Anderson Cássio de Oliveira Lopes[1]
Resumo
Neste
artigo, divulga-se um inquérito sobre algumas possibilidades de construção de
sentido literário, possibilidades essas amparadas no exame da obra O Quinze, de Rachel de Queiroz, com
observância da estrutura narrativa, do tempo, do espaço, da ação, da estética
literária, da tensão textual, das evocações produzidas pela escolha vocabular e
do comportamento e psicologia das personagens. Para além disso, discute-se
também o ciclo da seca na literatura produzida no Nordeste brasileiro do final
do século XIX até meados do XX.
Palavras-chave.
Romance. Construção de sentido. Ciclo da Seca. O Quinze.
Introdução
A temática da seca que sempre assolou a região
Nordeste do Brasil é, ao menos desde o final do século XIX, um filão bastante
explorado pelos escritores ali nascidos ou residentes. De fato, embora muitos estudiosos
da nossa literatura atribuam ao romance A
Bagaceira, de autoria de José Américo de Almeida e cuja publicação ocorrera
em 1928, o posto de obra “inaugural” daquilo que se convencionou denominar “o
ciclo da seca” nos romances nordestinos, é possível retroagir um pouco mais e
situar neste posto o livro Luzia-Homem,
de Domingos Olímpio, obra de cunho naturalista vinda a lume em 1903 e em cuja ação retrata-se uma grande seca ocorrida em 1878. De
qualquer sorte, a partir de 1930, ao dar O
Quinze ao prelo, Rachel de Queiroz insere-se nesta tradição (que culminará
no reverenciado Vidas Secas, de Graciliano
Ramos), transpondo para a literatura o drama do sertanejo em sua luta ingente e
inglória contra a agrestia do solo castigado pela escassez das chuvas, a qual tradição
permeará boa parte de sua produção literária, inclusive seu último romance, o monumental
Memorial de Maria Moura.
Escritora prolífica e precoce, Rachel de Queiroz
publicou dezenas de obras, transitando pelo romance, o conto, o jornalismo, a
crônica, a literatura infantil; não contava sequer vinte anos completos
(nascera em 17 de novembro de 1910), quando da impressão e divulgação de O Quinze; e transpusera já a fronteira
dos oitenta anos de idade, quando, em 1992, publicou o Memorial de Maria Moura, com grande êxito editorial e também
televisivo, tendo em vista que esta obra foi ulteriormente adaptada pela Rede
Globo de Televisão e apresentada sob o formato de minissérie brasileira.
Dentre essa vasta produção, este artigo
concentrar-se-á na análise de O Quinze,
obra de estreia na qual, entretanto, vislumbra-se o estilo sóbrio de quem,
ainda adolescente, escrevia com surpreendente maturidade.
1. A
diegese de O Quinze
O romance é estruturado a partir de duas ações
paralelas, tendo a grande seca de 1915 como pano de fundo e também como mola
propulsora: por um lado, a ação mais romanesca envolvendo Vicente e Conceição;
por outro, o propriamente dito drama da seca, no qual se vê engolfada a família
de Chico Bento, destroçada aos poucos nas estradas em demanda do litoral – um
filho morto por comer, no desespero da fome, uma raiz venenosa; outro filho que
foge com estranhos; a cunhada, moça pudica e de caráter impoluto, que é
entregue à mercê da sorte e cai na mais
lamentável das misérias.
A narrativa é em terceira pessoa, tecida por um narrador onisciente, heterodiegético. A focalização não é fixa, mas
múltipla ou variada, incidindo ora sobre a personagem Vicente, ora sobre
Conceição e ora sobre a família de Chico Bento. Além disso, o narrador alterna
a focalização externa (em que revela aspectos exteriores das personagens) com a
focalização interna, na qual devassa a intimidade dos pensamentos e motivações
das personagens. Ainda no pertinente à focalização, esta não é interventiva e
sim neutral. Para ilustrar algumas das anteditas especificidades do narrador, vejam-se
os seguintes excertos:
–
Esta menina tem umas idéias!
Estaria
com razão a avó? Porque, de fato, Conceição talvez tivesse umas idéias;
escrevia um livro sobre pedagogia, rabiscara dois sonetos (...) chegara a
arriscar umas leituras socialistas, e justamente dessas leituras é que lhe
saíam as piores das tais idéias, estranhas e absurdas à
avó. (p. 14)
(...)
