segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

COMENTÁRIO SOBRE O ROMANCE "AMOR DE PERDIÇÃO", DE CAMILO CASTELO BRANCO

         Por Anderson Cássio de Oliveira Lopes


        Sobre a estética romântica


Em Amor de Perdição, a estética do Romantismo é levada ao paroxismo, podendo, dentro da graduação romântica, ser a obra sem exagero rotulada de “ultra-romântica”. Isso porque, para além da idealização de três protagonistas que se guiam com exclusividade por anseios do coração e atitudes consideradas virtuosas, o amor existente entre Simão e Teresa, bem assim o que Mariana alimentará pelo mesmo Simão, possuem intensidade, resistência e consequências trágicas bem acima daquilo que de ordinário se espera de semelhante e caprichoso sentimento. Com efeito, as famílias de Simão e Teresa nutrem mútua inimizade e, vindo à tona o amor nascido entre seus filhos, impõem toda sorte de óbices à materialização do desejo de ambos, tendo Teresa, por exemplo, resistido a reiteradas instâncias do pai, que procurara fazê-la casar-se com um primo, numa tentativa de afastá-la definitivamente de Simão. Nem esta nem outras semelhantes tentativas, todavia, produziram o efeito colimado, porquanto o autêntico amor romântico que une os protagonistas a tudo resiste, tudo enfrenta triunfante, estando acima de quaisquer conveniências sociais, econômicas ou familiares, preferindo a morte à renúncia de si. Assim, o desfecho fatal está também intimamente ligado ao ideal estético do Romantismo, porquanto perseverar no amor até à morte, contra toda a torrente dos obstáculos, é a glória máxima a que podem aspirar os passionais heróis românticos, para os quais não existem outras possibilidades para o amor, entendido e experienciado como algo único, sempiterno, personalíssimo e, portanto, intransferível.

A personagem Simão Botelho

São vários os expedientes empregados pelo narrador para atrair a Simão Botelho a simpatia do leitor, em especial quando faz sobressair a pouca idade do protagonista, bem como toda a mudança de comportamento nele operada pelo amor ultra-romântico. De fato, aos 18 anos Simão é um estudante um tanto desordeiro e dado a irreverências e extravagâncias, porém, ainda assim, cumpridor de suas obrigações acadêmicas. Vejamos: “conta que a cada passo se vê ameaçado na vida, porque Simão emprega em pistolas o dinheiro dos livros, convive com os mais famosos perturbadores da academia, e corre de noite as ruas insultando os habitantes e provocando-os à luta com assuadas” e “no entanto, Simão recolhe a Viseu com os seus exames feitos e aprovados. O pai maravilhava-se do talento do filho, e desculpa-o da extravagância por amor do talento”.
Na descrição do tipo físico, também o narrador tenta infundir no leitor um sentimento favorável a Simão: “os quinze anos de Simão têm aparências de vinte. É forte de compleição; belo homem com as feições de sua mãe, e a corpulência dela”. Todavia, no início da trama, o que se ressalta em Simão é o seu caráter indômito, tendendo à violência: “mas de todo avesso em gênio. (...) As irmãs temiam-no, tirante Rita, a mais nova, com quem ele brincava puerilmente, e a quem obedecia”. Chega mesmo a ser preso na universidade: “o jacobino, desarmado e cercado, entre a escolta dos arqueiros foi levado ao cárcere acadêmico, donde saiu seis meses depois, a grandes instâncias dos amigos de seu pai e dos parentes de D. Rita Preciosa”.
Mas, sob influxo do amor a Teresa, transforma-se o comportamento social e, até certo ponto, a personalidade mesma de Simão. Um único parágrafo já dá conta de toda essa mudança: “no espaço de três meses fez-se maravilhosa mudança nos costumes de Simão. As companhias da relé, desprezou-as. Saía de casa raras vezes, ou só, ou com a irmã mais nova, sua predileta. O campo, as árvores e os sítios mais sombrios e ermos eram o seu recreio. Nas doces noites de estio demorava-se por fora até ao repontar da alva. Aqueles que assim o viam admiravam-lhe o ar cismador e o recolhimento que o seqüestrava da vida vulgar. Em casa encerrava-se no seu quarto, e saía quando o chamavam para a mesa”. Os novos hábitos de Simão são tipicamente românticos, incluindo-se a preferência por locais obscuros e desertos, o fechar-se absorto em seus próprios pensamentos e o confinamento que se impõe, de modo a estar todo concentrado no objeto do seu amor, a “regularmente bonita e bem nascida” Teresa, de apenas 15 anos, sua vizinha.
Diante da cópia de provas da autenticidade e da força do amor que Simão alberga no peito, cristalizadas em tão radical metamorfose comportamental, sente-se-lhe inevitavelmente atraído o leitor, o qual passa a torcer pelo herói e pela realização de tão poético e sincero sentimento amoroso.

Teresa e Mariana

Tanto Teresa quanto Mariana são típicas heroínas românticas, constantes em seu amor espontâneo; altivas na postura pela qual, em seu íntimo, defendem os afetos do coração contra toda interferência ou opressão externas; desinteressadas de outras considerações mundanas alheias ao puro e simples amor que nasce da alma e deve durar por toda a eternidade. Neste sentido, o amor de Mariana afigura-se-nos ainda mais sublime em seu ideal ultra-romântico que o de Teresa, embora ambos sejam imensos e profundos; isso porque o amor desta é correspondido e alimentado por meio da assídua troca de cartas com Simão, que a ama deveras e vive em função de conseguir driblar os impedimentos que as famílias se lhes interpõem. De fato, há um tênue porém constante fio de esperança no amor de Teresa, as famílias até à última hora poderiam ceder ou quem sabe Simão a raptasse! No que diz respeito ao amor de Mariana, no entanto, não há de início nem sequer a mais remota esperança de reciprocidade, menos pela diferença social (ela é plebeia e ele, nobre), senão porque ela possui plena consciência de que o coração de Simão já pertence inteiramente a outra e até delibera ajudá-los, quando a correspondência entre os amantes é impossibilitada pela reclusão de Teresa. Ou seja, Mariana vive exclusivamente de seu próprio amor, sem maiores expectativas de ser igualmente amada, de receber do ente querido a contrapartida afetiva a que todos quantos amem terão direito, ao menos, em termos de sonho e ilusão. E se Teresa morre em decorrência da tuberculose, cuja progressão sem dúvida foi muito agravada pelo degredo a que fora condenado o seu adorado Simão, Mariana, que resolveu segui-lo no degredo, talvez vislumbrando finalmente alguma possibilidade de realização amorosa, ao vê-lo entretanto morto, joga-se ao mar, num ato suicida estarrecedor e sublime – de romantismo amoroso levado até às últimas consequências, para além das raias da sanidade. Nesta loucura amorosa arrebatada, extremada, Mariana, de personagem secundária da trama, eleva-se ao final, no contexto do adstrito círculo da estética ultra-romântica, à condição de personagem mais marcante da obra. De resto, a presença de Mariana constitui um distintivo essencial, sem o qual o argumento deste Amor de Perdição limitar-se-ia a ser uma mera transposição do Romeu e Julieta.

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