Tal é a
explicação que vislumbramos para a ausência de confissão expressa de Capitu, de
resto tornada irrelevante, em face dos demais elementos postos e desse último
olhar ao filho que volta à sala inopinadamente. Aliás, não fique sem registro
que o Bentinho adulto, tomando a atitude resoluta que tomara, surpreende o
leitor, o qual talvez não esperasse que aquele adolescente, outrora tão
manobrado e fraco, um dia se investisse de tamanha força moral, como a que
sempre foi necessária para desfazer-se um casamento, em especial no seu
contexto histórico. Com o precoce desaparecimento do comborço ou até mesmo sem
esta circunstância atenuante, um marido um pouco mais débil (como o Lobo Neves
das Memórias Póstumas de Brás Cubas
ou o Miranda de O Cortiço) poderia,
ainda que com alguma relutância moral, acomodar a situação...
Outro
ponto crucial da última citação machadiana, em que devemos atentar com todo o
critério, concerne ao fato de que, não obstante jamais confessem expressamente,
as mulheres, desde que engolfadas em uma ligação clandestina, inevitavelmente incidirão
em atitudes comprometedoras, embora sutis, que podem dar ensejo à sua perda.
Esses atos são perpetrados, segundo
vimos, porque elas seriam “desastradas”, “inquietas”, e não saberiam “resistir
aos gestos, aos olhares”. Não por acaso, e em que pese a toda a perícia que
possuía nas artes da dissimulação, foi justamente o fato de não ter conseguido
resistir a alguns gestos e, sobretudo, a alguns olhares que selou o destino de
Capitu.
A obra de Machado de
Assis, pela “pena da galhofa” do solerte e desabusado Brás Cubas, fornece
indicações bastantes à compreensão do comportamento de personagens como Capitu,
que no adultério reproduz os passos de Virgília, com a diferença que,
transferindo-se, juntamente com o ponto de vista narrativo, a temática da
infecundidade masculina do amante para o marido (com o escopo de mantê-la no
plano de importância do protagonista), a paternidade do filho único, salvando
Virgília, perdeu Capitu.
Porém, ainda assim, pode
haver dúvida fundada, não artificial ou paranóica, quanto à paternidade do
filho de Capitu? In
nuce, a suma das sumas é decidir se a incontestável
e aguda semelhança física de Ezequiel e Escobar – conjugada com todos os demais
subsídios trazidos pela narrativa (a assaz provável impotentia generandi de Bentinho; a demonstrada sensualidade de
Escobar; o arrivismo, o interesse material e o reconhecido caráter oblíquo e
dissimulado de Capitu; a intimidade excessiva mantida pelos casais; a confiança
irrestrita que o jovem Bentinho depositava no esquivo Escobar; o olhar com o
qual Capitu fitara o amigo morto; o olhar que lançara ao filho na conversa
decisiva com o marido, etc.) – é uma colossal, simples e inverossímil coincidência
de mau-gosto ou é a cereja deste fascinante bolo da comborçaria fraternal
masculina, com travo da infecundidade masculina. Afigura-se-nos amplamente implausível
e racionalmente insustentável tão enorme concurso de circunstâncias fortuitas
nada banais, contrárias ao entendimento machadiano quanto ao adultério
feminino, como também tamanho erro de julgamento por parte de um narrador tão
circunspecto e de um marido que desde a adolescência amava a vizinha e futura esposa
(a ponto de contrair um casamento desigual sem cogitar da desigualdade, nem jamais
esquecer Capitu, ainda décadas depois da separação), de modo que o Dom Casmurro apresenta-se-nos seguramente
como a reelaboração machadiana da dupla temática de sucesso literário das Memórias Póstumas de Brás Cubas, agora
sob o ponto de vista do marido traído que rompe o véu da dissimulação e alcança
a verdade, a seu pesar.
3.4.
Esaú e Jacó
Quarto
romance da maturidade machadiana, vindo a lume em 1904, Esaú e Jacó não é um romance histórico, muito embora explore e
apresente, como pano de fundo da trama romanesca, eventos que marcam o fim do
regime imperial e a implantação do republicano no Brasil. Este romance traz, na
variação e nas especificidades, tanto do narrador, quanto dos traços
característicos da focalização, o tempero para a persistente recorrência
temática, já assinada nos três romances precedentes.
Aqui
estamos diante de outra focalização heterodiegética, como no Quincas Borba, uma vez que o relator não
toma parte na diegese romanesca, estabelecendo-a com recurso a uma verbalização
em terceira pessoa. Há, porém, um pequeno complicador: a obra abre-se com uma
“advertência”, na qual a autoria do texto é atribuída ao Conselheiro Aires e,
como este mesmo Conselheiro é também uma personagem da trama, não seria
totalmente disparatado conjecturar a hipótese de que se trate de um narrador
homodiegético.
Não
é o caso, contudo. Afora a tal advertência (que não compõe a narração em si,
mas funciona como uma espécie de prólogo ou apêndice à obra), inexiste vinculação
entre o narrador e a personagem Aires. Esta é tratada como qualquer outra
pessoa da história e, considerando que é interna a focalização, tem sua intimidade
psicológica tão devassada pelo narrador quanto as demais personagens. Aliás, a
focalização é também onisciente, de modo que o narrador sabe tudo acerca de
todos, sem um conhecimento especial a propósito do Conselheiro, pois relata as
conjecturas e movimentos íntimos de Aires da mesma forma que, por exemplo, os
de Natividade ou Flora.
Outra
persistência deste romance é a focalização interventiva, aliás, um vinco tão
pronunciado quanto reconhecido do estilo machadiano. O narrador, em bom número
de capítulos, interpela o leitor, com ele dialoga constantemente, guiando-o
pelos meandros da história, ou utilizando-se disso como pretexto para as
múltiplas digressões que muito colaboram na conhecida progressão remanchada do
enredo, que é outra impressão digital estilística deixada por Machado de Assis
em seus textos.
A
comborçaria ou rivalidade fraternal masculina está presente neste romance, em
diversos graus de desenvolvimento e variados níveis de interesse por parte do
narrador, que dedica mais ou menos atenção a cada caso havido, entremeando-os
com assuntos incidentais. São nada menos que três casos, posto frustrados todos,
uma vez que apenas um dos rivais, ou mesmo nenhum deles, obtém a posse efetiva
da mulher disputada. Os dois primeiros são como que esboços para o terceiro,
este sim relevante (além de curioso) caso de comborçaria ou rivalidade fraternal
masculina, envolvendo os irmãos gêmeos. Todavia, vamos por partes.
A
primeira das comborçarias ou rivalidades fraternais masculinas é tracejada
rapidamente no capítulo IV, não indo além. Traz nos vértices Natividade, Santos
(o marido) e João de Melo (parente do marido). Com o enriquecimento meteórico
de Santos, que graças a umas prodigiosas especulações – não esmiuçadas no romance
– faz-se magnata, capitalista e banqueiro, João de Melo não hesita em ir à
Corte em sua demanda, a fim de obter para si um emprego como diretor de banco,
dado o parentesco de ambos. Santos, que procura fugir aos parentes e deseja livrar-se,
com a máxima rapidez, da importuna pessoa do João, arranja-lhe um lugar de escrivão
em Maricá, terra natal deles.
