quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

O CICLO LITERÁRIO DA SECA NORDESTINA: UMA ANÁLISE DE "O QUINZE"


 

Anderson Cássio de Oliveira Lopes[1]

 

 

Resumo

 

Neste artigo, divulga-se um inquérito sobre algumas possibilidades de construção de sentido literário, possibilidades essas amparadas no exame da obra O Quinze, de Rachel de Queiroz, com observância da estrutura narrativa, do tempo, do espaço, da ação, da estética literária, da tensão textual, das evocações produzidas pela escolha vocabular e do comportamento e psicologia das personagens. Para além disso, discute-se também o ciclo da seca na literatura produzida no Nordeste brasileiro do final do século XIX até meados do XX.

 

Palavras-chave. Romance. Construção de sentido. Ciclo da Seca. O Quinze.

 

Introdução

 

A temática da seca que sempre assolou a região Nordeste do Brasil é, ao menos desde o final do século XIX, um filão bastante explorado pelos escritores ali nascidos ou residentes. De fato, embora muitos estudiosos da nossa literatura atribuam ao romance A Bagaceira, de autoria de José Américo de Almeida e cuja publicação ocorrera em 1928, o posto de obra “inaugural” daquilo que se convencionou denominar “o ciclo da seca” nos romances nordestinos, é possível retroagir um pouco mais e situar neste posto o livro Luzia-Homem, de Domingos Olímpio, obra de cunho naturalista vinda a lume em 1903 e em cuja ação retrata-se uma grande seca ocorrida em 1878. De qualquer sorte, a partir de 1930, ao dar O Quinze ao prelo, Rachel de Queiroz insere-se nesta tradição (que culminará no reverenciado Vidas Secas, de Graciliano Ramos), transpondo para a literatura o drama do sertanejo em sua luta ingente e inglória contra a agrestia do solo castigado pela escassez das chuvas, a qual tradição permeará boa parte de sua produção literária, inclusive seu último romance, o monumental Memorial de Maria Moura.

Escritora prolífica e precoce, Rachel de Queiroz publicou dezenas de obras, transitando pelo romance, o conto, o jornalismo, a crônica, a literatura infantil; não contava sequer vinte anos completos (nascera em 17 de novembro de 1910), quando da impressão e divulgação de O Quinze; e transpusera já a fronteira dos oitenta anos de idade, quando, em 1992, publicou o Memorial de Maria Moura, com grande êxito editorial e também televisivo, tendo em vista que esta obra foi ulteriormente adaptada pela Rede Globo de Televisão e apresentada sob o formato de minissérie brasileira.

Dentre essa vasta produção, este artigo concentrar-se-á na análise de O Quinze, obra de estreia na qual, entretanto, vislumbra-se o estilo sóbrio de quem, ainda adolescente, escrevia com surpreendente maturidade.

 

1. A diegese de O Quinze

 

O romance é estruturado a partir de duas ações paralelas, tendo a grande seca de 1915 como pano de fundo e também como mola propulsora: por um lado, a ação mais romanesca envolvendo Vicente e Conceição; por outro, o propriamente dito drama da seca, no qual se vê engolfada a família de Chico Bento, destroçada aos poucos nas estradas em demanda do litoral – um filho morto por comer, no desespero da fome, uma raiz venenosa; outro filho que foge com estranhos; a cunhada, moça pudica e de caráter impoluto, que é entregue à mercê da sorte e cai na mais lamentável das misérias.

A narrativa é em terceira pessoa, tecida por um narrador onisciente, heterodiegético. A focalização não é fixa, mas múltipla ou variada, incidindo ora sobre a personagem Vicente, ora sobre Conceição e ora sobre a família de Chico Bento. Além disso, o narrador alterna a focalização externa (em que revela aspectos exteriores das personagens) com a focalização interna, na qual devassa a intimidade dos pensamentos e motivações das personagens. Ainda no pertinente à focalização, esta não é interventiva e sim neutral. Para ilustrar algumas das anteditas especificidades do narrador, vejam-se os seguintes excertos:

 

– Esta menina tem umas idéias!

Estaria com razão a avó? Porque, de fato, Conceição talvez tivesse umas idéias; escrevia um livro sobre pedagogia, rabiscara dois sonetos (...) chegara a arriscar umas leituras socialistas, e justamente dessas leituras é que lhe saíam as piores das tais idéias, estranhas e absurdas à avó. (p. 14)

(...)

Conceição, ante aquela ouvinte inesperada, tentou fazer uma síntese do tema da obra, procurando ingenuamente encaminhar a avó para suas tais idéias.

