sábado, 12 de agosto de 2017

I-Juca-Pirama, de Antônio Gonçalves Dias – com breve análise estrutural e semântica

Por Anderson Cássio de Oliveira Lopes



CANTO I 

No meio das tabas de amenos verdores,
Cercadas de troncos - cobertos de flores,
Alteiam-se os tetos d'altiva nação;
São muitos seus filhos, nos ânimos fortes,
Temíveis na guerra, que em densas coortes
Assombram das matas a imensa extensão.

São rudes, severos, sedentos de glória,
Já prélios incitam, já cantam vitória,
Já meigos atendem à voz do cantor:
São todos Timbiras, guerreiros valentes!
Seu nome lá voa na boca das gentes,
Condão de prodígios, de glória e terror!

As tribos vizinhas, sem forças, sem brio,
As armas quebrando, lançando-as ao rio,
O incenso aspiraram dos seus maracás:
Medrosos das guerras que os fortes acendem,
Custosos tributos ignavos lá rendem,
Aos duros guerreiros sujeitos na paz.

No centro da taba se estende um terreiro,
Onde ora se aduna o concílio guerreiro
Da tribo senhora, das tribos servis:
Os velhos sentados praticam d'outrora,
E os moços inquietos, que a festa enamora,
Derramam-se em torno d'um índio infeliz.

Quem é? - ninguém sabe: seu nome é ignoto,
Sua tribo não diz: - de um povo remoto
Descende por certo - d'um povo gentil;
Assim lá na Grécia ao escravo insulano
Tornavam distinto do vil muçulmano
As linhas corretas do nobre perfil.

Por casos de guerra caiu prisioneiro
Nas mãos dos Timbiras: - no extenso terreiro
Assola-se o teto, que o teve em prisão;
Convidam-se as tribos dos seus arredores,
Cuidosos se incumbem do vaso das cores,
Dos vários aprestos da honrosa função.

Acerva-se a lenha da vasta fogueira,
Entesa-se a corda de embira ligeira,
Adorna-se a maça com penas gentis:
A custo, entre as vagas do povo da aldeia
Caminha o Timbira, que a turba rodeia,
Garboso nas plumas de vário matiz.

Entanto as mulheres com leda trigança,
Afeitas ao rito da bárbara usança,
O índio já querem cativo acabar:
A coma lhe cortam, os membros lhe tingem,
Brilhante enduape no corpo lhe cingem,
Sombreia-lhe a fronte gentil canitar.

O canto I é isométrico, pois seus versos apresentam uma só medida (hendecassílabos, onze sílabas métricas); é isotrófico (com estrofes regulares), consistindo em oito sextilhas; as rimas são paralelas e interpoladas, no esquema “aabccb”. De notar, ainda, a presença do recurso estilístico da aliteração em “s”, visível no verso são surdos, severos, sedentos de glória, acentuando a musicalidade do canto.
Trata-se de uma apresentação dos Timbiras, tribo de guerreiros valentes e de muitas virtudes, sobretudo bélicas, em função das quais subjugam e dominam as demais tribos da vizinhança. Um narrador em terceira pessoa, externo à história que se vai contar, exalta os Timbiras, os quais – reunidos em concílio no centro da taba, os mais idosos a conversar sobre eventos antigos, os mais jovens desejosos do início da festa que se prepara – comentam sobre um prisioneiro recentemente capturado na guerra. Mulheres azafamadas e ansiosas, posto acostumadas ao ritual cuja celebração aproxima-se, apressam-se na preparação do cerimonial e do prisioneiro, cujo corpo é pintado segundo o preceito, bem assim o corte do cabelo. No centro de tudo se acha o cativo, ainda não devidamente identificado, filho de tribo também não revelada ainda, mas que se deduz, pela correção de seus traços físicos, seja um guerreiro de estirpe digna da honrosa função antropofágica.


CANTO II

Em fundos vasos d'alvacenta argila
Ferve o cauim;
Enchem-se as copas, o prazer começa,
Reina o festim.

O prisioneiro, cuja morte anseiam,
Sentado está,
O prisioneiro, que outro sol no ocaso
Jamais verá!

A dura corda, que lhe enlaça o colo,
Mostra-lhe o fim
Da vida escura, que será mais breve
Do que o festim!