Entrementes,
João de Melo (ao que parece hospedado na casa do parente novo-rico),
deslumbrando-se com a beleza formidável da mulher deste, considerada a mais
linda do Império ao tempo, apaixona-se alucinadamente por ela. Corteja-a, espreita-a,
lança-lhe olhares cobiçosos, que ela reconhece, compreende, mas não lhes
corresponde às expectativas, conquanto não feche a cara ao frustrado pretendente,
nem dê demonstrações de exasperação ou descontentamento. Apenas ficamos a saber
que Natividade é uma mulher honesta. João vê-se na contingência de resignar-se
com o posto de escrivão do cível oferecido pelo parente em Maricá. De lá ainda
escreve inúmeras cartas a Santos, embora pensando em Natividade. Não
recebe resposta. Daí a poucos anos morre – sozinho.
Além
de um primeiro caso de rivalidade masculina pela posse de uma mulher, é também
um episódio da temática da infecundidade masculina, tendo em vista não constar
que João de Melo haja casado ou tido filhos. Esta segunda temática, no entanto,
fica meio acobertada, nebulosa, sem receber grandes luzes ou atenções, mas aí
está ela, sempre a imprimir uma infalível nota de melancolia no romance machadiano
da maturidade.
A
segunda ocorrência da comborçaria ou rivalidade fraternal masculina envolve ainda
o mesmo casal Santos, agora triangulando com o Conselheiro Aires, amigo da
família e presença assídua na residência do banqueiro. Aqui novamente a
comborçaria permanece no âmbito da rivalidade, sem consumação carnal, em função
não apenas da já proclamada honestidade da mulher de Santos, como também pela
tibieza de Aires enquanto requestador. Vejamos um fragmento do capítulo XII:
Tempo houve (...) em
que ele [Aires] também gostou de Natividade. Não foi propriamente paixão; não
era homem disso. Gostou dela, como de outras jóias e raridades, mas tão
depressa viu que não era aceito, trocou de conversação. Não era frouxidão ou
frieza. Gostava assaz de mulheres e ainda mais se eram bonitas. A questão para
ele é que nem as queria à força, nem curava de as persuadir. Não era general para
escala à vista, nem para assédios demorados. (ASSIS, 1997, p. 28)
O
Conselheiro Aires interessa-se por Natividade. Porém, como esta não demonstra
de imediato igual sentimento, ele recolhe as armas, desistindo da luta – ou,
antes, desiste sem nem sequer exibi-las ostensivamente. Nem por isso deixa de
manter com ela certa proximidade, como amigo íntimo da casa. Em verdade, desde
que o Conselheiro Aires assoma na história, torna-se a personagem mais focalizada
pelo narrador, embora este distribua o foco do interesse narrativo por diversos
partícipes.
De
qualquer sorte, não cessa o flerte entre Aires e Natividade. E se “a cousa” não
avança, muito se deve à ausência de ânimo resoluto em Aires, pois também
Natividade teve-lhe inclinação, como podemos ver, verbi gratia, em uma passagem do capítulo XXXVII, quando Natividade
mostra-se apreensiva com o fato de o filho Paulo alegar não poder sacrificar
uma opinião: “Natividade não acabava de entender os sentimentos do filho, ela
que sacrificara as opiniões aos princípios, como no caso de Aires, e continuou
a viver sem mácula” (ASSIS, 1997, p. 73). Aí temos a confirmação da mutualidade
da atração havida entre a senhora Santos e o viúvo Aires, íntimo da casa, como
também a informação de que esses sentimentos não se materializaram em conúbio
amoroso, pois ela manteve-se em uma vida “sem mácula” – não sabemos como seria
se Aires fosse um homem mais decidido, pois o romance não cuida abertamente
dessa hipótese.
Sabemos,
porém, que o Conselheiro detesta Santos, o feliz marido da venusta Natividade,
embora não deixe de lhe freqüentar a casa a amiúde, nem de lhe dispensar todas
as cortesias (fingidamente amistosas) exigidas pela boa sociedade e de que a
dissimulação é capaz, tal é a necessidade de ao menos estar perto da mulher
desejada. In litteris:
Tais eram as
suspeitas que vagavam no cérebro de Aires, enquanto ele olhava mansamente para
o anfitrião [Santos]. Aires não podia negar a si mesmo a aversão que este lhe
inspirava. Não lhe queria mal, decerto; podia até querer-lhe bem, se houvesse
um muro entre ambos. Era a pessoa, eram as sensações, os dizeres, os gestos, o
riso, a alma toda que lhe fazia mal. (ASSIS, 1997, p. 103)
No
entanto, em que pese a toda essa antipatia pelo ditoso rival, aliás inocente, Aires
preocupa-se com os filhos de Natividade. Tem para com eles desassossegos
paternais, como os teria para com os seus próprios filhos (se os houvesse),
notadamente se ela lhos recomenda, haja vista a inimizade dos gêmeos, já manifestada
desde o ventre materno. Vasculhando as recônditas motivações do Conselheiro
Aires, estando subjacente a problemática da infecundidade masculina, o narrador
do Esaú e Jacó presta-nos as
seguintes informações:
Agora, se era por
amor deles [Pedro e Paulo], se dela [Flora], é o que propriamente se não pode
dizer com verdade. Quando muito, para levantar a ponta do véu, seria preciso
entrar na alma dele, ainda mais fundo que ele mesmo. Lá se descobriria acaso,
entre as ruínas de meio celibato, uma flor descorada e tardia de paternidade,
ou, mais propriamente, de saudade dela... (ASSIS, 1997, p. 176)
Notável
a estratégia de escrita deste narrador onisciente, que alegando não saber dizer
com propriedade, acaba por dizer tudo. No caso de Aires, de braços dados com a tíbia
comborçaria ou rivalidade fraternal masculina, assoma novamente (sobretudo nos capítulos
XXXVIII, XLII e LXXXVII) – agora um pouco mais visível e iluminada, comparativamente
ao sucesso em que figura o João de Melo – a temática da infecundidade
masculina, tendo em vista ser o Conselheiro Aires um viúvo sem filhos, o qual
tenta preencher esse vazio “adotando”, quanto possível, os filhos da amiga e
também Flora, a rapariga amada pelos gêmeos. E, de novo e de par com a
infecundidade, uma soturnidade difusa vai gradualmente impregnando as páginas do
romance.
O
terceiro episódio de comborçaria ou rivalidade fraternal masculina em Esaú e Jacó é o que reúne Flora e os
gêmeos Pedro e Paulo. Estes, se já brigavam desde que eram apenas fetos,
prosseguem rivalizando vida afora. A disputa no útero da mãe, nos brinquedos da
infância, nos gostos da adolescência; a rivalidade nas profissões escolhidas,
nas opiniões políticas – tudo isso era quase nada, ou, antes, não era senão
aperitivo para a verdadeira, a mais intensa e insofrida das rivalidades, aquela
a que o romance dá especial destaque por capítulos e mais capítulos – a
comborçaria ou rivalidade fraternal masculina! E o não haver consumação carnal
não lhe minora a intensidade, nem o insofrimento.
De
resto, sendo a mais fraternal de todas as comborçarias ou rivalidades masculinas
machadianas, e não obstante o relativo “silêncio” e “compostura” com que é
travada, nem por isso deixa de ser a mais feroz e renhida de todas, com os rivais
a figurar em um cortês mas implacável cabo-de-guerra pela conquista da mulher amada,
tendo ao centro a moça Flora. Sendo exatamente iguais o desejo e a força, os
recursos e a determinação dos êmulos em combate, à rapariga não resta senão
arrebentar-se, rasgar-se, aniquilar-se sem pender para nenhum dos lados, de modo
que a morte de Flora era o desenlace inelutável desta fraternalíssima comborçaria
ou rivalidade masculina.