– Trata da questão feminina, da situação da mulher na sociedade, dos direitos maternais, do problema... (p.131)

 

Observa-se que há também o recurso ao discurso direto, por cujo meio a personagem expressa sua fala sem intermediação do narrador onisciente. Conceição é de logo apresentada como uma heroína diferente, porque versada em livros e teorias em voga no tempo, mais pertinentes ao universo masculino que ao feminino. Duas vezes o narrador crava e destaca o termo “idéias”, numa demonstração de que a personagem em foco guiar-se-á designadamente sob o domínio de uma ideologia. Esse viés meio intelectual, meio socialista e feminista, fora dos padrões e do que se esperava então de uma rapariga casadoira, será um dos motivos condutores da ação desta personagem e de sua relação com os retirantes e com o primo Vicente. Este, por sua vez, é um homem rústico, pouco afeito aos estudos, preferindo a vida ao ar livre do sertão. Sentia intuitivamente o problema da padronização de consciências, a doutrinação dos alunos pelo professor, doutrinação mutiladora da liberdade mais cara ao homem civilizado – a liberdade de pensamento – e tudo isso o incompatibilizara com os bancos universitários e fizera-o voltar-se para realidade concreta do espaço em que nascera e crescera, a vida livre e laboriosa dos campos, atuando e suando a camisa como vaqueiro das propriedades da família, ao contrário de Paulo, o irmão doutor, que prefere seguir a carreira jurídica, atendendo, aliás, aos anseios paternos. Esta faceta da personalidade de Vicente, de envolta com uma crítica (hoje talvez ainda mais válida do que ao tempo da publicação da obra) contra as instituições superiores de ensino, pode ser observada nestas passagens:

 

E o seu esforço constante, sua energia, sua saúde, e sua alma que nunca suportou a servidão a uma disciplina ou a um professor, que não admitia que o mandassem agir e que o mandassem pensar... não valeriam muito mais que um interesse estéril de juristas por abstrações, ou o quase culto do servilismo em que o Paulo se comprazia, quando estudante, servilismo de aluno pelo mestre (...) Então, ser superior é renunciar ao seu feitio e à sua vontade, e, recortando todo o excesso de personalidade, amoldar-se à forma comum dos outros? (p.47)

 

Vicente é, por assim dizer, insubmisso: repugna-o o comportamento serviçal do aluno para com o professor, a repetição de ideias e fórmulas, não acatando a padronização a que as instituições superiores de ensino, pelas mãos de seus “doutores”, procuram submeter os acadêmicos (muito embora o discurso da “liberdade” nunca se ausente); enfim, Vicente não renuncia à mais relevante de todas as liberdades,  que é a de pensar por sua conta, não obedecendo senão à própria consciência e razão. Abandona, pois, o estudo formal e se transfigura posteriormente no verdadeiro arrimo dos pais, uma vez que Paulo, já magistrado e casado, mantém-se distante e está perdido para eles.

Para além disso, Vicente é pintado com muitas das cores que caracterizavam os antigos heróis românticos: forte, belo, esbelto, correto, corajoso, justo, sincero em suas afeições e absolutamente incapaz de praticar qualquer ato moralmente atacável. No entanto, há em Vicente muito daquilo que se costuma chamar “conservadorismo”, ao passo que Conceição seria, até mesmo em virtude de sua formação intelectual, uma mulher “progressista”, sem dúvida à frente do seu tempo, uma das razões pelas quais o diálogo dos dois permanecerá infrutífero, embora a mútua afeição entre ambos aflorasse desde cedo e uma atração quase irresistível os aproximasse. Porém, a seca e a agrestia do sertão, os ciúmes mal resolvidos, o abismo cavado por mundividências tão opostas e em rota de colisão (como mostra, aliás, a reflexão racional de Conceição) – tudo pode ter concorrido para obstar de vez às veleidades do coração.

Veja-se a conversa mantida por ambos à página 19 (denunciadora de um interesse mútuo) e a leitura dos pensamentos de Vicente, feita pelo narrador às folhas 48 e 49 (reveladora dos sentimentos e aspirações do rapaz relativamente à prima Conceição):

 

Dona Inácia saiu, arrastando as chinelas. Vicente virou-se para a prima:

– Domingo atrasado as meninas cansaram de esperar por você!

– Eu já ia lhe falar nisso. É porque não tive quem fosse comigo. Contava que Mãe Nácia quisesse ir na cadeirinha...

– Pois, no outro domingo, venho buscá-la. Pra você não enganar mais a gente.

– Você? Qual! É uma maçada muito grande para quem vive tão ocupado... Só tem tempo de pensar no trabalho... (p.19).

(...)

Só Conceição, com o brilho de sua graça, alumiava e floria com um encanto novo a rudeza de sua vida (p.48).

(...)

E seduzia-o mais que tudo a novidade, o gosto de desconhecido que lhe traria a conquista de Conceição, sempre considerada superior no meio das outras, e que se destacava entre elas como um lustro de seda dentro de um confuso montão de trapos de chita.

No entanto, (...) separava-os a agressiva miséria de um ano de seca; (p.49).

 

Destaca-se também a beleza metafórica da linguagem impressa em alguns pontos da obra, como na passagem acima, em que, para fazer ressaltar os atributos de Conceição ante as demais moças, o narrador traz, para confronto, a imagem do “lustro de seda” e do “montão de trapos de chita”.

No entanto, de uma maneira geral, prevalece neste romance um tom de simplicidade expressiva, uma linguagem sem ornados, pouco adjetivada e mais substantiva, sobressaindo a sobriedade e a ausência de sentimentalismo gratuito, ainda que descreva cenas pungentes, sensações agudas, e trate das angústias de uma estiagem devastadora, a disseminar a miséria, o desespero e a morte. Exemplifica-o a comovente narrativa em derredor de Chico Bento e família:

 

Saída a última rês, Chico Bento bateu os paus na porteira e foi caminhando devagar, atrás do lento caminhar do gado, que marchava à toa, parando às vezes, e pondo no pasto seco os olhos tristes, como numa agudeza de desesperança.

