quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

ONDE SE RESPONDE A OBJEÇÕES FEITAS AO ARTIGO DE NOVEMBRO E SE DEMONSTRA POR QUE AS IDEIAS DOS SOCIOLINGUISTAS NÃO SE SUSTENTAM NA RAZÃO


Por Anderson Cássio de Oliveira Lopes




A par das inúmeras manifestações de apreço, alguns questionamentos foram levantados em face do artigo intitulado A Ideologia Que Debilita o Pensamento, que publiquei em novembro último, aqui neste espaço. Alguns destes decorrem da leitura desatenta e superficial, como no caso de um contestador que, a propósito do capítulo “Moral versus ciência”, disse que eu estava errado porque a ciência tinha que ter a sua moral... Outros, entretanto, por portarem alguma relevância, merecem comentários. A eles.

1)  Ao contrário do que tentaram objetar, a norma padrão é, sim, e necessariamente, o ponto de encontro de todas as variedades linguísticas, havendo nisso superioridade lato sensu. Isso é tão óbvio que julguei despiciendas maiores explicações. Mas vamos lá: quando se fala em “variedade linguística”, a que se refere? Refere-se a variações em oposição à norma culta, desvios que a gramática normativa costuma chamar de erro. Se é para a norma padrão que todas as variedades se dirigem, pois não são senão variedades dela mesma, há nisso algo como a superioridade dum original que permaneça em relação às cópias fugazes. Essa variação tem muito pouco que ver com poder político – e a ideologia a que o artigo se reporta cumpre justamente o papel de misturar política e ciência, conspurcando esta última. A variação linguística surge em função de os falantes encontrarem-se em diferentes regiões (variação diatópica, de acordo com Eugenio Coseriu), ou em razão do nível de escolaridade, ou do jargão profissional, ou de diferenças estilísticas (variedades diafásicas) ou, finalmente, diferenças sociais (variedades diastráticas). A sobreposição de um dialeto sobre os demais, em razão do poder político, só possui interesse no momento de firmação da língua, no caso, do português. Isto não traz a menor interferência para discussão atual, que gira em torno de variedades da própria língua portuguesa. De resto, quando falo em linguagem culta, não aludo apenas à norma atual ou a algo imutável. A norma atual não é absolutamente igual à do tempo de Camões, por exemplo. Ela é diacronicamente o ponto de encontro das variantes. Formas arcaicas eventualmente resgatadas ou preservadas por alguma comunidade de falantes (e que já não se enquadrem na língua exemplar de hoje) não são anteriores à norma padrão, apenas pertencem a um estádio passado dessa mesma norma. Concordo que o referencial poderia ser outro, mas o fato é que não é. O referencial é a norma padrão tomada diacronicamente.

2) Na segunda objeção, nega-se a afirmação de que a norma padrão serve de raiz e esteio para as demais variedades linguísticas, porém não se aponta um único exemplo de variante linguística que não surge como variação da norma culta. Aliás, nem poderia, pois estaria a contrariar a definição mesma de “variedade linguística”.

3) Os sociolinguistas dizem pesquisar a “língua viva” (oral), como se tudo o que escrevemos fosse “língua morta”; passam com facilidade (por vezes insensivelmente) da proposta de descrição científica para a doutrinação e prescrição ideológicas, numa miscelânea que os torna alvo fácil para as troças; pretendem, não raro, erigir a linguagem oral espontânea das pessoas de baixa escolaridade como padrão para toda a sociedade e assim subjugar a consciência autônoma do sujeito aos programas mentais de cerceio ao livre pensamento típicos das atrasadas esquerdas.
A única maneira séria de afirmar algo generalizante e abrangente sobre a língua portuguesa empregada no Brasil seria mediante a vasta coleta e análise de registros escritos oriundos de jornais, revistas, ações judiciais, livros publicados nos últimos anos, sítios na Internet, artigos de todas as áreas da ciência e documentos de diversas profissões; e de registros orais de televisões, rádios e de um percentual significativo da população em todas as regiões. Só assim haveria condições de dizer, por exemplo, que as formas cultas do pretérito mais-que-perfeito não se empregam já. E ainda não bastaria para embasar a posição dos sociolinguistas. Primeiro, porque uma norma culta não se faz por método estatístico, simplesmente contabilizando qual das infinitas variantes, ponto a ponto, é a mais utilizada, sobretudo pelos estratos menos escolarizados, mas sim pelo estudo sincrônico e diacrônico das fórmulas presentes nas grandes obras literárias do país. Segundo, mas não menos importante, à ciência não basta descrever situações e processos, é necessário explicar-lhes os porquês. Então, finalmente, chegar-se-ia ao que todo o mundo já sabe, exceto os linguistas: o brasileiro é um povo pouco escolarizado, pouco culto; não lê em média nem quatro livros por ano. Neste nosso triste contexto de ausência de hábito de leitura, como as formas cultas da linguagem poderiam estar mais presentes no dia-a-dia da população?

4) Diferentemente do que objetara um dos comentaristas do primeiro artigo, declarar que a norma culta é duradoura não significa afirmar a sua eternidade. Que me recorde, nada feito pelo homem é eterno. Duradoura aí significa apenas que ela não é efêmera, como as demais variedades; que ela acha-se fixada e cristalizada em normas que a conservam por tempo indeterminado, embora não para sempre, como, aliás, deixei bastante claro na conclusão, quando dissera: “também não significa a defesa de uma estabilidade ultraconservadora que a língua, de fato, jamais teve ou terá, senão que as mudanças do modelo linguístico formal ocorrem segundo as leis e o dinamismo do próprio sistema – e não a golpes ideológicos”.
Por outro lado, parece que a objeção, neste ponto, envolve o desconhecimento do que seja fronteira regional. Bem, pensemos nas fronteiras existentes entre Bahia, Minas Gerais, São Paulo, Paraná, Mato Grosso. Não são fronteiras nacionais e sim regionais, espero que não haja discordância. As variedades linguísticas que surgem em cada região citada são diferentes entre si, mas a norma culta é a mesma. Por isso, esta desconhece fronteiras regionais. Mais claro que isso só o sol nordestino ao meio dia em estação de verão. Ah, sim, as fronteiras que separam a norma padrão daqui e a do português europeu não são regionais...

5) Falou-se de inexistência de base empírica que sustente o seguinte trecho: “Não fosse a norma padrão historicamente defendida, hoje um baiano monoglota não dialogaria diretamente com o gaúcho também monoglota, um paulista com um amazonense, um pernambucano com um mato-grossense, pois as pessoas de cada região falariam já um dialeto ininteligível para as demais – fato largamente documentado no processo de extinção do latim e nascimento das línguas neolatinas”. A alegação não faz o menor sentido nem possui a mais remota consistência. A base empírica está dada de forma claríssima. A comparação é bastante procedente, haja vista a similitude das situações. O latim era a norma padrão, a partir do qual surgiram variedades regionais. Essas variedades, no decurso dos séculos, firmaram-se como línguas autônomas e hoje um português monoglota não dialoga diretamente com um francês também monoglota. Mais base empírica que esta, impossível.