Fato
singular: Flora é a única rapariga de toda a história. Em que pese ao fato de
estarem os gêmeos em privilegiadíssima posição pessoal, econômica e de
sociedade, não surge uma única moça que lhes interesse ou que se interesse por
algum deles de modo relevante, a ponto de figurar no romance. No entanto, não
faltam novos rapazes a pleitear a mão de Flora, como é o caso do remediado Gouveia
e do maduro ricaço Nóbrega. É como se
ela fosse a última donzela de um mundo em arrastado compasso de desintegração,
em torno da qual os rapazes remanescentes vão acumulando-se, esperançosos de
colher esta última flor da felicidade, que no entanto emurchece improfícua, legando-lhes
uma sorumbática fragrância de túmulo.
De
resto, a morte de Flora amplia ainda mais a maninhez geral deste romance de
infecundidades e de comborçarias ou rivalidades fraternais infrutuosas. O seu precoce
falecimento faz de seus próprios pais velhos solitários sem descendentes.
Semelhante e merencória sorte cabe também a Perpétua (irmã de Natividade) e D.
Rita (irmã de Aires), ambas velhas viúvas sem “frutos” de primeira ou segunda geração,
cujos finados maridos, obviamente, ingressaram no imenso grêmio machadiano dos
padecentes da infecundidade masculina.
Nóbrega,
ex-pedinte misteriosamente enriquecido, personagem que aparece de maneira
incidental em meia dúzia de capítulos, é outro que envelhece sem filhos e assim
permanece até ao encerramento do romance. Os próprios gêmeos, posto ainda
jovens e promissores, com auspício de futuro glorioso desde os primeiros capítulos,
no entanto chegam ao final de trama igualmente solteiros e sem filhos; ricos e
importantes, é verdade, mas alimentando um invencível ódio mútuo, de tal maneira
que, em razão desse acúmulo de infecundidades, a atmosfera geral da obra, à
medida que vai lentamente chegando ao epílogo, é de uma melancolia que se adensa,
opressiva, em um nevoeiro de gradual extinção, de depressivo aniquilamento de
tudo.
Antes
de fechar a análise desta obra, cumpre salientar a opção machadiana pela
sugestão e pela ironia, presente nos cinco romances, mas que neste possui uma
força diferenciada. O episódio da troca da tabuleta da confeitaria do Custódio (capítulos
XLIX, LXII e LXIII) traz algo que à primeira vista pode parecer incidente banal
do enredo e, por isso mesmo, passar despercebido ao leitor ou não ser devidamente
apreciado; todavia, observado com uma visão mais acurada – como fizera Juracy Assmann Saraiva, para
a qual “a troca de tabuletas equivale à mudança de regimes” (SARAIVA, 1989, p.
100) –, pode realmente ser interpretado como uma alegoria
pela qual o autor manifesta o seu parecer, no tocante ao golpe de estado que
derrubou o regime monárquico brasileiro e impôs a república. Para Machado de
Assis, segundo se infere deste lance, a mudança de regímen não foi mais que
obra de fachada, troca de rótulo, de tabuleta, sem alteração substancial das
estruturas então existentes no país. Assim interpretada, tal passagem não deixa
de ser uma dura crítica aos que, sem a menor participação do povo, de resto a
tudo alheio, proclamaram a república; crítica, contudo, que fica apenas
levemente sugerida, sem uma expressão inequívoca que lhe trouxesse o rancor das
autoridades do tempo.
3.5.
Memorial de Aires
Eis
o último romance de Machado de Assis, publicado no ano mesmo de sua morte,
1908, e tão melancólico quanto se pode sentir e dizer de uma despedida. Possui
o formato de diário (em que os “capítulos” são datas) a cuja existência aludira-se
desde a “advertência” inserta no Esaú e
Jacó à laia de prólogo. Também o Memorial
de Aires traz semelhante advertência, agora assinada com as iniciais do autor,
a “informar” que a obra trata-se ainda de um recorte feito aos volumes encontrados
na casa do Conselheiro Aires após a morte deste. Pretextos de romancista, expediente
vastamente empregado pelos escritores românticos, a dar mais aparência de
verdade à sua ficção literária.
O
Memorial de Aires está assaz ligado aos
romances que o precederam, seja pela proximidade da temática fundamental, seja,
no que concerne ao Esaú e Jacó, pela
reiteração de personagens. Com efeito, tanto o Conselheiro Aires, quanto a sua
irmã, D. Rita, atuam em ambas as tramas, sendo certo, contudo, que Aires agora
não é apenas personagem da ação romanesca, como na história dos gêmeos
desavindos, mas também assume as funções e o encargo de relator, com dicção em
“primeira pessoa”.
Um
narrador que opera segundo uma focalização homodiegético, portanto. Não chega a
ser um narrador autodiegético, como nas Memórias
Póstumas de Brás Cubas ou no Dom
Casmurro, porque Aires não emerge do memorial como protagonista[13],
deixando que as luzes da ribalta incidissem sobre Fidélia e Tristão, por um
lado, e o casal Aguiar, por outro; casal que, a nosso ver e pela força de sua
relação com a infecundidade, tema central, exerce um grau maior de protagonismo
no romance, embora seja grande o interesse por Tristão e Fidélia. A si o narrador
reserva uma posição relativamente secundária na ação, pouco mais que testemunha
privilegiada dos acontecimentos relatados. Predomina, pois, a focalização
externa, sem embargo de haver, em uma ou outra passagem marginal, algum avanço
ao universo íntimo do próprio narrador, quando, então, por entre algumas questões
de somenos, explora sua própria relação com a infecundidade masculina. Aliás, o
enredo está ancorado na infecundidade masculina generalizada, como, de resto,
já ocorrera em outros romances antes examinados.
Registramos
que também aqui há, eventualmente, alguma arremetida à intimidade subjetiva das
demais pessoas da história, o que, todavia, ocorre por conjectura e suposição, porquanto
o narrador não é onisciente, laborando, no particular, sob uma focalização
restritiva. Eis uma passagem que o ilustra. O Conselheiro Aires pede à viúva
Noronha (maneira pelo qual se designa Fidélia na metade inicial da trama) que
lhe “dê um pedaço de Wagner”, mas ela escusa-se, alegando dor de cabeça. O
narrador, então, diz:
A razão verdadeira da
recusa pode não ser dor de cabeça nem de outra qualquer parte. Quer-me parecer
que Fidélia vai um tanto comigo, e tocaria para si, caso estivesse só. Naquela
outra noite, em casa de Aguiar, deixou-se arrastar e tocar para as doze pessoas
que lá estavam, levada do sobressalto, de um acordar do gosto antigo; agora
abana a cabeça, não quer divertir os outros. (...) Sinal de que não tinha dor
de cabeça é que ouviu a Tristão com evidente prazer, e aplaudiu sorrindo.