Contudo os olhos d'ignóbil pranto
Secos estão;
Mudos os lábios não descerram queixas
Do coração.

Mas um martírio, que encobrir não pode,
Em rugas faz
A mentirosa placidez do rosto
Na fronte audaz!

Que tens, guerreiro? Que temor te assalta
No passo horrendo?
Honra das tabas que nascer te viram,
Folga morrendo.

Folga morrendo; porque além dos Andes
Revive o forte,
Que soube ufano contrastar os medos
Da fria morte.

Rasteira grama, exposta ao sol, à chuva,
Lá murcha e pende:
Somente ao tronco, que devassa os ares,
O raio ofende!

Que foi? Tupã mandou que ele caísse,
Como viveu;
E o caçador que o avistou prostrado
Esmoreceu!

Que temes, ó guerreiro? Além dos Andes
Revive o forte,
Que soube ufano contrastar os medos
Da fria morte.

Também este canto é isotrófico, composto de dez quartetos. Heterométrico, porque os versos possuem diferentes medidas, alternando-se em decassílabos brancos e tetrassílabos com rimas cruzadas. Desfilam pelos quartetos várias rimas ricas, a exemplo de estão/coraçãofaz/audaz e horrendo/morrendo.
Enceta-se a festa ou o ritual de sacrifício do prisioneiro e relata-se a sua postura firme e de altiva indiferença ante a aproximação da morte. Demonstrando a princípio estar despreocupado em relação ao que estar por vir, o valente cativo oculta no seu íntimo certo desassossego, o que provoca a reflexão do narrador, o qual se interroga pelo que se passa no âmago do coração do prisioneiro, que aparenta estar agora tomado de certo receio. Prossegue o narrador expondo, como se desse voz aos antepassados ameríndios, a cultura e as crenças supersticiosas ou religiosas daqueles povos, em especial a ressurreição dos fortes e destemidos em sítios de além-Andes.


CANTO III

Em larga roda de novéis guerreiros
Ledo caminha o festival Timbira,
A quem do sacrifício cabe as honras.
Na fronte o canitar sacode em ondas,
O enduape na cinta se embalança,
Na destra mão sopesa a iverapeme,
Orgulhoso e pujante. - Ao menor passo
Colar d'alvo marfim, insígnia d'honra,
Que lhe orna o colo e o peito, ruge e freme,
Como que por feitiço não sabido
Encantadas ali as almas grandes
Dos vencidos Tapuias, inda chorem
Serem glória e brasão d'imigos feros.

"Eis-me aqui, diz ao índio prisioneiro;
"Pois que fraco, e sem tribo, e sem família,
"As nossas matas devassaste ousado,
"Morrerás morte vil da mão de um forte."

Vem a terreiro o mísero contrário;
Do colo à cinta a muçurana desce:
"Dize-me quem és, teus feitos canta,
"Ou se mais te apraz, defende-te." Começa
O índio, que ao redor derrama os olhos,
Com triste voz que os ânimos comove.

O canto III se apresenta em três estrofes, uma irregular com treze versos, um quarteto e uma sextilha. Os versos são decassílabos e, por não conterem rimas, são designados versos brancos.
Vai chegando ao final a preparação do prisioneiro para o sacrifício. Entra em cena o cacique Timbira, identificado pelo fraldão de penas (enduape), o tacape (iverapeme) e o colar d'alvo marfim, que é um colar repleto de dentes de guerreiros vencidos em batalhas. Reverbera aqui o poeta a crença indígena segundo a qual a alma dos heróis mortos encerrava-se nos seus dentes e ossos, de modo que o uso de semelhante colar, portando o espírito dos extintos guerreiros, fortalecia os vencedores.
O prisioneiro é trazido perante o chefe Timbira, que o incita a identificar-se (haja vista achar-se sozinho, sem tribo nem família, no momento em que fora dominado e aprisionado) e a cantar seus feitos. Ou, caso prefira, que se apreste a lutar por sua vida.


CANTO IV

Meu canto de morte,
Guerreiros, ouvi:
Sou filho das selvas,
Nas selvas cresci;
Guerreiros, descendo
Da tribo Tupi.