6) A sexta objeção é a única em que um missivista tem uns laivos de razão, porém insuficientes para invalidar a argumentação do artigo. Existe, sim senhor, correlação entre autonomia linguística e independência política, embora ocorram exceções – que são os seus laivos de razão. No caso da Espanha, o povo basco possui autonomia linguística e luta, inclusive com o emprego do terrorismo do ETA, pela correspondente independência política. Nada nos permite afirmar que amanhã ou depois a nação basca não será independente. Como eu disse no artigo, a autonomia linguística é o primeiro passo rumo ao apartamento político. Não fixei um prazo exato para que isso ocorra, mas é o movimento natural. Foi assim que a região da Gália tornou-se França e as terras da antiga Lusitânia, Portugal.
A situação europeia, que fez o latim originar o português, o espanhol, o francês, obviamente não é idêntica à do Brasil. Mas não é necessário um grau muito elevado de inteligência para abstrair uma similitude, e no artigo isso é feito por hipótese: se cada região firmasse seu próprio e autônomo dialeto, o movimento natural seria na direção da independência política. O opositor nem chega a contestar o argumento, apenas diz que cada região do Brasil não pode firmar seu dialeto, por causa da atual tecnologia da informação. Neste tópico em particular, o argumento mais batido e repetido para desprestigiar o artigo é de que este seria apenas retórico, por não trazer provas científicas de suas afirmações. Se alguém o levar a sério, dirá que não existe filosofia, já que os filósofos não costumam ir a campo em busca de dados e provas. Portanto, em conformidade com esta alegação, toda a obra de Aristóteles, Platão, Hegel não passa de mera retórica...

7) A sétima objeção demonstra pouca capacidade de compreensão do texto. De fato, a arte é apreciada por sua qualidade e beleza intrínsecas, mas é necessário certa sensibilidade para apreendê-la. E isso, com efeito, não pode de forma alguma ser apreciado por método estatístico. De resto, o conceito de beleza contém muitíssimo de convenção social (embora não descarte a existência de algum móvel individual endógeno), e ninguém pode negar à sociedade o direito de eleger seus critérios de beleza e os objetos que os ostentam. E não há dúvida sobre qual linguagem recai a noção de belo na sociedade, a qual adjudica à linguagem culta valor estético, e o fato desta deter o reconhecimento da posse desse valor confere-lhe superioridade em face de eventuais variedades dele despidas.

8) Se o artigo padece de erros (e deve padecer mesmo, estuda-se justamente para minorá-los), decerto seus opositores não souberam apontá-los, pois absolutamente nada do que se objetou é erro do artigo, como espero esteja restando inequívoco nas explicações ora oferecidas. Quem observou com atenção percebeu que o artigo parte de uma constatação da existência de uma ideologia nos cursos de Letras e afirma quais são as implicações e consequências de tal fato (debilitação do pensamento). E as provas das implicações? Bem, o conto mesmo de F. Bogo, anexado integralmente ao artigo, comprova o depauperamento da inteligência, pois o artigo demonstra o non sequitur entre bullying e gramática, que um entendimento não entibiado teria percebido e denunciado de imediato, ao invés de aplaudir com entusiasmo, como ocorrido no citado seminário. O próprio autor do Nois Mudemo, Fidêncio Bogo, é uma inteligência depauperada, porquanto não teria escrito o tal conto, com aquele leitmotiv, se não estivesse embriagado do comunismo linguístico. Mas, afinal, quem respalda o argumento do conto? Com base em que surgiu o tal ódio à gramática que perpassa o Nois Mudemo? É necessário fornecer mais provas das implicações daninhas da teoria do comunismo linguístico?
Os dados que comprovam que os cursos de Letras estão eivados da mencionada ideologia estão aí ao alcance de todos, e prova-o sobejamente o simples fato de que os livros de Marcos Bagno, em especial o seu Preconceito Linguístico, são onipresentes nas faculdades de Letras. Do contrário, é difícil apontar uma única universidade do Brasil em que os estudantes de Letras não são obrigados a ler um ou mais dos livros deste doutrinador fanático. Afinal, onde Bagno foi angariar os seus milhares de seguidores, que só uma das comunidades a ele dedicadas no Orkut possui mais de 2.800 membros, sem mencionar outros tantos espaçados por comunidades diversas ligadas à Linguística? Nos cursos de Biologia? Matemática? Ou será que o grande público não especializado interessou-se espontaneamente por esse doutrinador, cujo famigerado Preconceito Linguístico vem sendo incansavelmente reeditado (enriquecendo assombrosamente o seu solerte autor)? A dura verdade é que Marcos Bagno – nem discuto acerca dos meios de que ele para tanto se servira – auferiu basto acesso à maioria dos cursos, onde a resistência ainda não é sistemática, mas apenas pontual, como a minha. Bagno não costuma demonstrar de que bases concretas extraíra as suas ilações. Para ele, a linguagem é criada pelo homem e como este é um animal político, a linguagem é um tema político... Aí entra a ideologia, para tomar o lugar da ciência. É o mesmo que o Fiorin no seu Linguagem e Ideologia, que sem coletar nenhum dado concreto, afirma que todos só fazem repetir, mudando poucas palavras, o discurso de sua classe social... Onde as provas? Onde a coleta de dados?
Por outro lado, o artigo não nega que as pessoas eventualmente discriminem alguém ou grupos em razão da linguagem. Aliás, elas também o fazem por meio de vestimentas, automóveis, gênero, cor de pele, orientação sexual, região de nascimento, bairro de residência, enfim, parecem infinitas as possibilidades de discriminação. Seria o caso de erigir-se a teoria do “Preconceito Indumentário” ou a do “Preconceito Automotivo”? O que defende o artigo, no particular, é que o combate a qualquer forma de discriminação calha melhor ao campo da Ética.