Algumas reses, sem ir mais longe, começava a babujar a poeira do panasco que ainda palhetava o chão nas clareiras da caatinga.

Outras, mais tenazes, seguiam cabisbaixas, na mesma marcha pensativa, a cauda abanando lentamente as ancas descarnadas. (p.24).

 

Aqui, no momento dramático (no sentido de grande comoção) em que Chico Bento é obrigado a desfazer-se do rebanho, pela carência de recursos e meios de subsistência, a linguagem, embora repassada de melancolia e sentimento, mantém o tom de sobriedade, sem degenerar em pieguices.

Chico Bento é o vaqueiro de uma propriedade rural vizinha à da família de Vicente e recebe dos patrões ordens para, não havendo chuvas até o dia de São José, abrir as porteiras dos currais e soltar o gado, ficando, outrossim, dispensado do serviço da fazenda. Afeiçoados aos animais, o vaqueiro e a família sofrem ao soltá-los à própria sorte, sendo quase certo que todas as reses encontrariam a morte por sede ou inanição. Momento agudo, pois o mesmo Chico Bento e família, desempregados, teriam que emigrar, enfrentado no caminho as terríveis vicissitudes que acossam os retirantes sertanejos, a pisar o chão estorricado, a suportar a sede, a fome e toda casta de adversidades impostas pela miséria. Eis algumas passagens significativas:

 

Agora, ao Chico Bento, como único recurso, só restava arribar. Sem legume, sem serviço, sem meios de nenhuma espécie, não havia de ficar morrendo de fome, enquanto a seca durasse (p.31).

(...)

Só ele, a mulher, a cunhada, e cinco filhos pequenos. (p.34)

(...)

Um dos pequenos, sentado numa trave, chupando o dedo, olhava o irmão. E o Pedro, o mais velho, do lado oposto, de vez em quando tangia com a mão alguma mosca que tentava pousar no rosto do doentinho. A criança era só osso e pele: o relevo do ventre inchado formava quase um aleijão naquela magreza, esticando o couro seco de defunto, empretecido e malcheiroso. (p.60)

 

Como visto na citação da página 60, a autora é competente na exploração de imagens literárias de beleza simultaneamente singela e pungente, como o realce que consegue dar à emaciação da criança faminta e doente ou à imagem da mosca que, irritante, procura pouso no rosto descarnado do moribundo, mas é enxotada pelo irmão maior.

Depois de uma excruciante superposição de desares, o que restou da família de Chico Bento chega a um Campo de Concentração na capital, onde estão reunidas algumas centenas de refugiados e retirantes. Conceição, com a boa-vontade extremada das heroínas, presta o máximo possível de assistência voluntária aos desvalidos (notadamente à gente de Chico Bento, de quem é comadre e do qual adota um dos meninos, seu afilhado), secundando a ação governamental. Aliás, não há no romance crítica contra o governo, que aparece adotando as medidas cabíveis a fim de minorar quanto possível o sofrimento que se abatera sobre a população (“ – Ajudar, o governo ajuda. O preposto é que é um ratuíno...” p.35). Somente há crítica contrária a um ou outro preposto do governo, que, à revelia das autoridades, tirava algum sinistro proveito pessoal da terrível calamidade – alguns homens não perdem mesmo a oportunidade de devorar seu semelhante, homo homini lupus. Enfim, é ainda o governo quem fornece, a instâncias de Conceição, os bilhetes de passagem de navio para São Paulo, para onde seguem Chico Bento, a esposa e os dois filhos remanescentes, em busca de melhores dias.

O espaço literário desta história é basicamente geográfico; não funciona, porém, apenas como pano de fundo, ou substrato de cena, pois também exerce influência determinante no comportamento das personagens, já que a desolação do ambiente ressequido é, segundo afirmação inicial do narrador, um dos fatores que fazem gorar o amor surgido entre Conceição e Vicente. Além de alguns recintos domésticos ligados a Conceição, Chico Bento ou Vicente, o espaço do romance espalha-se pelos sertões áridos, cidades, estradas, chegando ao litoral, aos Campos de Concentração de retirantes estabelecidos em Fortaleza, capital do Estado do Ceará.

 

Em toda a extensão da vista, nem uma outra árvore surgia. Só aquele velho juazeiro, devastado e espinhento, verdejava a copa hospitaleira na desolação cor de cinza da paisagem”. (p.43)

(...)

Conceição atravessava muito depressa o Campo de Concentração. Às vezes uma voz atalhava:

– Dona, uma esmolinha...” (p.61)

 

A par do espaço geográfico, tem-se o tempo diegético cronológico, inscrito no ritmo da passagem, relativamente bem marcada, dos meses e estações do ano. O tempo literário em O Quinze transcorre numa narrativa bastante linear sobre a prolongada estiagem verificada no ano de 1915, com o foco narrativo debruçando-se com alternância entre a peregrinação da família de Chico Bento e o amor infecundo de Vicente e Conceição. Esta linearidade, tão inequívoca ao longo de toda a trama, é, entretanto, arranhada numa passagem singular que traz um devaneio, um cismar de Conceição, durante o qual, num flashback (ou analepse) narrado entre as páginas 21 e 23, ela recorda-se de eventos antigos envolvendo a si e a Vicente:

 

Todo o dia a cavalo, trabalhando, alegre e dedicado, Vicente sempre fora assim, amigo do mato, do sertão, de tudo o que era inculto e rude. Sempre o conhecera querendo ser vaqueiro como um caboclo desambicioso, apesar do desgosto que com isso sentia a gente dele. E a moça lembrou-se de certa vez, em casa do Major, no dia em que se inaugurou o gramofone... (p.21).