(ASSIS, 1997, p. 71)
Como
podemos observar do excerto acima, o narrador não domina ampla e
irrestritamente os fatos objeto de sua narrativa, e o seu ponto de vista é,
portanto, restrito, particular, limitado. No entanto, suas conjecturas não são
arbitrárias ou infundadas, senão bem amparadas na fineza da observação e na
perspicácia do raciocínio, de modo a deduzir ou ao menos vislumbrar o que pode
ser a verdade, ou ainda, quando mais não seja, permitir que o leitor entreveja através
da aparência das coisas. Aliás, já aí nessa passagem o leitor atento pode
lobrigar o efeito modificativo que a presença de Tristão produziu sobre os
hábitos que a si mesma se impusera Fidélia, cujo luto da viuvez abrangia, além
dos sinais exteriores da tradição, a abstinência do exercício musical. Embora
tênue, esta primeira quebra do luto é o exórdio, o zigoto do camuflado e
nebuloso processo que culminará nas segundas núpcias da formosa e discreta viúva.
Vejamos
outra passagem:
Relendo o que escrevi
ontem, descubro que podia ser ainda mais resumido, e principalmente não lhe pôr
tantas lágrimas. Não gosto delas nem sei se as verti algum dia, salvo por mama,
em menino; mas lá vão. Pois vão também essas que aí deixei, e mais a figura de
Tristão, a que cuidei dar meia dúzia de linhas e levou a maior parte delas.
Nada há pior que gente vadia, – ou aposentada, que é a mesma cousa; o tempo
cresce e sobra, e se a pessoa pega a escrever, não há papel que baste. (ASSIS,
1997, p. 20-21)
Como
já ocorrido nos quatro primeiros romances machadianos da maturidade e
constituindo-se, pois, em uma de suas marcas estilísticas, também a focalização
do Memorial de Aires é interventiva,
com a diferença que nos outros a intervenção em geral consubstancia-se em
interpelações dirigidas ao leitor, ao passo que aqui o narrador intervém na
narração para tecer considerações ou fazer julgamentos sobre o próprio ato
narrativo – o seu próprio desempenho de narrador, como podemos verificar na
última passagem transcrita – ou, em outras ocorrências, sobre as personagens
que arrola; ou, ainda, acerca de situações genéricas da condição humana, como o
juízo de valor sobre a “gente vadia ou aposentada”.
É
fixo conjunto de focalizações do Memorial
de Aires. O que igualmente nele não se altera, agora em confronto com os
quatro primeiros, é a prevalência da temática da infecundidade masculina,
ilustrada, sobretudo, pela evolução da “orfandade às avessas” do casal Aguiar,
orfandade esta que é suspensa de forma precária e provisória no interregno que
vai do nascimento à consumação do amor de Tristão e Fidélia, cuja partida ao
final, deixando inteiramente sozinhos os “pais de empréstimo”, que encaneceram
sem filhos próprios nem sobrinhos, apenas adensa a melancolia emergente do
romance, a qual não cede nem sequer aos auspícios de felicidade conjugal dos
jovens e belos recém-casados. As lúgubres vicissitudes da infecundidade são, portanto,
o leitmotiv do romance, constituindo
um traço ultra-relevante do dinamismo psicológico das principais personagens.
Logo
nas páginas iniciais ficamos a saber que Aguiar, marido D. Carmo, já em idade
um tanto senescente, não tem filhos. Em seguida chega-nos a informação da tristeza
que ele e a esposa padecem em função dessa improficuidade. Leiamos:
De quando em quando,
ela e o marido trocavam as suas impressões com os olhos, e pode ser que também
com a fala. Uma só vez a impressão visual foi melancólica. Mais tarde ouvi a
explicação a mana Rita. Um dos convivas, – sempre há indiscretos, – no brinde
que lhes fez aludiu à falta de filhos, dizendo “que Deus lhos negara para que
eles se amassem melhor entre si”. (ASSIS, 1997, p. 10-11)
Não
é a primeira vez que um romance machadiano veicula um elegante mas capcioso
argumento pelo qual se tenta inverter o saldo desfavorável da ausência de
filhos. Já lá o “defunto autor” procurara impingir-nos semelhante falácia, à
guisa de lenitivo para a tristeza final da extinção infrutífera. A manifestação
mesma de melancolia por parte do casal Aguiar à simples alusão à inexistência de
prole – embora silenciosa e singela, como visto acima – é evidência de que o reelaborado
argumento não convence, em que pese à garridice.
A
verdade é que, conquanto sem maior alarde, o velho Aguiar e D. Carmo sofrem, em
razão da infrutuosidade a que se vêem sujeitos, e buscam consolo nos “filhos de
empréstimo” – tendo sido o primeiro deles o afilhado Tristão, que ainda
adolescente seguira para Portugal com a família legítima, deixando-os inconsoláveis;
houve também um pequeno cachorro, que recebia tratamento filial por parte “da
gente Aguiar” e foi sepultado no quintal de casa; e, por fim, Fidélia, em
especial depois que esta se tornara viúva e órfã. Em tudo, porém, paira sempre a
sombria temática da infecundidade ou da paternidade não satisfatoriamente
exercida.
Entretanto, nem só o velho
Aguiar ilustra a temática onipresente da infecundidade masculina. O mesmo
Aires, como já vimos no Esaú e Jacó,
é um homem que enviuvou e envelheceu sem filhos, tendo inumado a esposa na
Europa, quando ainda era diplomata da ativa. Em algumas ocasiões, o Conselheiro
chega a registrar a sua boa resignação e serenidade diante da ausência de
prole, em oposição ao casal Aguiar, que de forma silenciosa, mas transparente,
ressente-se desta condição. Contudo, não é um conformismo absoluto, o de Aires,
como podemos inferir de diversas referências ao assunto, feitas aqui e ali ao
longo do memorial. Se não há em Aires o mesmo nível de frustração de Aguiar, há
ao menos, por influxo deste, algum desejo de paternidade insatisfeita, o que, em
um exemplo, restou assim consignado: “Parece que a gente Aguiar me vai pegando
o gosto de filhos, ou a saudade deles, que é expressão mui engraçada.” (ASSIS,
1997, p. 76).
Para
além desta saudade consciente de filhos não havidos, a problemática da
infecundidade masculina também toca o Conselheiro Aires no âmbito do inconsciente,
como podemos constatar na seguinte passagem, subseqüente a um encontro casual
com crianças na rua:
Dormi pouco, uns
vinte minutos, apenas o bastante para sonhar que todas as crianças deste mundo,
com carga ou sem ela, faziam um grande círculo em volta de mim, e dançavam uma
dança tão alegre que quase estourei de riso. Todas falavam “deste moço que ria
tanto”. (ASSIS, 1997, p. 78)
Mas
a temática da infecundidade masculina não se esgota com os casos de Aguiar e do
Conselheiro Aires. A irmã deste, D. Rita, que no romance anterior formara com
Perpétua uma dupla de viúvas sem rebentos, repete a façanha nesta trama, agora
fazendo par com a jovem e formosa Fidélia (todas as heroínas do romance da
maturidade machadiana são venustas – outra repetição), de tal modo que,
reeditando os acontecimentos da outra obra, temos em um plano subjacente a
informação de dois falecidos maridos atingidos em cheio pela infecundidade masculina
(em nenhum dos entrechos alude-se a enteados de qualquer espécie). Mesmo quem
possui algum filho, ainda assim é relativamente improlífico, pois não conta
mais que um fruto, como é o caso do Desembargador Campos, dos pais de Tristão, dos
pais de Fidélia, sem falar de outras personagens incidentais.