9) Já a crítica severa que se faz ao marxismo é de natureza genérica e, ipso facto, se se descer ao nível das individualidades, das gentes comuns que eventualmente sigam essa pascácia ideologia, sempre haverá exceções. Observe-se a ingenuidade do conceito de mais-valia, autêntico chiste para qualquer pessoa minimamente iniciada em ciência econômica; ou a má-fé deliberada de Karl Marx, que, tendo acesso a dados então recentes na biblioteca de Londres, os quais comprovavam a melhoria gradual da situação econômica e laboral dos operários na Inglaterra do século XIX, preferiu utilizar informações de trinta anos antes, para não ser obrigado a retificar sua bela e falsa teoria... No mais, o marxismo, além dos inúmeros equívocos e de querer reduzir a complexidade do mundo a dois ou três simplórios esquemas de conflito e luta de classes, deu embasamento teórico aos regimes políticos mais criminosos e genocidas da história da humanidade. Por isso, pessoas tomadas particularmente talvez não os mereçam, mas o marxismo tomado genericamente merece ataques bem mais virulentos que os propostos no artigo.
O comunismo, em política, era algo maravilhoso no papel. Quem pode ser contra uma proposta que diz acabar com a desigualdade e a injustiça? Quase ninguém, por certo. O problema é que, quando quiseram pôr em prática essa maravilhosa proposta (Cuba, União Soviética, China, Coreia do Norte), criaram o regime político mais atroz de que se tem notícia na modernidade. Não obstante os continentes e situações distintos, as culturas e povos diferentes, o resultado foi invariável: autoritarismo e violência contra o pensamento não alinhado, colapso econômico e derrocada, suspensão dos direitos individuais e genecídio. A teoria do comunismo linguístico, à primeira vista e estando ainda no papel, pode parecer muito interessante, à maneira do socialismo, mas as consequências práticas também são funestas, como se observa no leitmotiv do Nois Mudemo. Em um dos contos dos Papéis Avulsos, Machado de Assis fala das teorias utópicas: “válidas no papel, mancas na realidade”.
Por outro lado, em relação ao comunismo linguístico a discussão é menos uma questão científica que de valores e de interpretação destes, pois Bagno timbra por deixar bem claro que politiza as discussões linguísticas. Um professor da universidade que curso, seguidor de Bagno, costuma dizer em sala de aula:
– Se queremos fazer a “revolução” socialista dar certo, então o primeiro passo é destruir a gramática. Nela já se acha toda a hierarquia social burguesa, em que uns mandam (sujeito) e outros obedecem (objeto) pelo emprego de todo tipo de coação (verbo).
Confesso que me ri bastante ao ouvi-lo pela primeira vez. Depois, admirei-me de alguém ainda falar de fazer revolução socialista. Por fim, compreendi que a coisa tinha a sua seriedade, visto o desprestígio da norma culta e essa linguística politizada e pouco científica andarem a galope na maioria dos cursos de Letras.

