Sobre a estética romântica
Em Amor de Perdição, a estética do
Romantismo é levada ao paroxismo, podendo, dentro da graduação romântica, ser a
obra sem exagero rotulada de “ultra-romântica”. Isso porque, para além da
idealização de três protagonistas que se guiam com exclusividade por anseios do
coração e atitudes consideradas virtuosas, o amor existente entre Simão e
Teresa, bem assim o que Mariana alimentará pelo mesmo Simão, possuem
intensidade, resistência e consequências trágicas bem acima daquilo que de
ordinário se espera de semelhante e caprichoso sentimento. Com efeito, as
famílias de Simão e Teresa nutrem mútua inimizade e, vindo à tona o amor
nascido entre seus filhos, impõem toda sorte de óbices à materialização do
desejo de ambos, tendo Teresa, por exemplo, resistido a reiteradas instâncias
do pai, que procurara fazê-la casar-se com um primo, numa tentativa de
afastá-la definitivamente de Simão. Nem esta nem outras semelhantes tentativas,
todavia, produziram o efeito colimado, porquanto o autêntico amor romântico que
une os protagonistas a tudo resiste, tudo enfrenta triunfante, estando acima de
quaisquer conveniências sociais, econômicas ou familiares, preferindo a morte à
renúncia de si. Assim, o desfecho fatal está também intimamente ligado ao ideal
estético do Romantismo, porquanto perseverar no amor até à morte, contra toda a
torrente dos obstáculos, é a glória máxima a que podem aspirar os passionais
heróis românticos, para os quais não existem outras possibilidades para o amor,
entendido e experienciado como algo único, sempiterno, personalíssimo e,
portanto, intransferível.
A personagem Simão Botelho
São vários os expedientes empregados pelo narrador
para atrair a Simão Botelho a simpatia do leitor, em especial quando faz
sobressair a pouca idade do protagonista, bem como toda a mudança de
comportamento nele operada pelo amor ultra-romântico. De fato, aos 18 anos
Simão é um estudante um tanto desordeiro e dado a irreverências e
extravagâncias, porém, ainda assim, cumpridor de suas obrigações acadêmicas.
Vejamos: “conta que a cada
passo se vê ameaçado na vida, porque Simão emprega em pistolas o dinheiro dos
livros, convive com os mais famosos perturbadores da academia, e corre de noite
as ruas insultando os habitantes e provocando-os à luta com assuadas” e “no entanto, Simão recolhe a Viseu com os seus
exames feitos e aprovados. O pai maravilhava-se do talento do filho, e
desculpa-o da extravagância por amor do talento”.
Na descrição do tipo físico, também o narrador
tenta infundir no leitor um sentimento favorável a Simão: “os quinze anos de Simão têm aparências de vinte. É
forte de compleição; belo homem com as feições de sua mãe, e a corpulência dela”. Todavia, no início
da trama, o que se ressalta em Simão é o seu caráter indômito, tendendo à
violência: “mas de todo
avesso em gênio. (...) As irmãs temiam-no, tirante Rita, a mais nova, com quem
ele brincava puerilmente, e a quem obedecia”. Chega mesmo a ser preso na universidade:
“o jacobino, desarmado e
cercado, entre a escolta dos arqueiros foi levado ao cárcere acadêmico, donde
saiu seis meses depois, a grandes instâncias dos amigos de seu pai e dos
parentes de D. Rita Preciosa”.
Mas, sob influxo do amor a Teresa, transforma-se o
comportamento social e, até certo ponto, a personalidade mesma de Simão. Um
único parágrafo já dá conta de toda essa mudança: “no espaço de três meses fez-se maravilhosa mudança
nos costumes de Simão. As companhias da relé, desprezou-as. Saía de casa raras
vezes, ou só, ou com a irmã mais nova, sua predileta. O campo, as árvores e os
sítios mais sombrios e ermos eram o seu recreio. Nas doces noites de estio
demorava-se por fora até ao repontar da alva. Aqueles que assim o viam
admiravam-lhe o ar cismador e o recolhimento que o seqüestrava da vida vulgar.
Em casa encerrava-se no seu quarto, e saía quando o chamavam para a mesa”. Os novos hábitos
de Simão são tipicamente românticos, incluindo-se a preferência por locais
obscuros e desertos, o fechar-se absorto em seus próprios pensamentos e o
confinamento que se impõe, de modo a estar todo concentrado no objeto do seu
amor, a “regularmente bonita e bem nascida” Teresa, de apenas 15 anos, sua
vizinha.
Diante da cópia de provas da autenticidade e da
força do amor que Simão alberga no peito, cristalizadas em tão radical
metamorfose comportamental, sente-se-lhe inevitavelmente atraído o leitor, o
qual passa a torcer pelo herói e pela
realização de tão poético e sincero sentimento amoroso.
Teresa e Mariana
Tanto Teresa quanto
Mariana são típicas heroínas românticas, constantes em seu amor espontâneo;
altivas na postura pela qual, em seu íntimo, defendem os afetos do coração
contra toda interferência ou opressão externas; desinteressadas de outras considerações
mundanas alheias ao puro e simples amor que nasce da alma e deve durar por toda
a eternidade. Neste sentido, o amor de Mariana afigura-se-nos ainda mais
sublime em seu ideal ultra-romântico que o de Teresa, embora ambos sejam
imensos e profundos; isso porque o amor desta é correspondido e alimentado por
meio da assídua troca de cartas com Simão, que a ama deveras e vive em função
de conseguir driblar os impedimentos que as famílias se lhes interpõem. De
fato, há um tênue porém constante fio de esperança no amor de Teresa, as
famílias até à última hora poderiam ceder ou quem sabe Simão a raptasse! No que
diz respeito ao amor de Mariana, no entanto, não há de início nem sequer a mais
remota esperança de reciprocidade, menos pela diferença social (ela é plebeia e
ele, nobre), senão porque ela possui plena consciência de que o coração de
Simão já pertence inteiramente a outra e até delibera ajudá-los, quando a
correspondência entre os amantes é impossibilitada pela reclusão de Teresa. Ou
seja, Mariana vive exclusivamente de seu próprio amor, sem maiores expectativas
de ser igualmente amada, de receber do ente querido a contrapartida afetiva a
que todos quantos amem terão direito, ao menos, em termos de sonho e ilusão. E se Teresa morre em decorrência da
tuberculose, cuja progressão sem dúvida foi muito agravada pelo degredo a que
fora condenado o seu adorado Simão, Mariana, que resolveu segui-lo no degredo,
talvez vislumbrando finalmente alguma possibilidade de realização amorosa, ao
vê-lo entretanto morto, joga-se ao mar, num ato suicida estarrecedor e sublime
– de romantismo amoroso levado até às últimas consequências, para além das
raias da sanidade. Nesta loucura amorosa arrebatada, extremada, Mariana, de personagem
secundária da trama, eleva-se ao final, no contexto do adstrito círculo da
estética ultra-romântica, à condição de personagem mais marcante da obra. De resto, a presença de Mariana constitui um distintivo essencial, sem o qual o argumento
deste Amor de Perdição limitar-se-ia a
ser uma mera transposição do Romeu e
Julieta.
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