No
entanto, por meio deste romance, Machado de Assis dá mostras de estar
perfeitamente cônscio da recorrência temática e situacional em sua obra, abordando
o assunto nestes termos:
Já lá vão muitas
páginas falei das simetrias que há na vida, citando os casos de Osório e de
Fidélia, ambos com os pais doentes fora daqui, e daqui saindo para eles, cada
um por sua parte. Tudo isso repugna às composições imaginadas, que pedem
variedade e até contradição nos termos. A vida, entretanto, é assim mesmo, uma
repetição de atos e meneios, como nas recepções, comidas, visitas e outros
folgares; nos trabalhos é a mesma cousa. Os sucessos, por mais que o acaso os teça
e desenvolva, saem muita vez iguais no tempo e nas circunstâncias; assim a
história, assim o resto. (ASSIS, 1997, p. 87)
Mais
que apenas revelar pleno conhecimento da presença da repetição no enredo, ou
simplesmente justificá-la, Machado de Assis como que faz dela um dos argumentos
do seu Realismo, um elemento da verossimilhança de sua obra, sendo certo não
haver “nada de novo debaixo do sol”, como igualmente assevera em diversos escritos,
aludindo ao texto do Eclesiastes.
Quanto
ao outro tema querido ao autor do Memorial
de Aires, a comborçaria ou rivalidade fraternal masculina, curiosamente não
é um dos fulcros deste romance, em especial porque a tênue e muda “disputa”
pelo coração de Fidélia, levada a efeito por Osório e Tristão, não possui o
caráter de fraternidade, tampouco o de concomitância, bem tipificados nos
romances precedentes. Com efeito, os pretendentes à mão de Fidélia não possuem
parentesco nem são amigos próximos, tendo sido apenas formalmente apresentados
na noite de “9 de setembro”. Também a ação de ambos é quase que sucessiva,
porquanto o interesse de Tristão só começa a debuxar-se perante o narrador, quando
Osório já fora virtualmente recusado, como podemos observar neste excerto:
O resto é a notícia
de ter chegado Osório, o advogado do Banco do Sul, que foi há tempos ao Recife,
onde o pai estava doente e morreu.
– Voltou triste, e o
luto ainda o faz mais triste, disse Aguiar.
– Será só a morte do
pai? perguntei.
– Que mais pode ser?
– Não me disseram, ou
eu adivinhei que ele andava meio apaixonado por D. Fidélia...?
– Andava, sim, e
talvez mais que meio, explicou Aguiar, mas já lá vai naturalmente.
– Em todo caso não se
lhe declarou?
– Com o gesto, é
possível; ela tacitamente recusou, e foi pena; ambos se merecem.
Aguiar louvou as
qualidades profissionais do moço, a educação e as virtudes. Acreditei tudo,
como era do meu dever, e aliás não tinha razão para duvidar de nada. (...)
Tristão durante esse tempo folheava um livro de gravura.
Digo que eram
gravuras, porque me fui despedir dele, que se levantou logo, com grande
cortesia; mas de longe pensei que fosse o álbum de retratos. Não era; o álbum
estava ao pé, aberto justamente na página em que figuram as duas fotografias de
Carmo e do marido. (ASSIS, 1997, p. 76)
Uma
vez mais, temos o sentimento da finura da composição narrativa, e não será
difícil entrevermos já aí nessa passagem o primeiro vestígio do nascente
interesse de Tristão por Fidélia. Enquanto Aires e Aguiar conversam
despreocupadamente, Tristão folheia “um livro de gravuras”; não estava,
contudo, muito concentrado na leitura, se acaso lia, erguendo-se de imediato
para cumprimentar Aires “com grande cortesia”, tão logo este fez anúncio de
despedida. Podemos depreender daí que Tristão de fato acompanhava com interesse
a palestra do padrinho com o amigo Aires, presa de curiosidade notadamente
quanto à notícia do insucesso do “rival” junto à viúva Noronha. Dissimulava,
naturalmente. A dissimulação não é apanágio exclusivo de Capitu, Virgília e
outras personagens femininas. Mais adiante, após um encontro inopinado na via
pública, essa marca do comportamento de Tristão torna-se mais visível ao
narrador do Memorial de Aires.
Depois, quando nos
separamos na esquina da Rua da Quitanda, entrei a cogitar se ele [Tristão], ao
dar comigo, compôs aquela palavra para o fim de mostrar que, mais que tudo,
admira nela [Fidélia] a arte musical. Pode ser isto; há nele muita compostura e
alguma dissimulação. Não quis parecer admirador de pés bonitos; referiu-se aos
dedos hábeis. Tudo vinha a dar na mesma pessoa. (ASSIS, 1997, p. 86)
Tristão,
sentindo-se provavelmente inseguro quanto ao êxito de sua pretensão no juízo de
Fidélia, dissimula sempre, mas nem tanto que passe despercebido à perspicácia
do narrador, que prossegue o desvelamento da conduta íntima do amigo:
Uma cousa traz outra,
falamos das graças da viúva, da compostura, da discrição, da memória das
viagens, do gosto, dos gestos e creio que dos olhos também. Eu, com certeza,
falei dos olhos, e agora me lembra que ele disse serem justamente lindos e
graves. Opinião ou diversão, acrescentou que os olhos das suas antigas
patrícias eram em geral belos, e falou compridamente de outras damas; assim não
parecia louvar somente a viúva Noronha. (...) E agora que o escrevi confirmo a
impressão que me deixou o rapaz, e foi boa, como a princípio. Talvez ele tenha
alguma dissimulação, além de outros defeitos de sociedade, mas neste mundo a
imperfeição é cousa precisa. (ASSIS, 1997, p. 100-101)
Assim
sucedeu em encontros posteriores de Tristão com Aires – um jogo de
comportamento um tanto mascarado e observação aguda, no qual um disfarça quanto
pode e o outro aos poucos desvela – até que, enfim, sentindo haver reciprocidade
de sentimentos por parte da amada e inexistindo crime ou reproche de sociedade em
uma relação que podia consagrar-se pela Igreja, é chegado o momento de Tristão franquear-se
com o Conselheiro, patenteando a sua paixão pela bela viúva. (Vimos já no Dom Casmurro que é característica das
mais marcantes do narrador machadiano ir às origens mais remotas dos fenômenos
amorosos, mesmo os mais encobertos pela dissimulação, examiná-los ab ovo, desnudá-los a pouco e pouco,
pacientemente, por referências mínimas e laivos por vezes evanescentes, que
passam sem ser notados pelo leitor que não mantiver plenamente viva a chama das
candeias da concentração nos pormenores semeados a espaço com enganosa
aparência de irrelevância). Já então era correspondido e tudo marchava para o
altar.
Decidido
o enlace matrimonial entre Tristão e Fidélia, impõe-se novamente a problemática
da infecundidade masculina. É que o velho Aguiar e D. Carmo alimentam a
esperança de que, com o enlace, Tristão não tornará a Portugal e, por
conseguinte, terão ao pé de si os dois “filhos postiços”. Tristão, contudo,
para além de ter seus genitores residentes na Europa, já lá encetara carreira
política e, cumprida a lua-de-mel e realizadas as visitas de rigor da cortesia
conjugal, para lá parte, levado consigo a esposa, naturalmente. O casal Aguiar,
que principiara a narrativa gozando a presença e o carinho de uma “filha de
empréstimo” e chegou ao meio dela com “dois filhos postiços”, mercê da
inesperada vinda de Tristão ao Brasil, termina-a sozinho, vendo-os embarcar
para Portugal em viagem peremptória. Desfecho merencório a que nem a promessa
de felicidade de Tristão e Fidélia alivia. E cumpre ainda registrar que a obra
encerra-se sem notícias de que Tristão em algum momento tenha tido filhos.