Conceição,
ante aquela ouvinte inesperada, tentou fazer uma síntese do tema da obra,
procurando ingenuamente encaminhar a avó para suas tais idéias.
–
Trata da questão feminina, da situação da mulher na sociedade, dos direitos
maternais, do problema... (p.131)
Observa-se que há também o recurso ao discurso direto, por cujo
meio a personagem expressa sua fala sem intermediação do narrador onisciente.
Conceição é de logo apresentada como uma heroína diferente, porque versada em
livros e teorias em voga no tempo, mais pertinentes ao universo masculino que
ao feminino. Duas
vezes o narrador crava e destaca o termo “idéias”, numa demonstração de que a
personagem em foco guiar-se-á designadamente sob o domínio de uma ideologia. Esse viés meio intelectual, meio socialista e
feminista, fora dos padrões e do que se esperava então de uma rapariga
casadoira, será um dos motivos condutores da ação desta personagem e de sua
relação com os retirantes e com o primo Vicente. Este, por sua vez, é um homem
rústico, pouco afeito aos estudos, preferindo a vida ao ar livre do sertão. Sentia
intuitivamente o problema da padronização de consciências, a doutrinação dos
alunos pelo professor, doutrinação mutiladora da liberdade mais cara ao homem
civilizado – a liberdade de pensamento – e tudo
isso o incompatibilizara com os bancos universitários e fizera-o voltar-se para
realidade concreta
do espaço em que nascera e crescera, a
vida livre e laboriosa dos campos, atuando e suando a camisa como vaqueiro das propriedades da família, ao contrário de
Paulo, o irmão doutor,
que prefere seguir a carreira jurídica, atendendo, aliás, aos anseios paternos. Esta faceta da personalidade de Vicente, de
envolta com uma crítica (hoje talvez ainda mais válida do que ao tempo da
publicação da obra) contra as instituições superiores de ensino, pode ser
observada nestas passagens:
E
o seu esforço constante, sua energia, sua saúde, e sua alma que nunca suportou
a servidão a uma disciplina ou a um professor, que não admitia que o mandassem
agir e que o mandassem pensar... não valeriam muito mais que um interesse
estéril de juristas por abstrações, ou o quase culto do servilismo em que o
Paulo se comprazia, quando estudante, servilismo de aluno pelo mestre (...)
Então, ser superior é renunciar ao seu feitio e à sua vontade, e, recortando
todo o excesso de personalidade, amoldar-se à forma comum dos outros? (p.47)
Vicente é, por assim dizer,
insubmisso: repugna-o o comportamento serviçal do aluno para com o professor, a
repetição de ideias e fórmulas, não acatando a padronização a que as
instituições superiores de ensino, pelas mãos de seus “doutores”, procuram
submeter os acadêmicos (muito embora o discurso da “liberdade” nunca se
ausente); enfim, Vicente não renuncia à mais relevante de todas as
liberdades, que é a de pensar por sua
conta, não obedecendo senão à própria consciência e razão. Abandona, pois, o
estudo formal e se transfigura posteriormente no verdadeiro arrimo dos pais,
uma vez que Paulo, já magistrado e casado, mantém-se distante e está perdido
para eles.
Para além disso, Vicente é pintado com muitas
das cores que caracterizavam os antigos heróis românticos: forte, belo, esbelto,
correto, corajoso, justo, sincero em suas afeições e absolutamente incapaz de
praticar qualquer ato moralmente atacável. No entanto, há em Vicente muito
daquilo que se costuma chamar “conservadorismo”, ao passo que Conceição seria,
até mesmo em virtude de sua formação intelectual, uma mulher “progressista”,
sem dúvida à frente do seu tempo, uma das razões pelas quais o diálogo dos dois
permanecerá infrutífero, embora a mútua afeição entre ambos aflorasse desde
cedo e uma atração quase irresistível os aproximasse. Porém, a seca e a
agrestia do sertão, os ciúmes mal resolvidos, o abismo cavado por
mundividências tão opostas e em rota de colisão (como mostra, aliás, a reflexão
racional de Conceição) – tudo pode ter concorrido para obstar de vez às
veleidades do coração.
Veja-se a conversa mantida por ambos à página 19
(denunciadora de um
interesse mútuo) e a leitura dos
pensamentos de Vicente, feita pelo narrador às folhas 48 e 49 (reveladora dos sentimentos e
aspirações do rapaz relativamente à prima Conceição):
Dona
Inácia saiu, arrastando as chinelas. Vicente virou-se para a prima:
–
Domingo atrasado as meninas cansaram de esperar por você!