10) A décima objeção é sobre a superioridade intrínseca da norma culta e da literatura clássica. Aqui, os contestadores admitem a superioridade extrínseca, atribuída pela sociedade, mas negam a superioridade intrínseca. Este é um ponto nodal do artigo, e o que mais se faz no decurso de suas páginas não é senão o demonstrar de modo cabal. A norma culta é a única sistematizada, o que lhe confere uma clareza inexistente nas demais variedades. Um dos principais problemas de Marcos Bagno e da objeção que agora se apresenta, é que leva em consideração apenas a língua falada, olvidando-se da escrita. E há infinitamente mais documentação (base empírica, se quiser) da modalidade escrita do que da falada. Já a superioridade da literatura clássica, sinceramente, dispensa maiores comentários.
A linguagem escrita emergiu na humanidade muito depois da oral. Na realidade, a linguagem oral é a base a partir da qual surgiu a escrita. Esta é um aperfeiçoamento daquela, um passo à frente na evolução do processo mediador do homem com o mundo, uma maneira mais eficiente de preservar, produzir e disseminar o conhecimento. É como o neocórtex e as regiões mais recentes da evolução cerebral – responsáveis pelas funções nobres do cérebro, como memória, capacidade de raciocínio e abstração – em relação a áreas antigas, como o cerebelo, ligadas a atividades autônomas e profundas e já presentes em diversos animais praticamente da mesma forma que no homem. As funções do neocórtex, dando suporte biológico à inteligência humana, são consideradas superiores, assim como o registro escrito formal, em relação às variedades informais espontâneas desprovidas de cultivo. Isso não significa que as funções desempenhadas pelos sítios mais remotos do cérebro não sejam fundamentais, porquanto o são de fato. Aliás, nisso superam as áreas nobres, até porque milhões de espécies vivem muito bem sem estas, mas não sem aquelas. Todavia, a inteligência humana, embora não sendo absolutamente essencial à vida, é superior pelas vantagens comparativas que confere aos homens em detrimento dos outros seres. Na ciência moderna, constata-se que as funções superiores na escala evolutiva sempre são mais recentes, por se evoluírem a partir de sistemas básicos preexistentes. Ora, o mesmo se dá na relação entre os dois modos de linguagem, tendo sido a linguagem escrita engendrada a partir da oral.
Em suma: existem regiões antigas de cérebro, de mesma forma que existe a linguagem oral, ambas antigas e essenciais. E há igualmente as regiões recentes do cérebro, evoluídas a partir das antigas e a elas superiores por desempenharem as funções nobres supracitadas, de mesma maneira que existe a linguagem escrita formal, evoluída a partir da linguagem oral e superior pelo que representa em termos de produção, disseminação e armazenamento do conhecimento, sobretudo num mundo cada vez mais intensamente lastreado na tecnologia e na ciência, como é o mundo atual.
Vejamos, porém, a questão por outro ângulo: que provas algum sociolinguista nos oferece de que dois sistemas linguísticos quaisquer são insofismavelmente iguais em valor? Onde foi que Marcos Bagno ou qualquer outro linguista apresentaram uma pesquisa – amparada em metodologia científica, escrutinada por pares e reproduzida em diversos contextos – em que provam cabalmente que nenhum sistema linguístico é intrinsecamente superior a outro? Sem este tipo de amparo, com base em que um missivista vem contestar o argumento central do artigo? Respondo: com base num dogma ideológico, nada mais, pois a maior parte dos sociolinguistas na prática não são mais que meros sacerdotes da igreja fundada por Marx.
O artigo afirma a superioridade da norma culta padrão e demonstra-o de diversas formas. A coisa funciona como silogismo, se se admitirem as premissas, a conclusão é inescapável. Se o sistema linguístico “A” possui mais recursos de expressão, que abarcam um maior número de nuanças e situações as mais diversas, distinguindo circunstâncias de pensamento que um sistema “B” nem sequer entrever, então será que o primeiro não possui um valor funcional intimamente superior ao outro? Como já disse o filósofo Ludwig Wittgenstein, no Tractatus: "os limites da minha linguagem são também os limites do meu pensamento". Uma linguagem com mais recursos alarga o pensamento. Essa linguagem não é superior? A questão toda é reconhecer que uma variedade linguística com mais recursos expressivos é superior a outra que detenha menos recursos. Só isso. Então o problema restringir-se-á a descobrir se a linguagem culta padrão possui os mesmos recursos que uma variedade informal. Se se reconhecer que a linguagem culta padrão possui mais recursos – o artigo parte desta premissa – então a conclusão é silogisticamente inelutável: ela é intrinsecamente superior. Os sociolinguistas teriam que comprovar, desmentindo Wittgenstein, que essa maior quantidade de recursos linguísticos inerente à linguagem culta padrão não importa implicações com a qualidade ou a abrangência do pensamento. Nenhum linguista jamais ofereceu tal prova – Bagno muito menos. Sem uma prova desse jaez, repito, a tese central do meu artigo permanece intacta e um sociolinguista não poderá impugná-lo senão com espeque em crença ideológica ou em formalidades acadêmicas irrelevantes ao âmago da disputa.
Para compreender a superioridade da norma padrão do registro escrito é necessário ter presente a noção de valor, de por que razão algo é superior a alguma outra coisa. Se se julgar que filosofia e ciência não são atividades superiores a uma simples conversa na feira-livre, tudo bem, Bagno e os sociolinguistas estariam corretos. Todavia, se se concordar que são, sim, superiores, então, o tipo de linguagem que lhes permita a expressão e o desenvolvimento é igualmente superior, porque não se concebe que algo superior seja constituído, expresso e desenvolvido por uma atividade e um instrumental que não correspondam a essa superioridade. Será que todas as inteligências são iguais? Que não existem atividades ou exercícios capazes de fazer uma inteligência superar outra ou a si própria? E o que é inteligência? E a habilidade linguística, não interfere na inteligência (entendimento) dos fatos e do mundo? Bettina Steren dos Santos, discutindo a teoria de Vygotsky, escreve o seguinte: Partindo do pressuposto de que as mudanças qualitativas devem ser analisadas desde o método genético-evolutivo, Vygotsky afirmava que estas mudanças devem ser associadas a novas formas de mediação, realizadas através de ferramentas as quais tomarão a forma de instrumentos e de signos. As mudanças evolutivas podem ocorrer em função da introdução de novas formas de mediação ou também devido à transição para versões mais avançadas de uma forma de mediação já existente[1]. O que muitos linguistas jamais compreenderão, mercê da ideologia a que se alienam, é que o registro escrito da linguagem é um avanço em relação à linguagem oral. Ou seja, não escrevemos apenas para registrar o que é falado, mas também – e principalmente – para estabelecer uma mediação melhor e mais eficiente com o mundo e com nós próprios, com os nossos pensamentos, motivo pelo qual desde os antigos gregos a humanidade sentiu a inevitável necessidade de normalizar a linguagem, sobretudo a escrita. Mas muitos sociolinguistas, querendo a todo custo igualar os desiguais, invertem a lógica de causa e consequência, quando trata de filosofia, ciência e sociedade. A filosofia e a ciência não são superiores porque a sociedade lhes concede esse atributo. Pelo contrário, a sociedade percebe que elas são intrinsecamente superiores e passa a respeitá-las como tal. Suponhamos que a filosofia tenha surgido na antiga Grécia e a ciência na Europa. Como foi que elas ganharam o mundo? Por mérito intrínseco ou atribuição externa? Por suas consequências intrinsecamente favoráveis a quem as detém ou por seu poder de sedução para angariar votos e apoios? Não vejo como deixar de reconhecer que essa superioridade é intrínseca.
Outro ponto: quando se fala em linguagem, refire-se menos às palavras em si (signo altamente arbitrário em qualquer sistema linguístico humano conhecido) e tomadas isoladamente, que às relações que elas estabelecem entre si, ligando-se de um modo sistemático que seja mais favorável a que se busque o domínio da natureza em nosso benefício (ciência) e a expressão de nossas mais altas especulações (filosofia). Impende observar que, numa língua, o todo é bem maior e mais significativo que a mera soma das suas partes constituintes (palavras, letras, acentos). Esta padronização da linguagem dita culta acha-se em outro patamar, é superior. Não há provas de que a sua alteração constante, em função de variações linguísticas fugazes e fortemente associadas ao parco acesso a escola de qualidade, traga benefícios à sociedade.
Antes de prosseguir, segue a íntegra do texto de Cláudio Moura Castro citado no meu artigo.
Os meninos-lobo
"Nossa juventude estará mal preparada para a sociedade civilizada se insistirmos em uma educação que produz uma competência linguística pouco melhor do que a de meninos-lobo"
No velho conto de Rudyard Kipling “Mogli, o Menino-Lobo”, o autor descreve uma criança que, adotada por uma loba, cresce sem jamais haver usado uma só palavra humana, até ser encontrada e se integrar à sociedade. O conto é atraente, mas cientificamente absurdo. Porém, houve outros casos, supostamente reais, de crianças criadas por animais. E também casos reais (até recentes) de crianças que cresceram isoladas e sem oportunidades de aprender a falar.
Faz tempo, meninos-lobo e outros jovens criados sem interação humana despertaram o interesse da psicologia cognitiva e da linguística. A razão é que seriam um experimento natural que permitiria responder a uma pergunta crucial: esses jovens, sem conhecer palavras, poderiam pensar como os demais humanos?
A questão em pauta era decidir se pensamos porque temos palavras ou se seria possível pensar sem elas. Como os meninos-lobo não conheciam palavras, se podiam pensar, teria de ser sem elas. Nos diferentes casos de crianças criadas em isolamento, ficou clara a enorme dificuldade de ajustamento que elas encontraram ao ser reabsorvidas pela sociedade. Muitas jamais se ajustaram, fosse pelo trauma do isolamento, fosse pela impossibilidade de pensar humanamente sem palavras. Mas o fato é que não desenvolveram um raciocínio (abstrato) classicamente humano.
O interesse pelos meninos-lobo feneceu. Mas se aprendeu muito desde então, e hoje não se acredita que o pensamento sem palavras seja possível – pelo menos, o pensamento simbólico que é a marca dos seres humanos. Ou seja, Mogli não seria capaz de pensar.
"Vivemos em um mundo de palavras", diz o celebrado antropólogo Richard Leakey. "Nossos pensamentos, o mundo de nossa imaginação, nossas comunicações e nossa rica cultura são tecidos nos teares da linguagem... A linguagem é o nosso meio... É a linguagem que separa os humanos do resto da natureza." Para o neuropaleontólogo Harry Jerison, precisamos de um cérebro grande (três vezes maior do que o de outros primatas) para lidar com as exigências da linguagem.
Portanto, se pensamos com palavras e com as conexões entre elas, a nossa capacidade de usar palavras tem muito a ver com a nossa capacidade de pensar. Dito de outra forma, pensar bem é o resultado de saber lidar com palavras e com a sintaxe que conecta uma com a outra. O psicólogo Howard Gardner, com sua tese sobre as múltiplas inteligências, talvez diga que Garrincha tinha uma "inteligência futebolística" que não transitava por palavras. Mas grande parte do nosso mundo moderno requer a inteligência que se estrutura por intermédio das palavras. Quem não aprendeu bem a usar palavras não sabe pensar. No limite, quem sabe poucas palavras ou as usa mal tem um pensamento encolhido.
Talvez veredicto mais brutal sobre o assunto tenha sido oferecido pelo filósofo Ludwig Wittgenstein: "Os limites da minha linguagem são também os limites do meu pensamento". Simplificando um pouco, o bem pensar quase que se confunde com a competência de bem usar as palavras. Nesse particular não temos dúvidas: a educação tem muitíssimo a ver com o desenvolvimento da nossa capacidade de usar a linguagem. Portanto, o bom ensino tem como alvo número 1 a competência linguística.
Pelos testes do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb), na 4ª série 50% dos brasileiros são funcionalmente analfabetos. Segundo o Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa), a capacidade linguística do aluno brasileiro corresponde à de um europeu com quatro anos a menos de escolaridade. Sendo assim, o nosso processo educativo deve se preocupar centralmente com as falhas na capacidade de compreensão e expressão verbal dos alunos.
Ao estudar a Inconfidência Mineira, a teoria da evolução das espécies ou os afluentes do Amazonas, o aprendizado mais importante se dá no manejo da língua. É ler com fluência e entender o que está escrito. É expressar-se por escrito com precisão e elegância. É transitar na relação rigorosa entre palavras e significados.
No conto, Mogli se ajustou à vida civilizada. Infelizmente para nós, Kipling estava cientificamente errado. Nossa juventude estará mal preparada para a sociedade civilizada se insistirmos em uma educação que produz uma competência linguística pouco melhor do que a de meninos-lobo.[2]
Não faltam evidências, indícios e correlações – com espeque em várias áreas da ciência – de que a capacidade de pensar do ser humano está solidamente associada ao conhecimento e domínio de palavras e a um modo eficiente de uni-las em enunciados e textos. Não há dúvidas de que a linguagem culta padrão dispõe de um léxico incomensuravelmente maior que o das variedades informais da linguagem, orais na generalidade; como também não se põe em xeque que as possibilidades sintáticas (de conexão entre esses vocábulos) da primeira são bem mais ricas, complexas e variadas que as das segundas. Quem duvidar disso, faça o teste: garanto que apenas um Dom Casmurro reúne mais termos distintos que horas e horas de diálogos gravados de dezenas de falantes sem domínio de norma culta padrão, assim como também o esqueleto linguístico da história de Bentinho é bem mais amplo que o “sujeito-verbo-objeto” quase indefectível na linguagem coloquial.
Ainda resta saber se “pensar” é algo intrinsecamente superior. Todo o relativo domínio que o ser humano exerce sobre a natureza e os demais seres vivos – considerando a ausência de maior força física, de aptidão natural para o voo ou deslocamento veloz em terra, a pouca proteção oferecida por nossa pele e a fragilidade geral dos indivíduos da espécie, em confronto com outros animais – só se compreende como função de sua habilidade de pensamento, que o torna superior aos demais, dominando-os. Frívolo, portanto, seria querer atribuir (ao invés de reconhecê-la) superioridade ao pensamento, pois ela impõe-se.
Ora, se é certo que o pensamento é a função mais nobre e superior do ser humano, se é igualmente certo que pensamos por palavras e seus arranjos e se se sabe, por fim, que a norma culta padrão colige e coordena um número bem mais vasto dessas palavras e arranjos sintáticos – substância e veículo do pensamento simbólico humano –, é irrelevante e mesmo ociosa qualquer atribuição externa de superioridade e, destarte, só uma obtusidade mórbida ou um fanatismo ideológico muito arraigado podem empecer, contra a torrente das evidências, o reconhecimento da superioridade intrínseca da norma culta padrão frente às variedades informais da linguagem, notadamente na expressão escrita.