Da tribo pujante,
Que agora anda errante
Por fado inconstante,
Guerreiros, nasci:
Sou bravo, sou forte,
Sou filho do Norte;
Meu canto de morte,
Guerreiros, ouvi.

Já vi cruas brigas,
De tribos imigas,
E as duras fadigas
Da guerra provei;
Nas ondas mendaces
Senti pelas faces
Os silvos fugaces
Dos ventos que amei.

Andei longes terras,
Lidei cruas guerras,
Vaguei pelas serras
Dos vis Aimorés;
Vi lutas de bravos,
Vi fortes - escravos!
De estranhos ignavos
Calcados aos pés.

E os campos talados,
E os arcos quebrados,
E os piagas coitados
Sem seus maracás;
E os meigos cantores,
Servindo a senhores,
Que vinham traidores,
Com mostras de paz.

Aos golpes do imigo
Meu último amigo,
Sem lar, sem abrigo
Caiu junto a mi!
Com plácido rosto,
Sereno e composto,
O acerbo desgosto
Comigo sofri.

Meu pai a meu lado
Já cego e quebrado,
De penas ralado,
Firmava-se em mi:
Nós ambos, mesquinhos,
Por ínvios caminhos,
Cobertos d'espinhos
Chegamos aqui!

O velho no entanto
Sofrendo já tanto
De fome e quebranto,
Só queria morrer!
Não mais me contenho,
Nas matas me embrenho,
Das frechas que tenho
Me quero valer.

Então, forasteiro,
Caí prisioneiro
De um troço guerreiro
Com que me encontrei:
O cru dessossego
Do pai fraco e cego,
Enquanto não chego,
Qual seja - dizei!

Eu era o seu guia
Na noite sombria,
A só alegria
Que Deus lhe deixou:
Em mim se apoiava,
Em mim se firmava,
Em mim descansava,
Que filho lhe sou.

Ao velho coitado
De penas ralado,
Já cego e quebrado,
Que resta? - Morrer.
Enquanto descreve
O giro tão breve
Da vida que teve,
Deixa-me viver!

Não vil, não ignavo,
Mas forte, mas bravo,
Serei vosso escravo:
Aqui virei ter.
Guerreiros, não coro
Do pranto que choro;
Se a vida deploro,
Também sei morrer.

Os versos são isométricos, em redondilha menor, de acentuado ritmo cantante; e, sendo mais curtos, intensificam a beleza extraordinária da conjunção das rimas com o ritmo acelerado e vibrante. Com o escopo de manter a isometria, o autor serve-se de recursos como a síncope, que consiste na contração da palavra, suprimindo-lhe algumas letras e fonemas, a exemplo do que acontece com a palavra inimigo, que no poema é grafada como imigo.
O esquema de rimas é bastante complexo: na sextilha inicial ocorrem rimas alternadas e versos brancos, do tipo “abcbdb”; a partir da segunda estrofe, há uma sequência de onze oitavas, com três rimas paralelas separadas por uma rima contraposta, no esquema “eeebeeeb”, “fffgfffg” e assim sucessivamente, até ao final deste canto.
No plano do conteúdo, aqui ocorre uma mudança da voz narrativa, porquanto o próprio prisioneiro, em primeira pessoa, em seu canto de morte, identifica-se como pertencente à tribo Tupi, narra alguns de seus feitos guerreiros, refere as lides sangrentas a que assistiu e em que tomou parte, diz das tribos impávidas que o destino caprichoso quis ver cair escravas de inimigos desleais e traiçoeiros – porém, contra a expectativa geral, pois todos aguardavam para ultimar o sacrifício e a degustação do cativo, este chora e implora pela vida, por amor do pai velho e cego que deixaria desamparado no mundo, asseverando, todavia, que é valente e voltará, tão logo seja morto seu pai, para cumprir o ritual a que, por tradição, estava sujeito.