–
Eu já ia lhe falar nisso. É porque não tive quem fosse comigo. Contava que Mãe
Nácia quisesse ir na cadeirinha...
–
Pois, no outro domingo, venho buscá-la. Pra você não enganar mais a gente.
–
Você? Qual! É uma maçada muito grande para quem vive tão ocupado... Só tem
tempo de pensar no trabalho... (p.19).
(...)
Só
Conceição, com o brilho de sua graça, alumiava e floria com um encanto novo a
rudeza de sua vida (p.48).
(...)
E
seduzia-o mais que tudo a novidade, o gosto de desconhecido que lhe traria a
conquista de Conceição, sempre considerada superior no meio das outras, e que
se destacava entre elas como um lustro de seda dentro de um confuso montão de
trapos de chita.
No
entanto, (...) separava-os a agressiva miséria de um ano de seca; (p.49).
Destaca-se também a beleza metafórica da linguagem impressa em alguns pontos da
obra, como na passagem acima, em que, para fazer ressaltar os atributos de
Conceição ante as demais moças, o narrador traz,
para confronto, a imagem do “lustro de seda” e do “montão de trapos de chita”.
No entanto, de uma maneira geral, prevalece neste
romance um tom de simplicidade expressiva, uma linguagem sem ornados, pouco
adjetivada e mais substantiva, sobressaindo a sobriedade e a ausência de
sentimentalismo gratuito, ainda que descreva cenas pungentes, sensações agudas,
e trate das angústias de uma estiagem devastadora, a disseminar a miséria, o
desespero e a morte. Exemplifica-o a comovente narrativa em derredor de Chico
Bento e família:
Saída
a última rês, Chico Bento bateu os paus na porteira e foi caminhando devagar,
atrás do lento caminhar do gado, que marchava à toa, parando às vezes, e pondo
no pasto seco os olhos tristes, como numa agudeza de desesperança.
Algumas
reses, sem ir mais longe, começava a babujar a poeira do panasco que ainda
palhetava o chão nas clareiras da caatinga.
Outras,
mais tenazes, seguiam cabisbaixas, na mesma marcha pensativa, a cauda abanando
lentamente as ancas descarnadas. (p.24).
Aqui, no momento dramático (no sentido de grande
comoção) em que Chico
Bento é obrigado a desfazer-se do rebanho, pela carência de
recursos e meios de subsistência, a linguagem, embora repassada de melancolia e
sentimento, mantém o tom de sobriedade, sem degenerar em pieguices.
Chico Bento é o vaqueiro de uma propriedade
rural vizinha à da família de Vicente e recebe dos patrões ordens para, não
havendo chuvas até o dia de São José, abrir as porteiras dos currais e soltar o
gado, ficando, outrossim, dispensado do serviço da fazenda. Afeiçoados aos
animais, o vaqueiro e a família sofrem ao soltá-los à própria sorte, sendo
quase certo que todas as reses encontrariam a morte por sede ou inanição.
Momento agudo, pois o mesmo Chico Bento e família, desempregados, teriam que
emigrar, enfrentado no caminho as terríveis vicissitudes que acossam os
retirantes sertanejos, a pisar o chão estorricado, a suportar a sede, a fome e
toda casta de adversidades impostas pela miséria. Eis algumas passagens
significativas:
Agora,
ao Chico Bento, como único recurso, só restava arribar. Sem legume, sem
serviço, sem meios de nenhuma espécie, não havia de ficar morrendo de fome,
enquanto a seca durasse (p.31).
(...)
Só
ele, a mulher, a cunhada, e cinco filhos pequenos. (p.34)
(...)
Um
dos pequenos, sentado numa trave, chupando o dedo, olhava o irmão. E o Pedro, o
mais velho, do lado oposto, de vez em quando tangia com a mão alguma mosca que
tentava pousar no rosto do doentinho. A criança era só osso e pele: o relevo do
ventre inchado formava quase um aleijão naquela magreza, esticando o couro seco
de defunto, empretecido e malcheiroso. (p.60)
Como visto na citação da página 60, a autora é competente na
exploração de imagens literárias de beleza simultaneamente singela e pungente,
como o realce que consegue dar à emaciação da criança faminta e doente ou à imagem
da mosca que, irritante, procura pouso no rosto descarnado do moribundo, mas é
enxotada pelo irmão maior.