(...)

Dona Inácia interrompeu a cisma da neta: (p.23)

 

É um momento em que Conceição mergulha em suas memórias. Terá dado ensejo ao tempo psicológico? Ouçamos a lição de Vítor Manuel de Aguiar e Silva, a propósito do time of mind de Virginia Woolf:

 

Esta temporalidade, refractária à linearidade cronológica, heteromórfica em relação ao tempo do calendário e do relógio, é entretecida num presente que ora se afunda na memória, muitas vezes involuntária, ora se projecta no futuro, ora pára e se esvazia. (Silva, 2010, p. 747).

 

Embora Conceição, na passagem citada, “afunde na memória”, este é um instante insular no romance, incapaz de, por si só, fazer decretar-se a existência de um tempo diegético psicológico em O Quinze. A caracterização deste tipo de tempo exige, segundo entendemos o ensinamento de Aguiar e Silva, uma predominância do presente, oscilando com mergulho memorial, com a projeção no futuro e com a paralisia e o consectário esvaziamento do mesmo presente.  Não é o que acontece na obra examinada, na qual a cronologia temporal, avançando de braços dados com o agravamento da seca – dia após dia, semana após semana, mês após mês – mostra-se hegemônica em sua linearidade de tempo cronológico, em especial porque a imersão na memória é bem demarcada no texto, não havendo dificuldade para o reconhecimento do seu início e do seu final, de modo que resta perfeitamente preservada a cronologia diegética e, portanto, rechaçada qualquer anacronia perturbadora da medição temporal.

 

2. Amor e ideologia social em O Quinze

 

Como dito, o amor de Vicente e Conceição é improlífico e para explicá-lo o narrador apresentada basicamente três razões.

A primeira delas é a seca, como afirmado nesta já citada passagem da página 49: “No entanto, (...) separava-os a agressiva miséria de um ano de seca”. Neste caso, todo o romance poderia ser visto como uma vasta alegoria da improficuidade da Grande Seca, a qual, a incidir inexoravelmente sobre as terras sertanejas e os corações humanos, cercear-lhes-ia a fecundidade e, por consequência, far-lhes-ia emurchecer tanto os frutos do labor, quanto os do amor. Esta explicação, porém, falha, porque, conquanto sofressem os reveses da seca, sofreram-nos menos intensamente que os retirantes sem outros meios. Ora, Vicente e Conceição pertencem a famílias de proprietários que, mesmo não sendo milionários, tampouco são pobres; mesmo amargando perdas, não alteraram substancialmente o seu modo de vida entre remediado e abastado. De resto, uma irmã de Vicente casa-se pouco depois de passada a seca, comprovando a rápida retomada da normalidade social no que toca a essas famílias de proprietários.

A segunda explicação para o aborto dos sentimentos de Vicente e Conceição reside nos ciúmes da moça, fundados em boato segundo o qual Vicente teria um “caso” com a mulata Zefinha. Boato sem fundamento, disseminado pela malícia de uma retirante albergada num campo de concentração, ex-trabalhadora nas terras da família de Vicente, a qual de lá saíra atraída pela notícia de que, na capital do estado, o governo dava comida e boa vida aos refugiados... Não disse positivamente nada, apenas fizera uma insinuação leve, porém insidiosa. Não seria difícil tirar a história a limpo, mas Conceição preferiu receber o primo com frieza, quando este foi visitá-la à capital; e mesmo diante da naturalidade de Vicente, o qual, “com um gesto inocente” (p.82), confirmou que a antedita mulata cuidava de sua roupa, Conceição tratou-o com um álgido distanciamento, selando, assim, o destino de ambos.

A terceira explicação é a incompatibilidade ideológica das personagens, explicitada logo após a visita de Vicente a Conceição, na capital, quando o narrador onisciente dar a conhecer as reflexões da moça, sobretudo esta parte:

 

Num relevo mais forte, tão forte quanto nunca o sentira, foi-lhe aparecendo a diferença que havia entre ambos, de gostos, de tendências, de vida.

O seu pensamento, que até há pouco se dirigia ao primo como a um fim natural e feliz, esbarrou nessa encruzilhada difícil e não soube ir adiante. (p.84-85)

(...)

Pensou que, mesmo o encanto poderoso que a sadia força dele exercia nela, não preencheria a tremenda largura que os separava.

Já agora, o caso da Zefinha lhe parecia mesquinho e sem importância.