CANTO V

Soltai-o! - diz o chefe. Pasma a turba;
Os guerreiros murmuram: mal ouviram,
Nem pôde nunca um chefe dar tal ordem!
Brada segunda vez com voz mais alta,
Afrouxam-se as prisões, a embira cede,
A custo, sim; mas cede: o estranho é salvo.
- Timbira, diz o índio enternecido,
Solto apenas dos nós que o seguravam:
És um guerreiro ilustre, um grande chefe,
Tu que assim do meu mal te comoveste,      
Nem sofres que, transposta a natureza,
Com olhos onde a luz já não cintila,
Chore a morte do filho o pai cansado,
Que somente por seu na voz conhece.
- És livre; parte.
                                 - E voltarei.
                                                                   - Debalde.
- Sim, voltarei, morto meu pai.
                                                                - Não voltes!
É bem feliz, se existe, em que não veja,
Que filho tem, qual chora: és livre; parte!
- Acaso tu supões que me acobardo,
Que receio morrer!
                                                      - És livre; parte!
- Ora não partirei; quero provar-te
Que um filho dos Tupis vive com honra,
E com honra maior, se acaso o vencem,
Da morte o passo glorioso afronta.

- Mentiste, que um Tupi não chora nunca,
E tu choraste!... parte; não queremos
Com carne vil enfraquecer os fortes.

Sobresteve o Tupi: - arfando em ondas
O rebater do coração se ouvia
Precipite. - Do rosto afogueado
Gélidas bagas de suor corriam:
Talvez que o assaltava um pensamento...
Já não... que na enlutada fantasia,
Um pesar, um martírio ao mesmo tempo,
Do velho pai a moribunda imagem
Quase bradar-lhe ouvia: - Ingrato! ingrato!
Curvado o colo, taciturno e frio,
Espectro d'homem, penetrou no bosque!

O canto V é alostrófico, pois as estrofes que o integram não são uniformes, sendo um terceto, uma sextilha e duas longas estrofes, de 11 e 24 versos. Apresenta estrutura isométrica, em versos decassílabos (embora, para marcar os diálogos, um mesmo verso ocupe duas ou três linhas). Quanto às rimas, são inexistentes, sendo, assim, versos brancos.
Retrata justamente o momento em que o chefe Timbira, em face do apelo à vida feito pelo Tupi, ordena que o soltem – não sem estarrecimento geral. Há um breve diálogo entre o cacique e o prisioneiro, este insistindo que é valente e voltará para cumprir o ritual após a morte do pai, sendo desacreditado pelo cacique Timbira, o qual apenas reitera, muito lacônico, que o cativo está livre e deve parti, pois interpretara o choro como covardia, pusilanimidade que o descredenciava a morrer e ser devorado no honroso ritual de canibalismo. Apesar de sentir-se ofendido, o Tupi, após rápido embate interior entre a honra perante os inimigos e o sentimento de obrigação para com o pai, curva-se triste ante a obrigação, não sem certo luto n’alma, e sai da aldeia Timbira como se já não passasse de um fantasma humano.


CANTO VI

- Filho meu, onde estás?
                                                  - Ao vosso lado;
Aqui vos trago provisões: tomai-as,
As vossas forças restaurai perdidas,
E a caminho, e já!
                                                  - Tardaste muito!
Não era nado o sol, quando partiste,
E frouxo o seu calor já sinto agora!

- Sim, demorei-me a divagar sem rumo,
Perdi-me nestas matas intrincadas,
Reaviei-me e tornei; mas urge o tempo;
Convém partir, e já!
                                                   - Que novos males
Nos resta de sofrer? - que novas dores,
No outro fado pior Tupã nos guarda?
- As setas da aflição já se esgotaram,
Nem para novo golpe espaço intacto
Em nossos corpos resta.
                                                    - Mas tu tremes!
- Talvez do afã da caça...
                                                    - Oh filho caro!
Um quê misterioso aqui me fala,
Aqui no coração; piedosa fraude
Será por certo, que não mentes nunca!
Não conheces temor, e agora temes?
Vejo e sei: é Tupã que nos aflige,
E contra o seu querer não valem brios.
Partamos!... -
                                                     E com mão trêmula, incerta
Procura o filho, tateando as trevas
Da sua noite lúgubre e medonha.
Sentindo o acre odor das frescas tintas,
Uma idéia fatal correu-lhe à mente...
Do filho os membros gélidos apalpa,
E a dolorosa maciez das plumas
Conhece estremecendo: - foge, volta,
Encontra sob as mãos o duro crânio,
Despido então do natural ornato!...
Recua aflito e pávido, cobrindo
Às mãos ambas os olhos fulminados,
Como que teme ainda o triste velho
De ver, não mais cruel, porém mais clara,
Daquele exício grande a imagem viva
Ante os olhos do corpo afigurada.