Depois de uma excruciante superposição de
desares, o que restou da família de Chico Bento chega a um Campo de
Concentração na capital, onde estão reunidas algumas centenas de refugiados e
retirantes. Conceição, com a boa-vontade extremada das heroínas, presta o
máximo possível de assistência voluntária aos desvalidos (notadamente à gente
de Chico Bento, de quem é comadre e do qual adota um dos meninos, seu afilhado),
secundando a ação governamental. Aliás, não há no romance crítica contra o
governo, que aparece adotando as medidas cabíveis a fim de minorar quanto
possível o sofrimento que se abatera sobre a população (“ – Ajudar, o governo
ajuda. O preposto é que é um ratuíno...” p.35). Somente há crítica contrária a
um ou outro preposto do governo, que, à revelia das autoridades, tirava algum
sinistro proveito pessoal da terrível calamidade – alguns homens não perdem
mesmo a oportunidade de devorar seu semelhante, homo homini lupus. Enfim, é ainda o governo quem fornece, a
instâncias de Conceição, os bilhetes de passagem de navio para São Paulo, para
onde seguem Chico Bento, a esposa e os dois filhos remanescentes, em busca de
melhores dias.
O espaço literário desta história é basicamente
geográfico; não funciona, porém, apenas como pano de fundo, ou substrato de
cena, pois também exerce influência determinante no comportamento das
personagens, já que a desolação do ambiente ressequido é, segundo afirmação
inicial do narrador, um dos fatores que fazem gorar o amor surgido entre
Conceição e Vicente. Além de alguns recintos domésticos ligados a Conceição,
Chico Bento ou Vicente, o espaço do romance espalha-se pelos sertões áridos, cidades,
estradas, chegando ao litoral, aos Campos de Concentração de retirantes estabelecidos
em Fortaleza, capital do Estado do Ceará.
Em
toda a extensão da vista, nem uma outra árvore surgia. Só aquele velho
juazeiro, devastado e espinhento, verdejava a copa hospitaleira na desolação
cor de cinza da paisagem”. (p.43)
(...)
Conceição
atravessava muito depressa o Campo de Concentração. Às vezes uma voz atalhava:
–
Dona, uma esmolinha...” (p.61)
A par do espaço geográfico, tem-se o tempo diegético cronológico, inscrito no ritmo da passagem, relativamente bem
marcada, dos meses e estações do ano. O tempo literário em O Quinze transcorre
numa narrativa bastante
linear sobre a prolongada estiagem
verificada no ano de 1915, com
o foco narrativo
debruçando-se com alternância entre
a peregrinação da família de Chico Bento e o amor infecundo de Vicente e
Conceição. Esta linearidade, tão inequívoca ao longo de toda a trama, é, entretanto, arranhada numa passagem
singular que traz um devaneio, um
cismar de Conceição, durante o qual, num flashback (ou analepse)
narrado entre as páginas 21 e
23, ela recorda-se de eventos antigos envolvendo a si e a Vicente:
Todo
o dia a cavalo, trabalhando, alegre e dedicado, Vicente sempre fora assim,
amigo do mato, do sertão, de tudo o que era inculto e rude. Sempre o conhecera
querendo ser vaqueiro como um caboclo desambicioso, apesar do desgosto que com
isso sentia a gente dele. E a moça lembrou-se de certa vez, em casa do Major,
no dia em que se inaugurou o gramofone... (p.21).
(...)
Dona
Inácia interrompeu a cisma da neta: (p.23)
É um momento em que Conceição
mergulha em suas memórias. Terá dado ensejo ao tempo psicológico? Ouçamos a
lição de Vítor Manuel de Aguiar e Silva, a propósito do time of mind de Virginia Woolf:
Esta temporalidade, refractária à linearidade
cronológica, heteromórfica em relação ao tempo do calendário e do relógio, é
entretecida num presente que ora se afunda na memória, muitas vezes involuntária,
ora se projecta no futuro, ora pára e se esvazia. (Silva, 2010, p. 747).