Qualquer coisa maior se cavava entre os dois. (p.86)

 

Enquanto Vicente engolfa-se em certa taciturnidade, sem atinar com as razões pelas quais não se consuma o seu amor pela prima, esta cogita mui racionalmente acerca da situação de ambos: ele um simples vaqueiro meio rude e pouco simpatizante de livros, embora portador de excelentes qualidades morais e físicas, ao passo que ela, intelectualizada e adepta de ideologias refratárias ao amor romântico e mesmo ao casamento enquanto instituição do tempo – como são as teorias socialistas e feministas – compreende em plenitude o tipo de abismo que os distancia. Refletindo à luz de sua formação intelectual, conclui Conceição que as diferenças existentes, no plano ideológico, entre ela e Vicente sobrepõem-se ao afeto e ao desejo dos familiares de vê-los casados e tocando para adiante uma vida feliz e comum, como tantas outras, a exemplo do que sucede com Lurdinha, irmã de Vicente e cuja felicidade conjugal de certa maneira impressiona Conceição. Sabe-se que as ideologias, de um modo geral, são bastante absorventes do espírito, sobretudo aquelas conexas ao socialismo (como o feminismo, o africanismo e outras); são uma nova pele, um leitmotiv pelo qual se vive e, no limite, mata-se ou morre-se. À força de embrenhar-se em leitura de substrato socialista e feminista, Conceição deixa-se eivar, incompatibilizando-se com a vida de esposa naquela sociedade tradicional, que reservava à mulher um papel certo e assaz adstrito aos círculos familiares. Os ciúmes anteriormente experimentados por Conceição deixam, assim, de fazer qualquer sentido, quando algo muito maior e mais poderoso – uma barreira ideológica de dificílima transposição – apresenta-se com clareza diante de seus olhos, sufocando as veleidades amorosas que lhe inspirara o primo e tudo o mais que não estivesse em sintonia com a mundividência que lhe adviera das leituras socialista e feminista que fora realizando à revelia da avó, que as estranhava. Assim, Conceição asfixia, inclusive, o amor em sentido abstrato, o amor em si mesmo, enquanto valor simbólico construído, desejado e milenarmente enaltecido pela Civilização. Eis o que diz Conceição, interpelada a propósito do mais decantado dos sentimentos:

 

– Ora o amor!... Essa história de amor, absoluto e incoerente, é muito difícil de achar... Eu, pelo menos nunca o vi... O que vejo, por aí, é um instinto de aproximação muito obscuro e tímido, a que a gente obedece conforme as conveniências... Aliás, não falo por mim... Que eu, nem esse instinto... Tenho a certeza de que nasci para viver só... (pp.155-156)

 

Para o materialista – e o socialista não é outra coisa – um ente impalpável, como o Amor, é de difícil compreensão (quando não é motivo de ostensivo desprezo), o que implica dizer que raramente podem observá-lo, menos ainda senti-lo. Movendo-se, pois, Conceição neste cenário, era de fato improvável que algo além do instinto sexual adentrasse sua órbita de consideração e é notadamente por isso que se percebe desajustada à sociedade comum e natural da avó e do primo, contrapondo-se-lhes às aspirações e aos desígnios, sobretudo se eram matrimoniais.

 

3. Conclusão

 

Ante todo o exposto, temos que O Quinze é um romance sobre uma dupla seca: uma que, enquanto fenômeno natural contumaz do Nordeste do Brasil, resseca a terra, destrói lavouras, dizima criações, levando sofrimento e morte às famílias sertanejas, aqui personificadas na figura de Chico Bento e os seus; e outra que, enquanto fenômeno da vida em sociedade, ligado ao estabelecimento das ideologias vinculadas ao socialismo ou dele caudatárias, resseca os corações, destrói sentimentos romanticamente amorosos, dizima projetos familiares, conduzindo à frustração, à solitude e à infecundidade os seus prosélitos, aqui representados por Conceição. O romance encerra-se com uma forte antítese entre alegria e tristeza, plasmada na dicotomia da terra a que torna a esperança vital e do sentimento que a perde. Encerra-se, pois, com a grave e melancólica seca do coração, mais trágica que a do chão: às primeiras chuvas, a terra embebe-se na nova seiva, reveste-se de promessas, a vida volta a pulsar no sertão outrora ressequido; porém, ao peito dessecado pelo ideário “social”, não há chuva nem seiva sentimentais que lhe restituam o viço da vida e a capacidade de amar e deixar-se amar com inteireza.


REFERÊNCIA

 

 

QUEIROZ, Rachel de. O Quinze. 77. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004.

SILVA, Vítor Manuel de Aguiar e. Teoria da Literatura. 8. ed. 1. vol. Coimbra: Almedina, 2010.



 
[1] Graduando do curso de Letras da Universidade do Estado da Bahia – UNEB, Campus IX.