Não era que a verdade conhecesse
Inteira e tão cruel qual tinha sido;
Mas que funesto azar correra o filho,
Ele o via; ele o tinha ali presente;
E era de repetir-se a cada instante.
A dor passada, a previsão futura
E o presente tão negro, ali os tinha;
Ali no coração se concentrava,
Era num ponto só, mas era a morte!

- Tu prisioneiro, tu?
                                       - Vós o dissestes.
- Dos índios?
                              - Sim.
                                             -De que nação?
                                                                              -Timbiras.
- E a muçurana funeral rompeste,
Dos falsos manitôs quebraste a maça...
- Nada fiz... aqui estou.
                                             - Nada! -
                                                                              Emudecem;
Curto instante depois prossegue o velho:
- Tu és valente, bem o sei; confessa,
Fizeste-o, certo, ou já não foras vivo!

- Nada fiz; mas souberam da existência
De um pobre velho, que em mim só vivia...

- E depois?...
                             -Eis-me aqui.
                                                            -Fica essa taba?
- Na direção do sol, quando transmonta.
- Longe?
                        - Não muito.
                                                       - Tens razão: partamos.
- E quereis ir?...
                                    - Na direção do ocaso.

Os versos também são decassílabos brancos, conquanto por vezes ocupem mais de uma linha, mercê da marcação do tenso diálogo entre pai e filho.
O filho reencontra o pai na floresta e tenta disfarçar e ocultar dele os fatos ocorridos perante os Timbiras, mas, enquanto lamenta os infortúnios sobre si e o filho caídos, o pai, arguto e demonstrando fineza de observação, apesar da cegueira e avançada idade, vai aos poucos percebendo – embora não inteiramente – o que acontecera ao filho, principalmente ao sentir o marcante cheiro das tintas que este trazia no corpo e ao constatar a ausência de cabelos. Porém, como sabe que o rebento é impávido, fica intrigado com o fato de ele ainda estar vivo e pede que se encaminhem na direção do pôr-do-sol – rumo à aldeia Timbira.
De notar, ainda, a distinção no tratamento verbal. Enquanto o “tu” é empregado pelo pai para dirigir-se ao filho, este, por seu turno, usa o “vós” (tratamento cerimonioso) para endereçar-se ao pai.


CANTO VII

"Por amor de um triste velho,
Que ao termo fatal já chega,
Vós, guerreiros, concedestes
A vida a um prisioneiro.
Ação tão nobre vos honra,
Nem tão alta cortesia
Vi eu jamais praticada
Entre os Tupis, - e mas foram
Senhores em gentileza.

"Eu porém nunca vencido,
Nem nos combates por armas,
Nem por nobreza nos atos;
Aqui venho, e o filho trago.
Vós o dizeis prisioneiro,
Seja assim como dizeis;
Mandai vir a lenha, o fogo,
A maça do sacrifício
E a muçurana ligeira:
Em tudo o rito se cumpra!
E quando eu for só na terra,
Certo acharei entre os vossos,
Que tão gentis se revelam,
Alguém que meus passos guie;
Alguém, que vendo o meu peito
Coberto de cicatrizes,
Tomando a vez de meu filho,
De haver-me por pai se ufane!"

Mas o chefe dos Timbiras,
Os sobrolhos encrespando,
Ao velho Tupi guerreiro
Responde com torvo acento:

- Nada farei do que dizes:
É teu filho imbele e fraco!
Aviltaria o triunfo
Da mais guerreira das tribos
Derramar seu ignóbil sangue:
Ele chorou de cobarde;
Nós outros, fortes Timbiras,
Só de heróis fazemos pasto. -

Do velho Tupi guerreiro
A surda voz na garganta
Faz ouvir uns sons confusos,
Como os rugidos de um tigre,
Que pouco a pouco se assanha!