Embora Conceição, na passagem
citada, “afunde na memória”, este é um instante insular no romance, incapaz de,
por si só, fazer decretar-se a existência de um tempo diegético psicológico em O Quinze. A caracterização deste tipo de
tempo exige, segundo entendemos o ensinamento de Aguiar e Silva, uma
predominância do presente, oscilando com mergulho memorial, com a projeção no
futuro e com a paralisia e o consectário esvaziamento do mesmo presente. Não é o que acontece na obra examinada, na
qual a cronologia temporal, avançando de braços dados com o agravamento da seca
– dia após dia, semana após semana, mês após mês – mostra-se hegemônica em sua
linearidade de tempo cronológico, em especial porque a imersão na memória é bem
demarcada no texto, não havendo dificuldade para o reconhecimento do seu início
e do seu final, de modo que resta perfeitamente preservada a cronologia
diegética e, portanto, rechaçada qualquer anacronia perturbadora da medição
temporal.
2.
Amor e ideologia social em O Quinze
Como dito, o amor
de Vicente e Conceição é improlífico e para explicá-lo o narrador apresentada
basicamente três razões.
A primeira delas é a seca, como afirmado nesta
já citada passagem da página 49: “No entanto, (...) separava-os a agressiva miséria
de um ano de seca”. Neste caso, todo o romance poderia ser visto como uma vasta alegoria da improficuidade da Grande Seca, a qual, a incidir
inexoravelmente sobre as terras sertanejas e os corações humanos,
cercear-lhes-ia a fecundidade e, por consequência, far-lhes-ia emurchecer tanto
os frutos do labor, quanto os do amor. Esta explicação, porém, falha, porque,
conquanto sofressem os reveses da seca, sofreram-nos menos intensamente que os
retirantes sem outros meios. Ora, Vicente e Conceição pertencem a famílias de
proprietários que, mesmo não sendo milionários,
tampouco são pobres; mesmo amargando perdas, não alteraram substancialmente o
seu modo de vida entre
remediado e abastado. De
resto, uma irmã de Vicente casa-se pouco depois de passada a seca, comprovando
a rápida retomada da normalidade social no que toca a essas famílias de
proprietários.
A segunda explicação para o aborto dos
sentimentos de Vicente e Conceição reside nos ciúmes da moça, fundados em boato
segundo o qual Vicente teria um “caso” com a mulata Zefinha. Boato sem fundamento, disseminado pela malícia de uma retirante albergada num campo de
concentração, ex-trabalhadora nas terras da família de Vicente, a qual de lá saíra atraída pela notícia de que, na capital do estado, o governo dava comida e boa
vida aos refugiados... Não disse positivamente nada, apenas fizera uma
insinuação leve, porém insidiosa. Não seria difícil tirar a história a limpo,
mas Conceição preferiu receber o primo com frieza, quando este foi visitá-la à
capital; e mesmo diante da naturalidade de Vicente, o qual, “com um gesto
inocente” (p.82), confirmou que a antedita mulata
cuidava de sua roupa, Conceição tratou-o com um álgido distanciamento, selando,
assim, o destino de ambos.
A terceira explicação é a incompatibilidade
ideológica das personagens, explicitada logo após a visita de Vicente a
Conceição, na capital, quando o narrador onisciente dar a conhecer as reflexões
da moça, sobretudo esta parte:
Num
relevo mais forte, tão forte quanto nunca o sentira, foi-lhe aparecendo a
diferença que havia entre ambos, de gostos, de tendências, de vida.
O
seu pensamento, que até há pouco se dirigia ao primo como a um fim natural e
feliz, esbarrou nessa encruzilhada difícil e não soube ir adiante. (p.84-85)
(...)
Pensou
que, mesmo o encanto poderoso que a sadia força dele exercia nela, não
preencheria a tremenda largura que os separava.
Já
agora, o caso da Zefinha lhe parecia mesquinho e sem importância.
Qualquer
coisa maior se cavava entre os dois. (p.86)
Enquanto Vicente engolfa-se em certa taciturnidade, sem atinar com as razões pelas quais não se
consuma o seu amor pela prima, esta cogita mui racionalmente acerca da situação
de ambos: ele um simples vaqueiro meio rude e pouco simpatizante de livros,
embora portador de excelentes qualidades morais e físicas, ao passo que ela,
intelectualizada e adepta de ideologias refratárias ao amor romântico e mesmo
ao casamento enquanto instituição do tempo – como são as teorias socialistas e
feministas – compreende em plenitude o tipo de abismo que os distancia.