Essa
temática da infecundidade masculina que abre e fecha a obra, aliada à
recorrência de termos tais como “velho”, “saudade” e outros do mesmo campo
semântico, instaura uma leve e prolongada atmosfera taciturna, algo sombria e
pessimista, na qual as personagens arrastam-se lentamente, excluído qualquer
episódio aventuroso. Os próprios nomes de Tristão e de Fidélia intensificam tal
sensação. No caso deste último, casando-se com a fidelidade à memória do marido
morto (com a qual verdadeiramente Tristão teve de disputar a noiva), amplia a
imagem lutuosa já impressa na pouco aliviada negrura indumentária de uma viuvez
de dois anos. Desta forma, não é pequena a melancolia emanada das páginas deste
romance, que somente não é de todo desprovido de lances de bom-humor por causa
da maledicência de Cesária, personagem satélite que faz três ou quatro rápidos
aparecimentos, unicamente voltados a dizer mal do próximo.
Não
é impossível identificar o Conselheiro Aires ou o velho Aguiar com o próprio ficcionista
e D. Carmo com sua falecida esposa, Carolina, como, aliás, têm feito vários
críticos; todavia, a nosso ver, se é possível identificar Machado de Assis com
algo da diegese romanesca, não o identificaríamos com uma personagem específica,
senão com a vasta temática da infecundidade masculina, culminando em extinção
de progênie, de que fora ele mesmo exemplo.
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
A
investigação levada a efeito demonstrou que quatro dos cinco romances
analisados foram tecidos segundo a temática da comborçaria ou rivalidade
fraternal masculina, de modo que este tema, de fato, é recorrente na maturidade
machadiana, tendo atingido um índice de presença de oitenta por cento. Só o Memorial de Aires excetuou-se. Porém,
nenhuma dessas comborçarias foi tratada de maneira igual nas diversas tramas, isso
em face das distinções atinentes ao narrador. Com efeito, observamos a presença
de dois narradores atuando sob focalização autodiegética; dois,
heterodiegética; e um, homodiegética (justamente o do Memorial de Aires).
Os
dois narradores que operaram segundo uma focalização autodiegética foram o das Memórias Póstumas de Brás Cubas e o do Dom Casmurro. A identidade de
focalização que existe entre o narrador desses dois romances, aproximando-os, não
é trivial e prossegue quanto aos demais aspectos narratológicos, pois em ambos
os casos temo-la restritiva, interna (alternando com externa), interventiva e
fixa, de tal maneira que a diferenciação entre ambos ocorre exclusivamente no
tocante ao ponto de vista na comborçaria fraternal masculina – no primeiro o
ponto de vista é o do amante; no segundo, o do marido traído.
No
mais, prevalece análoga identidade entre as Memórias
Póstumas de Brás Cubas e o Dom
Casmurro; e se é verdade que, agindo sob o signo da “angústia da
influência” e da “polêmica velada”, a comborçaria de Brás Cubas e Lobo Neves é
uma resposta de Machado de Assis a O
Primo Basílio, como propõe Razera, a de Bentinho e Escobar não o é menos,
já pela similitude temática e narratológica destes dois romances machadianos, já
porque a heroína deles (Virgília ou Capitu) é bem mais psicologicamente
complexa que Luísa, já, enfim, pela supressão das comuns ocorrências determinantes
da precipitação dos fatos naquele romance lusitano – não há interceptação de
correspondência dos amantes ou intervenção indiscreta de fâmulos do casal
(estes, no Dom Casmurro, mencionam-se
genericamente uma única vez e nem sequer vêm à cena; nas Memórias Póstumas de Brás Cubas, dona Plácida não representa a mais
leve ameaça à “felicidade” dos amantes, antes zelando pela segurança deles). Na
obra de Machado de Assis aqui estudada, o processo de desvendamento do
adultério e dos caminhos e motivos que a ele impelem as mulheres, sobretudo (mas
não só) se a história é narrada do ponto de vista do marido, exige muito mais
argúcia e atenção. Portanto, em Machado de Assis, já não é mais o aventuroso ou
os vislumbres de pormenores de lascívia o que prende e deleita o leitor ou dá elevação
estética à narrativa, senão a montagem mesma do quebra-cabeça das relações humanas
arquitetado pelo ficcionista, com todas as possibilidades de análise dos
caracteres daí advindas, de que o narrador e seu ponto de vista, combinados com
as temáticas reiteradamente tratadas, são a peça-chave.
Constatamos
também que os dois narradores que laboraram segundo uma focalização
heterodiegética foram o do romance Quincas
Borba e o do Esaú e Jacó. Nos
aspectos objetivos analisados, a focalização desses dois narradores foi idêntica,
tendo em vista que, além de heretodiegética, ela foi igualmente interventiva, onisciente,
interna e fixa.
A
simetria entre esses dois romances transcende as especificidades narratológicas
e avança para o tratamento dado à forma de traçar a configuração psicológica
das heroínas, Sofia e Flora, cuja personalidade é diretamente vislumbrada desde
o íntimo pela focalização onisciente e interna; avança também para a temática
da comborçaria ou rivalidade fraternal masculina, uma vez que em ambos ela
permanece no âmbito da emulação e do desejo frustrado, sem haver a consumação
carnal constitutiva da comborçaria típica.
E
onde estaria, pois, a diferença primordial entre estes dois romances, se são
iguais as características objetivas da focalização dos narradores e os temas
centrais sob sua condução? Poderíamos de início pensar que, enquanto o romance Quincas Borba envereda pela problemática
da loucura, Esaú e Jacó entra a
revelar o dualismo insolúvel do ser humano. É uma distinção real, mas ainda
tênue, tendo em vista existir certa dualidade (Rubião/Bonaparte) na loucura de
Rubião, e certo desvario nas alucinações que precederam a morte de Flora. Não
estando aí uma diferenciação forte entre eles, encontramo-la na intensidade ou
variedade de tratamento de aspectos específicos da comborçaria ou rivalidade
fraternal masculina.
Por
um lado, na história de Pedro e Paulo, o aspecto da fraternidade é o mais
intenso dentre os cinco romances considerados, pois ela é a única na qual os
vértices masculinos da comborçaria ou rivalidade são ocupados por dois irmãos,
ainda por cima univitelinos, que se empenham na mais renhida das disputas. Para
além disso, é o único caso em que nenhum dos rivais obtém a posse da mulher
objeto da rivalidade, a qual, não conseguindo decidir-se, arruína-se. Por seu
turno, a narrativa protagonizada por Rubião é a única em que o marido, de
harmonia com a mulher, é quem se presta a embair e ludibriar o rival. De mais a
mais, é também a única em que a mulher sai enganada e virtualmente rejeitada
por um êmulo do marido (caso de Sofia, considerado em relação ao pretendente
Carlos Maria).