11) Vejo que há sempre um apelo a uma suposta “natureza” da língua, sempre tendente à variação, a qual estaria, assim, justificada e autorizada. Bem, a tendência natural da língua, sem dúvida, é variar e modificar-se com o tempo, mas uma norma padrão, opondo-se a isso, cumpre o mesmo papel que toda a produção tecnológica – obsta, em favor do gênero humano, a tendência natural das coisas. E não há dúvidas de que o segredo do sucesso da espécie humana foi exatamente ter aprendido a submeter a natureza e pô-la a seu serviço. Se fosse apenas por ela (a natureza), não sobreviveríamos muito mais do que 25 anos e a maior parte de nossa progênie perderia a peleja pela vida diante de amebas e outros microrganismos prejudiciais. Esse tipo de raciocínio que endeusa a natureza e lhe atribui um caráter moral não se coaduna com o espírito científico que deveria nortear a atuação de linguistas. Quando infectam um homem, a tendência natural das bactérias é a proliferação até levá-lo à morte, seja por uma tuberculose, seja por qualquer outra doença infecciosa; já a propensão natural de um rio é seguir o seu leito até desaguar no mar, num lago ou num rio maior; mas o homem, com seu espírito egocêntrico e o seu conhecimento científico (e as ciências de hoje são em geral um desdobramento da filosofia natural de ontem), modifica a natureza em seu favor, criando antibióticos que obstam a tendência natural de uma infecção, restituem-lhe a saúde e ampliam-lhe a sobrevida; ou edificando grandes barragens que bloqueiam a propensão natural do rio, geram energia elétrica e promovem o conforto da sociedade. Neste diapasão, uma norma padrão da linguagem funciona como uma penicilina ou uma barragem que dificulta a natural degradação das línguas, em benefício de uma comunicação mais eficaz entre o maior número de pessoas por espaço mais largo de tempo. Destaco que degradação não está aqui num sentido necessariamente negativo, mas apenas como constatação de que as línguas, com os séculos, destroem-se para originar outras novas, consoante mencionado no artigo. É do interesse da sociedade fixar um padrão e preservá-lo contra a corrosão natural – tanto mais contra a corrosão ideológica – para que, todos falando a “mesma língua”, o debate concentre-se nas ideias e na sua disseminação. E mais interessante ainda é “nivelar por cima”, tomando como modelo o uso dos maiores estudiosos, intelectuais e pensadores dessa língua, fazendo deste um dos vários instrumentos para a elevação do índice de aperfeiçoamento humano da nossa sociedade.
Trago em apoio do artigo o argumento abalizado do filósofo Olavo de Carvalho: As normas não estreitam o campo de possibilidades, pela simples razão de que são elas que o criam. No linguajar corrente da mídia e da universidade, fortemente impregnada de preconceitos ideológicos e de um certo espírito de rebelião pueril, “norma” virou sinônimo de amarra, de limitação, de escravidão. Mas uma falsa semântica não tem o poder de mudar a estrutura da realidade. A norma é precisamente a ordenação racional pela qual a ação humana organizada pode vencer as limitações naturais e tornar possível a liberdade individual. Toda língua compõe-se de normas, e quando a gramática normativa explicita essas normas ela faz delas um instrumento de ação. Uma língua sem normas explícitas teria ainda estrutura e ordem internas, apenas essa estrutura e ordem, permanecendo implícitas e inconscientes, escravizariam totalmente o pensamento humano, subjugando-o a regras desconhecidas. A língua, em vez de servir ao pensamento, seria substitutivo dele, e as inteligências se desperdiçariam buscando combinações gramaticais em vez de, apoiadas numa estrutura gramatical fixa e consciente, estar livres para pensar. A gramática é a arte da construção de sons e grafismos, e ela serve ao pensamento como a arte da construção civil serve aos propósitos de uso do edifício. Se o uso, ao contrário, passa a ser determinado pela construção, o morador serve ao edifício e não este àquele. A simplificação e normatização dos meios cria a liberdade na esfera dos fins. Uma gramática “livre” de normas criaria uma lógica escrava da gramática. Seria a maior catástrofe intelectual de toda a história humana.[3]