segunda-feira, 16 de abril de 2012

BREVE COMENTÁRIO A PROPÓSITO DO ROMANCE HISTÓRICO, COM FOCO NA "HISTÓRIA DO CERCO DE LISBOA", DE JOSÉ SARAMAGO





Anderson Cássio de Oliveira Lopes





O chamado romance histórico é aquele que, como a designação mesma já induz a perceber, traz para a prosa literária um fato histórico ou, o que é mais comum, o tem como pano de fundo de um enredo ficcional.
Tradicionalmente, os romancistas eram bastante escrupulosos ao arquitetar romances desse gênero, adotando sempre a postura de rigor em face da verdade histórica estabelecida. Assim são, por exemplo, as obras de Alexandre Herculano. Em Eurico, o Presbítero, a ação transcorre num momento histórico sinistro para a cristandade ibérica, quando os islamitas de África invadem grande parte da península e aí instalam um domínio que perdurará por até sete séculos, a depender da cidade considerada; aqui a ficção – centrada, sobretudo, no amor infeliz e algo trágico das personagens Eurico e Hermengarda – prima por não desmentir fatos ou caracteres gerais do arcabouço histórico em que inserida. Análogo procedimento preside à trama do romance O Bobo, com a única diferença residindo na circunstância de que, neste, o pano de fundo histórico é a pugna familiar que culmina na criação do reino de Portugal, a partir do Condado Portucalense, com o cetro à mão de D. Afonso Henriques. Iguais dizeres cabem ao romance O monge de Cister, cujo lastro histórico são os anos subsequentes à Revolução de Avis, que coroa D. João I de Portugal, mestre de Avis, contra as pretensões legitimistas espanholas. Neste cenário, não é difícil vislumbrar que Herculano esforça-se por não contrariar a tradição histórica acerca dos fatos sobre os quais constrói a sua ficção.
Modernamente, todavia, a literatura em derredor de fatos e circunstâncias históricas transformou-se, haja vista que os autores já não revelam a primitiva ânsia de respeitar mui escrupulosamente a verdade histórica, adaptando-a, criticando-a ou mesmo subvertendo-a, ao sabor de sua imaginação. É o caso de José Saramago, o qual, embora ainda empregue a História como lastro para o enredo de alguns de seus romances, fantasia acerca dos mesmos fatos, contesta-os, critica-os, reescreve-os, de tal modo que esse lastro passa a ser um fio por vezes assaz tênue, pelo qual não sem dificuldade se distingue ficção literária de História. Ilustremo-lo com a obra História do Cerco de Lisboa, desse autor.
Neste romance, a ação flui com simultaneidade no presente (final do século XX) e no pretérito. A ação presente é marcada pela narrativa a propósito do corretor de livros Raimundo Silva e, enquanto seus passos são acompanhados pelo narrador, a partir do momento em que Raimundo faz a revisão de um livro sobre o famoso cerco de Lisboa, há uma predominância do tempo cronológico. No que concerne, porém, à narração remetente ao passado histórico (na qual o tempo literário é basicamente psicológico, transcorrendo em idas e vindas intermitentes, ao sabor dos pensamentos, lembranças e apontamentos de Raimundo Silva), focam-se os dias relativos ao sítio e tomada da cidade Lisboa aos muçulmanos pelos portugueses, então liderados por Afonso Henriques, dito D. Afonso I de Portugal. Esse tempo psicológico é complexo justamente porque não flui com a regularidade de um relógio ou calendário, mas sem linearidade e aos saltos. Este procedimento, contudo, nem sempre significa andamento rápido, pois esses saltos não raro têm como destino o mesmo ponto de partida, retomado inúmeras vezes, como ocorrido na altura em que a personagem Mogueime falará pela primeira vez à personagem Ouroana, iniciado aproximadamente à página 226 e retomado quase nos mesmos termos à página 328, dando ao leitor aquele esquisito estranhamento característico do déjà vu, embora sem as mesmas razões, porquanto no romance o diálogo era realmente “já visto”, o que não ocorre no déjà vu, pois neste fenômeno, apensar da forte sensação de já ter visto e vivido aquilo, temos a certeza de que tal fato nunca acontecera.
Saramago, estabelecendo no romance uma contraposição entre tempo cronológico e tempo psicológico, reforça a oposição essencial entre presente e pretérito. Por outros termos, um dos pontos altos da criação literário de Saramago, na trama ora sob exame, manifesta-se na requintada proporção temporal, em que, por um lado, o tempo cronológico está para a ação presente à mesma medida que, por outro lado, o tempo psicológico está para o passado. E nem poderia ser doutra forma, uma vez que o passado subsiste apenas como concepção mental do ser humano. Toda a nossa relação com o pretérito é intelectual e, portanto, psicológica, de modo que o passado é função de recordações desde o presente. Só o que há, em verdade, é o presente, o agora, este instante que passa continuamente e no qual tudo se realiza.
Impende registrar que não se explicita a época exata em que transcorre a ação presente do romance, mas deduz-se, pela menção a tecnologias da era da computação, que se trata do quartel final do século XX, o que pode ser comprovado pela seguinte passagem:

...estão faltando no seu tombo as tecnologias da informática, mas o dinheiro, desgraçadamente, não chega a tudo, e este ofício, é altura de dizê-lo, inclui-se entre os mais mal pagos do orbe. Um dia, mas Alá é maior, qualquer corrector de livros terá ao seu dispor um terminal de computador... (p. 26).

O narrador do romance é de terceira pessoa e, por conhecer os passos e os pensamentos das personagens, pode ser caracterizado como onisciente, posto denegue essa onisciência em passagens estilizadas e reflexivas, como a seguinte:

...com os lençóis plenamente expostos e já frios, sem vestígios da inquieta insónia, menos ainda dos sonhos que o exausto sono acabou por trazer, fragmentos só, imagens insensatas aonde a luz não chega, indevassáveis até para os narradores, que as pessoas mal informadas acreditam terem todos os direitos e disporem de todas as chaves, se assim fosse acabava-se uma das boas coisas que o mundo ainda tem, a privacidade, o mistério das personagens. (pp. 121–122).