Ou
seja, posto que em um primeiro momento esteja clara a existência de semelhanças
estruturais e no tratamento da temática da comborçaria ou rivalidade fraternal
masculina nos romances Quincas Borba
e Esaú e Jacó, é em aspectos importantes
dessa mesma comborçaria frustrada que encontraremos as nuanças mais
significativas para estabelecer a diferenciação entre as duas tramas. Não é que
não existam outras nuanças capazes de diferenciá-las. Existem, mas são secundárias,
fora do eixo central do interesse romanesco.
Quanto
ao único narrador homodiegético, verificamos que este foi o do romance Memorial de Aires. A focalização desse
narrador, além de homodiegética, foi interventiva, restritiva, externa (alternando
com interna) e fixa. Também este foi o único romance a não trazer para o centro
do interesse uma variante da temática específica da comborçaria ou rivalidade
fraternal masculina. Contudo, posto se afaste dos demais romances nestes pontos
relevantes, aproxima-se deles em outros, como, por exemplo, na focalização
interventiva e fixa. De fato, todos os romances machadianos da maturidade
constituem-se segundo essas duas especificidades narratológicas, de modo que esses
aspectos, pela recorrência e ubiqüidade, tornaram-se estigmas do estilo do
ficcionista. Há, porém, um fio por vezes obscuro, outras vezes mais visível,
mas sempre de alta relevância, que cose o Memorial
de Aires aos demais romances machadianos da maturidade, e estes entre si –
é o que veremos a partir de agora, à guisa de encerramento deste trabalho.
Independentemente
da variação de aspectos atinentes ao narrador, à focalização e à temática da
comborçaria ou rivalidade fraternal masculina, cem por cento dos romances do
Machado de Assis maduro são estigmatizados pelas tristes cicatrizes da infecundidade
masculina – a sua grande obsessão. A onipresença dessa temática exerce influxo
direto e decisivo no delineamento do perfil psicológico das suas principais
personagens e, adicionalmente, faz pensar em uma transposição, quiçá sublimativa,
de uma circunstância nodal na vida do escritor, que morrera sem filhos (pois não
os tivera), nem parentes próximos (que os não tinha já). Machado de Assis
perdera a única irmã por volta dos seis anos de idade, a mãe aos dez,
morrendo-lhe igualmente o pai daí a poucos anos, de forma que, tendo chegado
sozinho ao derradeiro estádio da existência, após um longo casamento sereno, porém
improdutivo no particular, o seu falecimento implicou a extinção desse ramo da
família Assis – extinção que se reitera obsessivamente em todos os romances
aqui estudados.
Seja
como for, sublimando ou não uma angústia pessoal, verificamos a procedência da
nossa hipótese de que todos (quanto à infecundidade masculina, o tema obsessivo),
ou quase todos (quanto à comborçaria ou rivalidade fraternal masculina, o tema
recorrente) esses analisados romances de Machado de Assis são estruturados em
função dessa dupla temática, angariando variabilidade em virtude das
especificidades narratológicas, nos seguintes termos: por um lado, a comborçaria
ou rivalidade fraternal masculina é de fato variável em função do narrador, de
modo que, quando a comborçaria é típica, a focalização é autodiegética e restritiva;
quando a comborçaria permanece no âmbito da rivalidade, a focalização é heterodiegética
e onisciente; e quando a comborçaria ou rivalidade fraternal masculina não é
tematizada, a focalização é homodiegética e externa. Por outro lado, a infecundidade
masculina é inopresente e não depende da caracterização do narrador para, ao
final, manifestar-se invariavelmente no plano do protagonismo (sem prejuízo de
manifestar-se também em âmbito secundário). Eis, pois, a senha que a nosso
sentir pode ser consistentemente considerada na proposição de leituras sistemáticas
dessas obras.
Mesmo
não sendo nosso objeto, registramos que a infecundidade feminina também se faz
notar nos romances estudados, mas é subsidiária da masculina, sobretudo se levarmos
em consideração que as duas heroínas das narrativas mais importantes (Virgília
e Capitu) tiveram um filho, não se dando o mesmo com os respectivos heróis. E
se Sofia não os teve, isso é um fato menor, se comparado ao conjunto formado
pelo concurso de Cristiano Palha, Rubião e Quincas Borba. O mesmo se diga do
caso de Flora, sobreposto pela ausência de filhos por parte de todos os seus
pretendentes. Idem, no caso de Fidélia.
O
zombeteiro Brás Cubas, o louco Rubião, o casmurro Bentinho, os desavindos Pedro
e Paulo, o diplomático Aires, o bom Aguiar, o cauteloso Tristão – todo esse
renque de protagonistas, em conjunto com dezenas de outras personagens mais ou
menos secundárias, ao volver da última página do respectivo romance e por mais
destoantes que fossem seus caracteres e interesses, acabaram sem ter havido um
filho que fosse. E nem é só nesta circunstância capital que está a obsessão
machadiana pela infecundidade masculina, pois mesmo quem chegou a tê-los, ainda
assim, no encerrar da narrativa, não raro acabou sem descendentes, como o
ilustra o caso do pai de Flora, que perdeu o único rebento no curso final da
história, ou o caso de Escobar, cujos filhos (Ezequiel e Capituzinha), morrendo
com precocidade, não lograram alcançar a paternidade e, conseqüentemente,
puseram-no no rol dos homens de extinta progênie. E a obsessão não cessa por
aí, porque muitos homens já mortos no início das narrativas, personagens às
vezes apenas aludidas ou a que se dá rápida vida em retrospectos explicativos,
estão nesse rol, a julgar pela extraordinária quantidade de viúvas sem “fruto” nem
enteado existentes nos cinco romances examinados.
De
resto, averiguamos que a partir do Dom
Casmurro o fenômeno da viuvez sem descendentes estará assaz representado no
romance machadiano (conquanto, a nosso ver, permaneça subordinado ao fenômeno
mais geral da infecundidade masculina, sendo uma das facetas por que esta
temática manifesta-se).
E
até mesmo as situações que aparentemente escapam a essa obsessão machadiana,
como a das poucas personagens masculinas que ainda tiveram filhos e conseguiram
fechar o romance sem os perder – a exemplo de Cotrim, cunhado de Brás Cubas; de
Santos, pai dos gêmeos Pedro e Paulo; ou do desembargador Campos, tio de
Fidélia – ainda assim, pelo reduzido da prole, estão indiretamente sujeitas à
obsessão da infecundidade masculina.
Com
efeito, em uma obra realista, era natural terem vindo ao mundo romanesco, em
uma ou outra família aí pintada, um número grande ou maior de rebentos, em
especial se considerarmos a ausência de métodos contraceptivos seguros e o fato
de que, ao tempo em que transcorre a ação de cada história, o número médio[14]
de filhos por homem[15]
era acima de seis, mas a álacre e auspiciosa proliferação de crianças é algo
que simplesmente inexiste na obra da maturidade de Machado de Assis, fazendo
cogitar sobre a qualidade do seu “realismo”, da decantada “retratação fiel da
realidade”, no particular. Aliás, no quesito em enfoque, suas narrativas têm
mais a ver com o século XXI, com sua baixa taxa de natalidade, do que com o
século XIX.
Se
nas Memórias Póstumas de Brás Cubas o
problema da infecundidade masculina acomete primordialmente o protagonista (embora
não apenas ele), no Quincas Borba ela
estende-se e atinge por igual as duas mais importantes personagens masculinas,
além do transposto filósofo de Humanitas (aliás, registremos que todas as personagens
dos romances machadianos da maturidade que se apresentam em mais de uma
narrativa transportam em si a obsessão da infecundidade).