12) Alguns questionadores reclamaram, com alguma razão, da quase ausência de citação dos textos de Bagno, que eu em verdade dispensei em razão do receio de macularem a estética do artigo... Mas agora colmatarei esta lacuna.
Bagno escreve: Ninguém comete erros ao falar sua própria língua materna, assim como ninguém comete erros ao andar ou ao respirar. Só se erra naquilo que é aprendido, naquilo que constitui um saber secundário, obtido por meio de treinamento, prática e memorização: erra-se ao tocar piano, erra-se ao dar um comando ao computador, erra-se ao falar/escrever uma língua estrangeira. (Preconceito Linguístico, pág. 124). O problema é que só há duas possibilidades para tudo aquilo que um indivíduo sabe ou domina: ou é aprendido ou é inato. Como, para Bagno, a língua não é aprendida, conclui-se que para o dito-cujo ela é inata... E mais: será mesmo que ninguém comete erros ao andar ou ao respirar? Quando alguém tropeça e cai, será que andou corretamente? Basta ser bípede para perceber os absurdos nada científicos defendidos por Bagno. A língua é exatamente o contrário do que diz tal inepto: ela não é um saber primário, mas transmitida ao indivíduo pelas pessoas à sua volta e também, no tocante à norma culta, adquirida pelas gentes mediante um esforço metódico, treinamento, prática e memorização.
Outras tantas transcrições das postulações estúpidas de Bagno estão no seguinte artigo, de autoria de Marco Aurélio Torres Antunes. Ei-lo:
CHARLATANISMO NA LINGÜÍSTICA
“A língua não se impõe ao indivíduo: o indivíduo dispõe dela para manifestar sua liberdade de expressão”. Eugenio Coseriu
A incompetência da maioria dos nossos intelectuais faz com que teorias falsas ganhem cada vez mais espaço em diversas áreas do conhecimento. A Teologia da Libertação, o Direito Alternativo, a Pedagogia do Oprimido, o Marxismo e outras aberrações encontram nas universidades brasileiras um solo fértil para se proliferarem, e a responsabilidade só pode ser atribuída aos nossos intelectuais, muitos deles dedicados à doutrinação ideológica. Nos cursos de Letras, os livros de Marcos Bagno são muito lidos. O seu livrinho “Preconceito Lingüístico” vendeu milhares de exemplares, e contamina as mentes de muitos professores. Para Marcos Bagno, o ensino da norma culta da língua portuguesa desrespeita a variedade lingüística falada pelos alunos, que não podem ser corrigidos para que não seja ferida a auto-estima deles... Marcos Bagno é adepto do laissez-faire gramatical. Para ele, não há erro: existem diversas variedades lingüísticas, e nenhuma é melhor do que a outra. O ensino da língua padrão seria um instrumento de opressão das elites detentoras do poder econômico e político... É tão grande o número de dislates do plumitivo que escreveu “Preconceito Lingüístico”, que é preciso muita paciência para ler o seu livro; a todo momento é grande a vontade de abandoná-lo e de procurar páginas mais higiênicas...
As teorias falsas ganham adeptos porque nas universidades brasileiras impera o terrorismo intelectual: os melhores escritores não são estudados e os alunos não são estimulados a desenvolverem um pensamento próprio. A censura que hoje existe nas universidades é muito mais danosa do que a do último regime militar. Nos cursos de Letras, alguns dos maiores estudiosos da Lingüística e da Língua Portuguesa são pouco estudados: Eugenio Coseriu, Mattoso Câmara, Eugen Rosenstock-Huessy, Celso Cunha, Rocha Lima, Evanildo Bechara, Sílvio Elia, Antenor Nascentes, Ismael Coutinho, Manuel Said Ali e Gladstone Chaves de Melo são alguns dos escritores que não têm recebido a atenção que merecem. Disciplinas que serviam de alicerce à formação do professorado estão sendo abandonadas: Latim, Gramática Histórica, História da Língua, Filologia Portuguesa, Filologia Românica... Em conseqüência, nossos cursos de Letras despejam milhares de semi-analfabetos anualmente no mercado de trabalho, perpetuando assim o ciclo da ignorância.
Marcos Bagno repete ad nauseum a palavra “preconceito”, muito usada por subintelectuais que pretendem estigmatizar idéias que lhes parecem estranhas, com o objetivo de rejeitá-las in limine, mesmo que elas não sejam preconceituosas. Preconceito, como se sabe, é opinião elaborada precipitadamente, sem maior reflexão. Uma idéia preconceituosa geralmente é equivocada, mas ela pode até estar certa. Hoje em dia, “preconceito” deixou de ser um “pré-conceito” para ser sinônimo de “discriminação”. Sei por experiência própria que qualquer tentativa de impugnar teorias como a do preconceito lingüístico são logo tachadas de preconceituosas nas nossas universidades. Conheço muitos professores que são impermeáveis à argumentação racional: não gostam de ser desafiados a justificarem as suas idéias. Preferem a doutrinação discreta, que não desperta suspeitas nos alunos mais desatentos. Quando alguém ousa criticar as idéias dominantes, é logo estigmatizado. Em suma: não há debate, não há confronto de idéias, e é nessa atmosfera tóxica que se desenvolvem as teorias falsas que debilitam a inteligência da juventude.
Na ânsia de transferir a sua investigação para a esfera política, de substituir a busca da verdade pelo esquema maniqueísta “amigo X inimigo”, Marcos Bagno atropela a lógica e o bom senso logo na primeira página do seu livreto. Segundo Bagno, se a língua é humana e o homem é um animal político (citação indevida de Aristóteles, que considerava apenas o bem comum, e não a adesão a grupos ou classes ), então a língua é um tema político. Ora, se seguíssemos o raciocínio de Marcos Bagno, chegaríamos a conclusões absurdas: por exemplo, se a ciência é humana e o homem é um animal político, então ciência é política, ciência é ideologia. Bagno confessa que a sua obra politiza as questões da linguagem. A deturpação que as teorias da linguagem sofrem nos textos de Marcos Bagno confirma a veracidade da frase de Eric Voegelin: “O pensador ideológico cria uma linguagem para expressar não a realidade, mas a sua alienação dela”.
Bagno considera um mito a unidade lingüística do Brasil. Para ele, não faz sentido falar em unidade lingüística no Brasil porque há diversidade no português falado no Brasil. Mas unidade não é igualdade. Ora, a nossa unidade lingüística não é absoluta; o Brasil apresenta maior unidade lingüística na comparação com outros países. Há menos diferenças dialetais entre o Amazonas e o arroio Chuí do que entre o norte e o sul de Portugal. Marcos Bagno considera que a diversidade do português falado no Brasil é causada principalmente pela “trágica injustiça social”. A diversidade a que Bagno se refere ocorre em todas as línguas: segundo Eugenio Coseriu, toda língua apresenta variedades diafásicas (estilísticas), diatópicas (regionais) e diastráticas (sociais). Marcos Bagno considera errado aceitar a unidade lingüística do Brasil, pois a escola então imporia a “sua norma lingüística como se ela fosse, de fato, a língua comum a todos os brasileiros”. Mas a escola não impõe a norma culta; ela apenas acrescenta mais uma variedade lingüística. A língua padrão é superior às outras por ser o ponto de encontro de todas as variedades lingüísticas. Todo povo que atinge determinado nível cultural cria uma forma especial de comunicação, que vai sendo enriquecida e apurada ao longo do tempo: a língua padrão, um instrumento geral de comunicação, a todos inteligível, a todos dirigido, destinando-se a qualquer região, em qualquer tempo. É supra-regional e acrônica. Por isso a norma culta tem de ser clara, regulamentada, conservadora. A língua padrão é objeto de aquisição consciente; é suscetível de apuração e enriquecimento, ou de degeneração e empobrecimento. Ensinar a língua padrão é capacitar o indivíduo a compreender o patrimônio cultural da língua portuguesa. O português é uma língua de cultura; fazer com que os indivíduos sejam capazes de explorar todas as nuances da língua é enobrecê-los, é libertá-los. Quem não adquiriu a língua culta é deficiente, está diminuído, inferiorizado.
Marcos Bagno considera que “todo falante nativo de uma língua sabe essa língua.” E logo adiante acrescenta: “Está provado e comprovado que uma criança entre os 3 e os 4 anos de idade já domina perfeitamente as regras gramaticais de sua língua!” Bagno afirmou que a língua materna “é adquirida pela criança desde o útero, é absorvida junto com o leite materno.” Marcos Bagno omite a distinção que se tornou clássica na Lingüística moderna: língua transmitida e língua adquirida. A língua transmitida é a que recebemos do nosso meio social. A língua adquirida é a literária, a culta, que se aprende na escola, conscientemente, metodicamente. Para quem quer, de fato, escrever certo e bem, é preciso aprendê-la pelo resto da vida. A língua adquirida é intrinsecamente superior, pois é clara, rica, intemporal, supra-regional e supra-segmental.
