a)
SE TU VIESSES VER-ME...
Se tu viesses
ver-me hoje à tardinha,
A essa hora
dos mágicos cansaços,
Quando a
noite de manso se avizinha,
E me
prendesse toda nos teus braços...
Quando me
lembra: esse sabor que tinha
A tua
boca... o eco dos teus passos...
O teu riso de
fonte... os teus abraços...
Os teus
beijos... a tua mão na minha...
Se tu viesses
quando, linda e louca,
Traça as
linhas dulcíssimas dum beijo
E é de seda
vermelha e canta e ri
E é como um
cravo ao sol a minha boca...
Quando os
olhos se me cerram de desejo...
E os meus
braços se estendem para ti...
b)
AMAR
Eu quero
amar, amar perdidamente!
Amar só por
amar: Aqui... Além...
Mais Este e
Aquele, o Outro e toda a gente...
Amar! Amar! E
não amar ninguém!
Recordar?
Esquecer? Indiferente!...
Prender ou
desprender? É mal? É bem?
Quem disser
que se pode amar alguém
Durante a
vida inteira é porque mente!
Há uma
Primavera em cada vida:
É preciso
cantá-la assim florida,
Pois se Deus
nos deu voz, foi pra cantar!
E se um dia
hei de ser pó, cinza e nada
Que seja a
minha noite uma alvorada,
Que me saiba
perder... pra me encontrar...
Nos dois poemas de Florbela
Espanca ora sub oculis, o eu-lírico
feminino, em manifestação desassombrada de liberdade, sobretudo no trato
amoroso e no âmbito da sexualidade, exprime, além dos seus desejos e arroubos
eróticos, sua filosofia do amor.
No soneto Se tu viesses ver-me, já no primeiro
quarteto vemos um eu-lírico feminino ativo e livre, que manifesta a sua
atividade ao declamar o verso “E me prendesse toda nos teus braços...”. Não se
trata, pois, de uma mulher passiva que seria presa pelos braços do homem, mas de
uma impetuosa que toma a iniciativa de enroscar-se neles.
Aludindo “à tardinha”, ao momento
dos “mágicos cansaços”, à noite que vai mansamente engolindo o dia e espalhando
suas sombras nostálgicas de remotas volúpias e mistérios, o eu-lírico instaura no poema e no espírito do leitor
uma atmosfera de desejo amoroso, que se vai adensando nas estrofes subseqüentes,
até culminar no abandono erótico.
No segundo quarteto, esse
desejo se alimenta da saudosa recordação de antigos conúbios, antigos beijos
saborosos, risos límpidos e inesgotáveis, mãos cariciosas, lábios nos quais residia
o prazer, agora sonhado e desejado decerto muito mais do que simplesmente lembrado.
Do primeiro para o segundo
terceto há uma deslumbrante imagem erótica – sutilizada pela ampliação da distância
entre o verbo (“traça”) e o sujeito da ação (“a minha boca”) – pela qual nos
deparamos com uma boca convidativamente escarlate, singularmente cantante e
risonha, oferecendo-se no traçado de um beijo melífluo, dulcíssimo, num
simultâneo de ósculo amoroso e beijo erótico... Para além de ser prelúdio de
enlevos inefáveis, essa boca “linda e louca”, para um leitor notável por sua
audácia, pode ser também tomada como uma discreta alusão àquela outra embocadura
corporal, aquele quase sempre oculto conjunto de lábios igualmente encarnados e
doces que guardam a entrada para o sumo deleite, o portal para os últimos êxtases
de Afrodite...
Com efeito, o erotismo
chega aos píncaros na qualificação da boca, não por acaso dita “linda e louca”,
pois essa aliteração em “L”, forçando a língua a empreender um célere e reiterado
movimento de subida e descida, é de imediato associada às mobilizações típicas
dos frenesis sexuais, do calor das paixões, da língua assim movimentada em
beijos fogosos e precipitados... E quando, em total languidez, os seus olhos se
fecham e desabrocham-se-lhes os braços, completa-se a imagem de um caprichoso corpo
feminino que, de modo irresistível e franco, abandona-se de todo à delectacio venerea, às infinitas volúpias
de Vênus.