O excerto trazido à colação, por si só, não infirma a onisciência do narrador, apenas revela uma das muitas estratégias de que se vale este para seduzir e prender o leitor no laço narrativo.
Noutra perspectiva, este narrador onisciente que reconhece não saber de tudo pode ser visto como mais uma das costumadas irreverências à divindade típicas da obra de Saramago, pois de Deus diz-se que é onisciente, tal como do narrador que relata até mesmo o que vai pela cabeça das personagens, porém, tal como este, também Ele não saberia de tudo, se assim fosse acabava-se uma das boas coisas que o mundo ainda tem, a privacidade, o mistério das pessoas de carne e osso.
O espaço, de modo análogo ao ocorrido com o tempo, é complexo: geográfico no tocante à ação presente, concentrado na moderna cidade de Lisboa, mais precisamente na modesta residência da personagem Raimundo Silva, na editora em que trabalha e nas ruas que ligam um endereço a outro. Todavia, quando a narrativa volta-se à época da sua tomada pelos portugueses, o espaço é psicológico e existe segundo a projeção das imagens mentais do protagonista, vislumbradas e dadas a conhecer pelo narrador ou pelo mesmo Raimundo a partir do momento em que resolve contar uma nova história do cerco de Lisboa.
O protagonista do romance é o citado Raimundo Benvindo Silva, revisor, e é descrito parcimoniosamente como sendo um solteirão entrado nos cinquenta anos, cujas experiências pregressas são de todo ignoradas, porventura desimportantes ou quiçá insossas. “Não tem irmãos, os pais morreram-lhe nem cedo nem tarde, a família, se resta alguma, anda dispersa...” (p. 35).
A ação romanesca inicia-se com um diálogo entre Raimundo e um autor que acaba de lhe entregar para revisão uma obra de cunho historiográfico a respeito do cerco de Lisboa. Ao executar o seu trabalho de revisor, porém, Raimundo cometerá algo impensável a quem tem por obrigação corrigir os erros dos autores, que é perpetrar, com deliberação, conquanto inexplicavelmente (pois nenhum ganho lhe adviria disso, antes pelo contrário), um erro contra a verdade histórica incontroversa relativa ao sítio armado contra Lisboa pelas hostes de Afonso Henriques; erro esse que consiste em dizer que os cruzados não secundarão os portugueses na tomada de sua futura capital aos mouros.

...é evidente que acabou [Raimundo Silva] de tomar uma decisão, e que má ela foi, com a mão firme segura a esferográfica e acrescenta uma palavra à página, uma palavra que o historiador não escreveu, que em nome da verdade histórica não poderia ter escrito nunca, a palavra Não, agora o que o livro passou a dizer é que os cruzados Não auxiliarão os portugueses a conquistar Lisboa, assim está escrito e portanto passou a ser verdade, ainda que diferente, o que chamamos falso prevaleceu sobre o que chamamos verdadeiro, tomou o seu lugar, alguém teria de vir contar a história nova, e como. (p. 50).

A consciência de haver descumprido o seu dever de ofício, aliada à certeza da previsível punição profissional, põe-no tenso, temeroso, de ordem a não conciliar regularmente o sono, como pode ser aferido na passagem já acima citada, extraída das páginas 121 e 122, em que o narrador, ao fornecer tais informações, nega entretanto a sua onisciência.
Esta adulteração deliberada do livro alheio, que deveria antes corrigir, mudará por completo a vida de Raimundo, embora não pelas razões esperadas. É que, chamado a explicar-se perante os superiores hierárquicos, posto que sofra alguma humilhação, Raimundo é perdoado, não se lhe sendo imposta punição disciplinar pela infração profissional praticada em prejuízo dos negócios e da boa fama da editora. No entanto, a presença na reunião de uma mulher desconhecida chama a atenção de Raimundo e, malgrado seu, perturba-lhe o espírito e o coração. Trata-se de Maria Sara, contratada para exercer o recém-criado cargo de chefe dos revisores, a quem, a partir de então, Raimundo e demais colegas de igual função estariam subordinados e deveriam submeter suas revisões. A ela competiria zelar para que não se repetissem equívocos da natureza daquele cometido por Raimundo, intencionais ou não. E é ela igualmente quem, na primeira oportunidade em que conversa em reservado com Raimundo, incita-lhe a escrever uma nova história do cerco de Lisboa, na qual efetivamente os cruzados recusassem auxílio aos portugueses.

...foi tudo isso, repito, que se condensou na sugestão que decidi fazer-lhe, E que é, A de escrever uma história do cerco de Lisboa em que os cruzados, precisamente, não tenham ajudado os portugueses, tomando portanto à letra o seu desvio, para empregar a palavra que lhe ouvi há pouco... (pp. 109–110).

Raimundo, assim incitado, põe mãos à obra e começa a escrever a nova história do cerco de Lisboa, despreocupado já da verdade estabelecida, não só quanto à participação dos cruzados como também quanto aos discursos do rei e outros pormenores, adaptados tanto na forma quanto no conteúdo. Para incrementar a ficção, nela inscreve Raimundo as personagens Mogueime e Ouroana, par romântico da nova versão da história, com inspiração em si mesmo e em Maria Sara.