Marcos Bagno cita com entusiasmo os nocivos “Parâmetros Curriculares Nacionais”, do Ministério da Educação: “A imagem de uma língua única, mais próxima da modalidade escrita da linguagem, subjacente às prescrições normativas da gramática escolar, dos manuais e mesmo dos programas de difusão da mídia sobre “o que se deve e o que não se deve falar e escrever”, não se sustenta na análise empírica dos usos da língua.” Em primeiro lugar, a gramática normativa não pressupõe uma língua única; pelo contrário, a norma culta é o ponto de encontro de todas as variedades, é o resultado da evolução histórica de uma língua, e não da vontade dos gramáticos, que apenas sistematizam os fatos da língua contemporânea. Também é errado considerar apenas a língua falada; a língua literária é importantíssima para que se estabeleça a norma culta a ser ensinada nas escolas. E a língua literária não é espontânea; portanto, deve ser estudada, pois é instrumento da cultura, da civilização de um povo. Outro problema do método sugerido por Marcos Bagno é que estatisticamente não se descobre nenhum padrão. A língua padrão envolve necessariamente a noção de ideal, mesmo que ele não seja alcançado. A língua padrão é a forma lingüística ideal. Bagno ignora a dimensão deôntica (o “dever ser”) da língua.
Este trecho do livro de Marcos Bagno revela a sua inópia mental: “Pois é disso precisamente que mais necessitamos hoje no Brasil: da descrição detalhada e realista da norma culta objetiva, com base em coletas confiáveis que se utilizem dos recursos tecnológicos mais avançados, para que ela sirva de base ao ensino/aprendizagem na escola, e não mais uma norma fictícia que se inspira num ideal lingüístico inatingível, baseado no uso literário, artístico, particular e exclusivo dos grandes escritores.” É verdade que o povo faz a língua, mas é mais correto dizer que o povo faz a língua e uma elite a aperfeiçoa (elite cultural, obviamente, que abrange pessoas de diversas classes sociais). A norma culta a ser ensinada nas escolas deve ser aquela que os gramáticos sistematizaram a partir da língua literária, dos melhores escritores. A própria norma culta muda com o tempo, é verdade, mas as mudanças precisam estar consolidadas na língua literária. Não devemos aceitar como língua a ser estudada nas escolas a variedade lingüística obtida por métodos estatísticos, pois ela não possui as características da língua padrão.
Marcos Bagno disse que é preciso “dar-se conta de que a língua portuguesa não vai nem bem, nem mal.” Ele não percebe que o problema não está no sistema lingüístico, e sim no empobrecimento do português na fala das classes letradas. José Guilherme Merquior, no livro “O elixir do apocalipse”, entendeu bem a questão: “a língua é rica e plástica; a fala (no sentido de Saussure, e portanto, tanto oral quanto escrita) é que anda pobre e trôpega.” Marcos Bagno afirma que a nossa língua não está em crise porque “o português nunca foi tão falado, tão escrito, tão impresso e tão difundido mundo afora pelos mais diferentes meios de comunicação.” Mas a crise não pode ser avaliada por critérios quantitativos. Se o português nunca foi tão falado, é porque a população nunca foi tão grande; se ele nunca foi tão escrito, é por causa do desenvolvimento do mercado editorial. Fica a pergunta: o português nunca foi tão falado e tão escrito, mas ele está sendo bem falado e bem escrito? Não é preciso ser muito esperto para perceber que não. Nossa literatura passa por um momento nada elogiável, e os livros mais vendidos costumam ser muito mal escritos. Além disso, há um grande número de analfabetos funcionais em diversos setores da sociedade, até mesmo naqueles ligados à cultura, como é o caso das universidades.
Em nenhum momento Marcos Bagno tenta melhorar a qualidade do ensino de português; pelo contrário, ele só faz elogios à ignorância. Para ele, “respeitar a variedade lingüística de toda e qualquer pessoa equivale a respeitar a integridade física e espiritual dessa pessoa como ser humano”. Para Marcos Bagno, o ensino não deve “rebaixar a auto-estima do indivíduo.” Ao tratar dos pronomes o/a, de construções como “eu o vi” e “eu a conheço”, Bagno afirma sobre os pronomes o seguinte: “se as crianças não usam é porque não ouvem os adultos usar, e se os adultos não usam é porque não precisam desses pronomes.” Para Marcos Bagno, se as pessoas não costumam usar determinadas expressões, elas são desnecessárias. Ora, se isso fosse verdade, não precisaríamos de escolas. A função da educação é elevar o homem perante si mesmo. Se seguíssemos Marcos Bagno, não evoluiríamos nunca, seríamos sempre escravos da nossa ignorância.
Bagno cita novamente os famigerados “Parâmetros Curriculares Nacionais”, que tratam do “preconceito decorrente do valor atribuído às variedades padrão e ao estigma associado às variedades não-padrão, consideradas inferiores ou erradas pela gramática.” O ensino da norma culta da língua não desrespeita o saber lingüístico prévio de cada um, pois ele não será substituído, e sim ampliado e enriquecido. Como afirmou Evanildo Bechara, a missão do professor de língua materna é transformar o aluno num poliglota dentro da sua própria língua, de modo que ele possa escolher a língua funcional adequada a cada situação.
Segundo Marcos Bagno, “a idéia de que “português é muito difícil” serve como mais um dos instrumentos de manutenção do status quo das classes privilegiadas.” Bagno escreveu esta bobagem: “Tal como na Índia antiga, o conhecimento da “gramática” é reservado a uma casta sacerdotal, encarregada de preservá-la “pura” e “intacta”, longe do contato infeccioso dos párias.” Bagno concorda com um tal Maurizzio Gnerre, para quem a suposta dificuldade da língua é “o arame farpado mais poderoso para bloquear o acesso ao poder.” Para Marcos Bagno, a linguagem humana não tem a finalidade de transmitir idéias, e sim de “ocultar o saber, reservá-lo a uns poucos para garantir o poder àqueles que a ela têm acesso.” São tantos os delírios de Marcos Bagno que eu nem preciso refutá-los: basta citar as suas próprias palavras...
Marcos Bagno escreveu a seguinte besteira: “A Constituição afirma que todos os indivíduos são iguais perante a lei, mas essa mesma lei é redigida numa língua que só uma parcela pequena de brasileiros consegue entender. A discriminação social começa, portanto, já no texto da Constituição.” Não sei em que variedade de língua Bagno gostaria que a Constituição fosse escrita... Se a Constituição é dirigida a todos, só pode ser escrita na língua padrão.
Bagno critica aqueles que lamentam o baixo índice de leitura dos brasileiros, que seria resultado apenas do grau de desenvolvimento econômico. Não acredito que o problema possa ser explicado apenas por motivos econômicos. Há países com nível de desenvolvimento econômico semelhante ao nosso e que têm maior vitalidade cultural. Para consumir lixo cultural, como os livros de Marcos Bagno, certamente não falta dinheiro...
Bagno afirma que “do ponto de vista científico, simplesmente não existe erro de português.” Mas a verdade, como assinalou Gladstone Chaves de Melo, é que “erro é o que destoa da tradição, dos bons hábitos lingüísticos de uma comunidade; acerto é o que afina com tais hábitos, o que se liga com uma tradição e a continua.”
Marcos Bagno escreve tantas bobagens que preciso omitir a refutação de algumas delas para não esgotar a paciência do leitor. Mais um exemplo: Bagno atropela a lógica novamente ao afirmar que “uma vez que a língua está em tudo e tudo está na língua, o professor de português é professor de TUDO.” (sic)
Bagno afirma que o tal “preconceito lingüístico” só acabará “quando houver uma transformação radical do tipo de sociedade em que estamos inseridos”. Bagno reconhece o seu papel de doutrinador: “... nós, professores, somos muito importantes como formadores de opinião.” É evidente a intenção do autor, e se ele continuar a ter o prestígio atual, a nossa língua será cada vez mais empobrecida, mais deturpada, para servir aos interesses de subintelectuais ávidos pelo poder.
O “liberalismo” lingüístico não promove a liberdade, mas sim o arbítrio. É uma teoria que leva à exclusão dos falantes de modalidades não-exemplares da cultura maior da nação. Se há grande distância entre língua culta e língua popular, a solução não é rebaixar a língua culta, e sim elevar a cultura do povo.
A abolição das normas gramaticais abre caminho para a ditadura da linguagem “politicamente correta”, cujo objetivo é subjugar a consciência individual aos esquemas mentais da ideologia esquerdista. Como afirmou Olavo de Carvalho, o objetivo real do lingüista que pretende abolir as normas gramaticais “não é a abolição das normas, mas a conquista do poder sobre a linguagem coletiva.” É preciso aprender as teorias lingüísticas corretas; caso contrário, o vácuo será ocupado pelos semi-letrados que pretendem que a sua ignorância seja padrão.[4]