No sétimo canto os versos são novamente brancos, em redondilha maior, composto de sete sílabas métricas ou heptassílabos. A estrofação é irregular.
Aqui, trava-se um diálogo solene entre o chefe Timbira e o velho tupi. Este, convicto do pundonor do filho, atribui a libertação deste a um ato de alta cortesia dos Timbiras para com sua condição de idoso cego. Não obstante, como também ele fora um guerreiro brioso, apresenta o filho à imolação. É desiludido, todavia, pelo cacique Timbira, que lhe assevera ter o jovem guerreiro Tupi chorado de covardia, restando inapto ao rito destinado apenas aos prisioneiros fortes.


CANTO VIII

"Tu choraste em presença da morte?
Na presença de estranhos choraste?
Não descende o cobarde do forte;
Pois choraste, meu filho não és!
Possas tu, descendente maldito
De uma tribo de nobres guerreiros,
Implorando cruéis forasteiros,
Seres presa de vis Aimorés.

"Possas tu, isolado na terra,
Sem arrimo e sem pátria vagando,
Rejeitado da morte na guerra,
Rejeitado dos homens na paz,
Ser das gentes o espectro execrado;
Não encontres amor nas mulheres,
Teus amigos, se amigos tiveres,
Tenham alma inconstante e falaz!

"Não encontres doçura no dia,
Nem as cores da aurora te ameiguem,
E entre as larvas da noite sombria
Nunca possas descanso gozar:
Não encontres um tronco, uma pedra,
Posta ao sol, posta às chuvas e aos ventos,
Padecendo os maiores tormentos,
Onde possas a fronte pousar.

"Que a teus passos a relva se torre;
Murchem prados, a flor desfaleça,
E o regato que límpido corre,
Mais te acenda o vesano furor;
Suas águas depressa se tornem,
Ao contacto dos lábios sedentos,
Lago impuro de vermes nojentos,
Donde fujas como asco e terror!

"Sempre o céu, como um teto incendido,
Creste e punja teus membros malditos
E o oceano de pó denegrido
Seja a terra ao ignavo tupi!
Miserável, faminto, sedento,
Manitôs lhe não falem nos sonhos,
E do horror os espectros medonhos
Traga sempre o cobarde após si.

"Um amigo não tenhas piedoso
Que o teu corpo na terra embalsame,
Pondo em vaso d'argila cuidoso
Arco e frecha e tacape a teus pés!
Sê maldito, e sozinho na terra;
Pois que a tanta vileza chegaste,
Que em presença da morte choraste,
Tu, cobarde, meu filho não és."

Os versos também são isométricos, compostos de nove sílabas métricas ou eneassílabos. O esquema de rimas igualmente encerra muita beleza e complexidade, com a presença do verso branco e de rimas alternadas, paralelas e contrapostas, seccionando o canto em seis oitavas e mantendo-se a regularidade no esquema “abacdeec”, (em que o 2º e o 5º são versos brancos, o 1º e o 3º constituem rimas alternadas, o 6º e o 7º formam rimas paralelas e o 4º e o 8º podem ser interpretados como rimas contrapostas).
Novamente em discurso direto, o oitavo canto é todo dedicado à terrível maldição do filho pelo pai, que, em suas impressionantes imprecações, clama que seu filho não encontre amor nas mulheres, nem doçura no dia, nem descanso para corpo, nem sossego para o espírito, enfim, pelo temível e assustador amaldiçoamento, o filho estaria condenado a não usufruir jamais nenhum bem ou prazer da existência. O contexto em que proferida a maldição é o da suposta cobardia do filho, jovem guerreiro Tupi, em face da morte.


CANTO IX

Isto dizendo, o miserando velho
A quem Tupã tamanha dor, tal fado
Já nos confins da vida reservara,
Vai com trêmulo pé, com as mãos já frias
Da sua noite escura as densas trevas
Palpando. - Alarma! alarma! - O velho pára!
O grito que escutou é voz do filho,
Voz de guerra que ouviu já tantas vezes
Noutra quadra melhor. - Alarma! alarma!
- Esse momento só vale apagar-lhe
Os tão compridos trances, as angústias,
Que o frio coração lhe atormentaram
De guerreiro e de pai: - vale, e de sobra.
Ele que em tanta dor se contivera,
Tomado pelo súbito contraste,
Desfaz-se agora em pranto copioso,
Que o exaurido coração remoça.