No
entanto, se é da “tinta da melancolia” do “defunto autor” que sai a declaração
mais impactante (a negativa de encerramento), é a partir do Dom Casmurro que essa temática alcança a
seu apogeu, o seu mais largo espectro, pois se de início temos aí o agregado
José Dias, o “tio Cosme” e o finado marido da “prima Justina” ilustrando tal
fenômeno, ao final desta história restam vivas apenas duas personagens com
algum relevo: Sancha e Bentinho, ambos velhos viúvos sem descendentes ou sequer
sobrinhos.
No
mesmo diapasão do Dom Casmurro, os
romances Esaú e Jacó e Memorial de Aires repetem o epílogo improlífico
e tendente ao despovoamento das personagens da ação, tendo em vista que, no
primeiro caso, restam os gêmeos desunidos, os quais têm perspectivas de glórias
mundanas, mas não de casamento fecundo; e, no segundo, com o embarque do casal
Tristão e Fidélia para a Europa (sem indicação ou simples expectativa de
proficuidade conjugal, antes pelo contrário, dado que Fidélia era já uma viúva
sem filhos) restam apenas o Conselheiro Aires, dona Rita e os Aguiares, todos
em idade provecta – sem que nenhum deles possua descendentes.
Tudo
isso faz que os desdobramentos dessa temática sejam de uma inflexível relevância
dramática, não apenas no que diz respeito à ação e à caracterização psicológica
de suas principais personagens, mas também à lenta instauração, na diegese de
todos os romances aqui analisados, de uma vaga e estanha, difusa e brumosa atmosfera
de aniquilamento gradativo, uma espécie de colapso gradual, apocalipse
remanchado, porém em marcha inexorável.
Em
outros termos, por entre uma vasta rede entretecida de ironias, sugestões sutis
e observações agudas do narrador, remoques e digressões sucessivas,
comborçarias vividas ou desejadas por suas personagens de proa, e interesses
vários por elas manifestados – a ubíqua e silenciosa, obsessiva e generalizada infecundidade
masculina (repassada do desencanto e da melancolia que, sendo ironicamente “filhos”
legítimos dessa mesma improficuidade, vão a pouco e pouco brotando e emergindo
das páginas machadianas) conduz morosa e implacavelmente a história rumo ao fim
absoluto.
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[1] Oitava novela da
oitava jornada. Spinelloccio di Tavena e Zeppa di Mino eram vizinhos e mantinham
boa fraternidade. Spinelloccio seduziu a mulher do amigo, induzindo-a ao adultério.
Zeppa, descobrindo a traição da mulher e do amigo, pagou na mesma moeda,
deitando-se com a mulher do primeiro. No final, “cada uma daquelas duas
mulheres teve dois maridos, e cada um daqueles dois homens teve duas esposas”.
(BOCCACCIO, 1996, p. 583)
[2] Ressalvamos, no
entanto, a existência de ramificações da literatura – com destaque para a prosa
romanesca da Escola Naturalista – que almejam a expressão de aspectos externos
aos sujeitos congregados em sociedades complexas, procurando descrever “cientificamente”
a engrenagem social (posto partindo de determinismos preconcebidos) em que
participa o homem. Porém, em quase toda a poesia e na maior parte da prosa
literária prevalece a expressão dos elementos internos, constituintes da
subjetividade individual que se projeta difusamente na coletividade.
[3] PÓLVORA, Hélio. Machado de Assis. Disponível em: http://www.vidaslusofonas.pt/machado_de_assis.htm›.
Acesso em: 11 de set. 2012.
[4] Sem possibilidade de
divórcio.
[5] Não custa lembrar
que, no trabalho de crítica literária, a concretude a ser observada e
investigada é basicamente a obra literária em si; por isso é que nenhum crítico
sério, analisando A Metamorfose de Kafka, dirá que a mutação
de homem em inseto, tal como lá posta, não merece credibilidade. Merece-a
porque isso é verdade dentro da lógica interna dessa obra.
[6] Com o que ela pensa
sobre a credibilidade dos advogados, é no mínimo inusitado que se ponha em tal
posição.
[7] Na quarta e última
parte do romance Senhora, o narrador
heterodiegético alencariano menciona ao menos duas vezes a tragédia de
Desdêmona e Otelo, de cambulhada com o problema geral do ciúme. Partindo-se
tão-somente dessas duas alusões, seria lícito afirmar, para em seguida ir
torcendo os seus demais elementos até parecer afiná-la com semelhante prejuízo,
que a obra-prima de José de Alencar é apenas e tão-somente um “estudo do ciúme”,
como diz imprudentemente Silviano Santiago – ou transposição da tragédia de Shakespeare,
como fizera Caldwell com o Dom Casmurro?
[8] Que outros preferem
chamar de “flashback” ou “analepse”.
[9] De novo a valsa. Foi
em uma dança assim que Brás Cubas sondara a receptividade de Virgília. Também
José de Alencar, em Senhora, dá ampla
atenção à cena em que Aurélia Camargo e Fernando Seixas dançam uma valsa,
quando ainda não consumaram o casamento, culminando em uma síncope. Em Casa de Pensão, contrariando a vontade
do marido, Hortênsia dança uma valsa impetuosa com Amâncio, quase sendo
arrastada depois ao adultério. Castro Alves, por sua vez, toma a valsa como
motivo condutor de todo um belíssimo poema (O
Laço de Fita). Casimiro de Abreu, igualmente, lavrou um poema em função
dessa temática (A Valsa). Seria o
caso de investigar um pouco mais a presença da valsa da literatura brasileira
do século XIX, quando era outro o recato e outra a restrição ao contato físico
entre cavalheiros e damas.
[10] Por exemplo, no
conto Missa do Galo há referência não
desfavorável à obra A Moreninha, de
Macedo.
[11] Chegando ao ponto de
escolhê-lo para patrono de sua cadeira na Academia Brasileira de Letras, que
acabara de fundar. De mais a mais, Machado de Assis assimila e aproveita de
José de Alencar, com adaptações, até mesmo certas figuras retóricas ou
lingüísticas, como, verbi gratia, a
famosa “tinta de melancolia”, presente nos romances Senhora (ALENCAR, 1997, p. 23) e Sonhos d’Ouro (ALENCAR, s/d, p. 128).
[12] Vide nota 1
[13] O Conselheiro Aires,
embora tome parte relevante nas tramas, não é o protagonista do Memorial de Aires, como já não o fora do
Esaú e Jacó. Todavia, o somatório
dessas participações, não o tornando protagonista de nenhum romance em
particular, torna-o uma espécie de protagonista
machadiano.
[14] Segundo o Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatísticas – IBGE, a taxa de fecundidade total da
mulher no Brasil era de 6,2 em 1950; 5,8 em 1970; 2,9 em 1991 e 1,9 em 2010.
Não há dados sistemáticos para o século XIX, mas decerto não era inferior à de
1950. Disponível em ‹http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/imprensa/ppts/00000008473104122012315727483985.pdf›.
Acesso em: 19 set. 2013.
[15] Entendemos que, não
havendo uma disparidade populacional muito significativa entre o número de
mulheres e homens adultos, a taxa média de fecundidade total válida para as mulheres,
fornecida pelo IBGE, é também aplicável aos homens.