Mogueime aproximou-se da mulher [Ouroana], a alguns passos, sentou-se numa pedra, a olhar. Ela não se voltou, tinha-o visto de relance quando ele vinha, reconhecia-o pela figura e pelo jeito de andar, a condizer, mas ainda não sabia como ele se chamava, apenas que era português, numa ocasião ouvira-o falar galego. O mover cadenciado das ancas da mulher perturbava Mogueime. Aliás, trazia-a de olho desde que o cavaleiro morrera, e mesmo muito antes, mas um soldado raso, de mais a mais medieval, não se atreveria a andar de pé-de-alferes com a mulher do próximo, ainda que barregã. (p. 226).

Esta cena fica como que suspensa, a narrativa prossegue em dias anteriores à morte do mencionado cavaleiro, fidalgo alemão que roubara, de passagem pela Galiza, Ouroana à família. A cena será retomada próximo ao final do romance, quando, num diálogo simples e lacônico, ambos ajustam vida comum.
A partir da altura na qual Raimundo acede à sugestão de Maria Sara e começa a nova história, a ação romanesca assume dois planos mais positivos, uma vez que de início a narrativa concentra-se no presente, com esparsas alusões ao citado Cerco: um que persiste a tratar de Raimundo e seu interesse crescente pela nova diretora; e outro situado na Lisboa moura prestes a fazer-se cristã pela guerra.
No entanto, ainda prevalece o primeiro plano e Raimundo, tímido e um tanto acovardado, mostra-se incapaz de tomar iniciativas no que concerne a Maria Sara, a qual, mais resoluta e desenvolta, resolve telefonar-lhe. Não o encontrando em casa, deixa-lhe recado. Conversam no dia seguinte por telefone e ela, como sempre, releva-se mais decidida e incisiva, abrindo-se em primeiro lugar:

...Nada conheço de sua vida particular, se é, Casada, Sim, ou, De qualquer maneira comprometida, como antigamente se dizia, Sim, Imaginemos que sou realmente casada, ou que tenho um compromisso, impedi-lo-ia isso de gostar de mim, Não, E se eu fosse realmente casada, ou tivesse outro compromisso, impedir-me-ia isso de gostar de si, se tal tivesse de acontecer, Não sei, Então tome nota de que gosto de si, pausa longa, Isso é verdade, É verdade, Ouça, Maria Sara, Diga, Raimundo, mas antes fique a saber que sou divorciada há três anos, que acabei há três meses com uma ligação, que não comecei outra, que não tenho filhos, que quero tê-los, que vivo em casa de um irmão, que a pessoa que o atendeu é minha cunhada...(p.238).

Neste ponto cumpre ressaltar o tipo de personagem masculina que amiúde protagoniza os romances de Saramago. Raimundo é inibido, solteirão, no limiar do terço final da existência, inseguro e inexperiente em matéria de mulheres (exceto um ou outro intercurso pago) e sem nenhumas perspectivas amorosas. Seu passado é uma grande inanidade que faz o leitor conceber uma prolongada insipidez rotineira. Com exceção do princípio de velhice, é a mesma situação de Mogueime. Em Todos os Nomes, As Intermitências da Morte, Memorial do Convento e em outras obras de Saramago o protagonista possui perfil muito semelhante ao deste Raimundo Silva. Invertendo o procedimento dos romancistas do Romantismo, que idealizavam as heroínas, o homem saramagueano é que é idealizado no sentido da pureza, da castidade e da límpida capacidade para o amor, depurada por uma elástica privação sexual. Suas heroínas, ao contrário, são arrojadas como esta Maria Sara, experimentadas em relacionamentos, com ou sem maiores compromissos, antes de entrarem em cena, mas têm o coração perfeitamente lavado, perfumado e disponível quando encontram o protagonista do romance, presumível homem do resto de suas vidas.
O narrador esmera-se na descrição poética das primeiras carícias e passos amorosos de Raimundo e Maria Sara. Vale destacar um excerto do relato dessas primícias:

...parecia que o mundo exterior se pusera à espera de um milagre novo, porém ninguém deu por ele quando aconteceu, aqui, quando os sexos destes dois se sentiram pela primeira vez, quando pela primeira vez gemeram juntos, quando surdamente gritaram, quando todas as comportas do dilúvio se abriram sobre a terra e as águas da terra, e depois a calma, o largo estuário do Tejo, dois corpos lado a lado vogando, de mãos dadas, um diz, Oh, meu amor, o outro, Que nada no futuro seja menos do que isto, e de repente ambos tiveram medo do que disseram e abraçaram-se, o quarto estava escuro, Acende a luz, disse ela, quero saber se isto é verdade. (p. 295).

São páginas de poesia amorosa em prosa. Há romantismo e sentimentalismo nesse enlace, embora modernizado e com liberdade sexual. Consumado o amor de Maria Sara e Raimundo, este agora se dedica com seriedade e persistência à finalização da nova história do cerco de Lisboa, reportando as estratégias militares, o sofrimento da população moura sitiada e na iminência de ser dizimada, a proeminência adquirida por Mogueime na rebelião dos soldados portugueses em busca de justiça e igualdade de condições com os estrangeiros na divisão do espólio da cidade a ser conquistada, em suma, o romance encerra-se quando Raimundo, já numa íntima familiaridade com Maria Sara, dá por acabada a sua obra de reinvenção histórica.


REFERÊNCIA

SARAMAGO, José. História do Cerco de Lisboa. São Paulo: Companhia das Letras. 1989.