A taba se alborota, os golpes descem,
Gritos, imprecações profundas soam,
Emaranhada a multidão braveja,
Revolve-se, enovela-se confusa,
E mais revolta em mor furor se acende.
E os sons dos golpes que incessantes fervem.
Vozes, gemidos, estertor de morte
Vão longe pelas ermas serranias
Da humana tempestade propagando
Quantas vagas de povo enfurecido
Contra um rochedo vivo se quebravam.

Era ele, o Tupi; nem fora justo
Que a fama dos Tupis - o nome, a glória,
Aturado labor de tantos anos,
Derradeiro brasão da raça extinta,
De um jacto e por um só se aniquilasse.
- Basta! clama o chefe dos Timbiras,
- Basta, guerreiro ilustre! assaz lutaste,
E para o sacrifício é mister forças. -

O guerreiro parou, caiu nos braços
Do velho pai, que o cinge contra o peito,
Com lágrimas de júbilo bradando:
"Este, sim, que é meu filho muito amado!
"E pois que o acho enfim, qual sempre o tive,
"Corram livres as lágrimas que choro,
"Estas lágrimas, sim, que não desonram."

Os versos são decassílabos brancos; as estrofes, irregulares.
 No nono canto, o pai está moralmente prostrado depois de amaldiçoar o filho em sua pretensa cobardia, quando ouve o grito de guerra do jovem Tupi – alarma! O filho lança-se contra os Timbiras, vai desferindo golpes, matando uns, malferindo outros tantos, levando alvoroço e desespero à aldeia. O chefe Timbira ordena que cessem os combates, reconhecendo, enfim, a força e o caráter heroico do último guerreiro Tupi, dignificado, pela bravura súbita e insofismavelmente demonstrada, a passar pelo honroso rito. Então o velho, abraçando o filho, chora lágrimas que não desonram, pois de enternecimento pela valentia do filho e não por medo da morte.


CANTO X

Um velho Timbira, coberto de glória,
Guardou a memória
Do moço guerreiro, do velho Tupi!
E à noite, nas tabas, se alguém duvidava
Do que ele contava,
Dizia prudente: - "Meninos, eu vi!
"Eu vi o brioso no largo terreiro
Cantar prisioneiro
Seu canto de morte, que nunca esqueci:
Valente, como era, chorou sem ter pejo;
Parece que o vejo,
Que o tenho nest'hora diante de mi.

"Eu disse comigo: Que infâmia d'escravo!
Pois não, era um bravo;
Valente e brioso, como ele, não vi!
E à fé que vos digo: parece-me encanto
Que quem chorou tanto,
Tivesse a coragem que tinha o Tupi!"

Assim o Timbira, coberto de glória,
Guardava a memória
Do moço guerreiro, do velho Tupi.
E à noite nas tabas, se alguém duvidava
Do que ele contava,
Tornava prudente: "Meninos, eu vi!"

Os versos são heterométricos, compostos de 11 e 05 sílabas métricas mescladas.
No último canto, o narrador inicial, para dar maior verossimilhança à lenda motivadora do poema, invoca o testemunho de um velho Timbira, que resume os fatos por si presenciados, de que guardara na memória a viva impressão. Com efeito, um jovem guerreiro fora feito prisioneiro pelos Timbiras e deveria morrer em ritual antropofágico (aliás, o título do poema, I-Juca-Pirama, significa algo como “o que deve morrer”) e, mesmo sendo corajoso e destemido, implorou pela vida, como se fora um ser aviltado e fraco. Fê-lo, porém, em razão do seu amor ao velho e cego pai, no que foi atendido pelo cacique Timbira, que só dos fortes fazia pasto. É tido como cobarde, mas logo revela todo o seu valor, força e bravura de verdadeiro herói, resgatando a estima do pai e alcançando o direito ao desenlace com honra.


Cumpre ainda destacar que neste como nos demais cantos do I-Juca-Pirama há um tratamento idealizado do índio, característica marcante desta vertente do romantismo brasileiro, o qual idealismo, entretanto, não tem o condão de obnubilar o brilhantismo do gênio do nosso Gonçalves Dias e deste sublime poema.

Nenhum comentário:

Postar um comentário