No entanto, estando já
ultimada em nossa mente a pintura deste provocante painel sensualíssimo,
assalta-nos uma melancólica sensação de estúpido desperdício, uma vez que esta
fêmea voluptuosa, assim ao delírio carnal entregue de forma tão pronta,
permanece sozinha, fantasiando a chegada do parceiro, insatisfeita entrementes...
Já o soneto Amar, à diferença do primeiro, deixa de
lado o lirismo suavemente erotizado, a fim de engajar-se numa dissertação sobre
a ampla liberdade para amar em todos os lugares (“Aqui... além”), a todos os
homens ou pessoas (“Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente...”), culminando
na liberdade para, inclusive, “não amar ninguém”. Aqui o eu-lírico, novamente
feminino, compreende um tanto perplexamente que a liberdade para amar à vontade
e à saciedade cai no indiferentismo, na desimportância de prender ou
desprender, recordar ou esquecer, compreendendo que quem ama a todos, no fundo,
não ama de fato ninguém – a multiplicidade neutraliza, suprime, inviabiliza o
sentimento romântico... Não obstante, volta-se contra o amor exclusivo, monógamo, exclamando ser mentiroso quem diz poder amar a mesma pessoa toda a vida, numa visceral negação (ruptura com a tradição)
do mais consagrado pressuposto da escola Romântica.
Naturalmente, embora fale
por si, procura generalizar o seu ponto de vista ou a sua situação particular
no mundo, buscando persuadir o leitor da “verdade” que lhe quer infundir. Os
versos “Quem disser que se pode amar alguém/Durante a vida inteira é porque
mente!” são centrais, e os que se lhes seguem não são senão ilustrações do seu
raciocínio, da sua filosofia existencial.
De resto, declarando que há
“uma primavera em cada vida”, a qual deve ser cantada enquanto florida, há uma
firme retomada do carpe diem
neoclássico, do aproveitar o dia enquanto é estação propícia, enquanto há
juventude e vigor, beleza e amores de toda sorte, pois dentro em breve tudo há
de “ser pó, cinza e nada”, tudo passa, tudo acaba, mesmo a melhor das estações.
O poema encerra-se com mais
uma ruptura perpetrada em desfavor dos valores que vigoravam na sociedade em
que vivera a poetisa, pois se quem ama a todos se “perde”, é na mesma perda que
o eu-lírico diz encontrar-se, porquanto julga ser no “perder-se” que se acha a “verdadeira”
liberdade de amar a quantos queira, encontrando-se a si própria – segundo
alega – no exercício mesmo dessa irrestrita liberação para o amor! É nessa exata
medida que o poema – cujo ideário é perfeitamente controverso, não deixemos de
registrar – converte-se num libero contra a moralidade dirigente à sua época,
quando ninguém, designadamente as mulheres, podia, sem estigmatizar-se, ao amor
carnal entregar-se assim tão livremente.
Isto posto, os dois sonetos
de Florbela Espanca analisados revelam as distintas vertentes da ruptura levada
a efeito por esta grande poetisa portuguesa. No primeiro poema, ela ousou
explorar um lirismo erotizado, ainda que suavemente, e também uma busca ativa
pela satisfação dos seus desejos, quebrando a passividade amorosa à qual estava
relegada a mulher do seu tempo, bem assim a repressão das suas volições atinentes
à sexualidade. No segundo soneto, de modo mais desabrido e sem preocupação lírica,
sustenta a doutrina do “poliamor”, da verdade amorosa enquanto multiplicidade
de parceiros e total aproveitamento amoroso da primavera da existência, bela
estação que logo se extingue, rompendo, destarte, com o ideário romântico do
amor único, cultivado por toda a vida.