Refletindo à luz de sua formação intelectual, conclui Conceição que as
diferenças existentes,
no plano ideológico,
entre ela e Vicente sobrepõem-se ao afeto e ao desejo dos familiares de vê-los
casados e tocando para adiante uma vida feliz e comum, como tantas outras, a
exemplo do que sucede com Lurdinha, irmã de Vicente e cuja felicidade conjugal
de certa maneira impressiona Conceição. Sabe-se que as ideologias, de um modo
geral, são bastante absorventes do espírito, sobretudo aquelas conexas ao
socialismo (como o feminismo, o africanismo e outras); são uma nova pele, um leitmotiv pelo qual se vive e, no
limite, mata-se ou morre-se. À força de embrenhar-se
em leitura de substrato socialista e feminista, Conceição deixa-se eivar,
incompatibilizando-se com a vida de esposa naquela sociedade tradicional, que
reservava à mulher um papel certo e assaz adstrito aos círculos familiares. Os
ciúmes anteriormente experimentados por Conceição deixam, assim, de fazer
qualquer sentido, quando algo muito maior e mais poderoso – uma barreira
ideológica de dificílima transposição – apresenta-se com clareza diante de seus
olhos, sufocando as
veleidades amorosas que lhe inspirara o primo e tudo o mais que não estivesse em
sintonia com a mundividência que lhe adviera das leituras socialista e feminista que fora realizando à revelia da avó, que as
estranhava.
Assim, Conceição asfixia, inclusive, o amor em sentido abstrato, o amor em si
mesmo, enquanto valor simbólico construído, desejado e milenarmente enaltecido
pela Civilização. Eis o que diz
Conceição, interpelada a propósito do mais decantado dos sentimentos:
–
Ora o amor!... Essa história de amor, absoluto e incoerente, é muito difícil de
achar... Eu, pelo menos nunca o vi... O que vejo, por aí, é um instinto de
aproximação muito obscuro e tímido, a que a gente obedece conforme as
conveniências... Aliás, não falo por mim... Que eu, nem esse instinto... Tenho
a certeza de que nasci para viver só... (pp.155-156)
Para o materialista – e o socialista não é outra
coisa – um ente impalpável, como o Amor, é de difícil compreensão (quando não é
motivo de ostensivo desprezo), o que implica dizer que raramente podem
observá-lo, menos ainda senti-lo. Movendo-se, pois, Conceição neste cenário, era
de fato improvável que algo além do instinto sexual adentrasse sua órbita de
consideração e é notadamente
por isso que se percebe
desajustada à sociedade comum e natural da avó e do primo, contrapondo-se-lhes às aspirações
e aos desígnios, sobretudo se eram matrimoniais.
3. Conclusão
Ante todo o exposto, temos que O Quinze é um romance sobre uma dupla
seca: uma que, enquanto fenômeno natural contumaz do Nordeste do Brasil,
resseca a terra, destrói lavouras, dizima criações, levando sofrimento e morte
às famílias sertanejas, aqui personificadas na figura de Chico Bento e os seus;
e outra que, enquanto fenômeno da
vida em sociedade, ligado ao estabelecimento das ideologias vinculadas ao socialismo
ou dele caudatárias, resseca os corações, destrói sentimentos romanticamente
amorosos, dizima projetos familiares, conduzindo à frustração, à solitude e à
infecundidade os seus prosélitos, aqui representados por Conceição. O romance
encerra-se com uma
forte antítese entre alegria e tristeza, plasmada na dicotomia da terra a que torna
a esperança vital e do sentimento que a perde. Encerra-se, pois, com a grave e melancólica seca do coração,
mais trágica que a do chão: às primeiras chuvas, a terra embebe-se na nova seiva, reveste-se de promessas, a vida volta a pulsar no sertão
outrora ressequido; porém, ao peito
dessecado pelo ideário “social”, não há chuva nem seiva sentimentais
que lhe restituam o viço da vida e a capacidade de amar e deixar-se amar com
inteireza.
REFERÊNCIA
QUEIROZ, Rachel de. O
Quinze. 77. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004.
SILVA, Vítor Manuel de Aguiar e. Teoria da Literatura. 8. ed. 1. vol. Coimbra: Almedina, 2010.
muito bom, como tudo que você faz...
ResponderExcluirObrigado, Maria. Tu és mui gentil.
ResponderExcluirQue estudo maravilhoso! Ele nos mostra que a literatura diz o que a ciência jamais conseguiria dizer. Parabéns!
ResponderExcluirObrigado, Pedro.
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