Olavo Bilac foi um grande amante da língua portuguesa, cantando esse amor em verso e prosa. Os versos são muito conhecidos; a prosa nem tanto. Então, conheçamo-la!
Falemos da língua admirável, que, com o torrão natal, recebemos de nossos maiores: d’ela falando, falaremos de nós todos, como Brasileiros, e do futuro e da segurança do Brasil (...)
Queremos que o Brasil seja Brasil! Queremos conservar a nossa raça, o nosso nome, a nossa história, e principalmente a nossa língua, que é toda a nossa vida, o nosso sangue, a nossa alma, a nossa religião! (...)
A língua faz parte da terra. Se queremos defender a nacionalidade, defendendo o solo, é urgente que defendamos também, e antes de tudo, a língua, que já se integrou no solo, e já é base da nacionalidade.[5]

A escritora Júlia Lopes de Almeida também declarou o seu amor à língua, nestes termos:
Para nosso orgulho, basta-nos lembrar que nenhuma outra língua há de tão nobre estrutura! De sonoridades variadíssimas, opulenta nos seus vocábulos, maleável como a cera ou dura como o diamante, a língua portuguesa é a mais bela expressão da inteligência humana. Defendei-a! Não deixeis que outras a invadam e a deturpem. Não deixeis que a viciem e lhe cosam remendos aos trajes magníficos. Ela não quer esmolas, não precisa de esmolas, é a mais rica e tem orgulho de o ser. Defendei-a até ao extremo, até à morte, como um filho defende a mulher de que nasceu. Defendei-a a todo transe, apaixonadamente, custe o que custar!
Na mocidade, nos dias que vêm perto, apercebei-vos de bons livros: lede clássicos.
Falar bem a língua materna, não é uma prenda, é um dever. Cumpri-o.[6]

A seguir, uma entrevista ao sítio Gramática On-Line, concedida do filósofo e jornalista Olavo de Carvalho, na qual se fala sobre a gramática e as teorias de Bagno.
Gramática On-line - Falemos um pouco sobre a Gramática. Quais são os primeiros registros dos estudos lógicos e gramaticais?
– Os primeiros estudos gramaticais no Ocidente resultaram da tentativa de aplicar à linguagem, considerada materialmente, os conceitos da lógica de Aristóteles. Mas a aplicação foi muito rasa e um logicismo extemporâneo deixou cicatrizes em toda a gramática ocidental. Quem estudou isso a fundo e procurou corrigir essas distorções foi Eugen Rosenstock-Huessy, cujo livro A Origem da Linguagem deve sair em breve pela Biblioteca de Filosofia que dirijo na Editora Record.
Gramática On-line - Ao seu ver, qual é a melhor maneira de desenvolver no cidadão a habilidade de escrita e leitura?
– Expliquei algo disso no meu artigo "Aprendendo a escrever" (O Globo, 3 fev. 2001). Primeiro o sujeito tem de adquirir, pela leitura de obras de história, de cronologia e de bibliografia, um senso da unidade do campo das letras. Um bom começo é a História da Literatura Ocidental de Otto Maria Carpeaux, ou a série Great Books da Encyclopaedia Britannica. Mas em seguida, ou ao mesmo tempo, tem de ler os clássicos e tentar imitá- los, formando um repertório de meios de expressão. Terceiro, tem de manter esse repertório em contínuo acréscimo e desenvolvimento, pela prática da escrita.
Gramática On-line - Entre as características de Olavo de Carvalho, uma que merece destaque é a habilidade lingüística. O seu texto mostra-se, ao mesmo tempo, fiel às normas do ensino prescritivo do idioma (a chamada norma culta da língua) e acessível a um grande número de leitores. Leitura qualitativa e quantitativa basta para que se alcance essa habilidade? O domínio das estruturas fonética, morfológica e sintática é realmente necessário?
– Há dois tipos de pessoas: as que aprendem por indução e as que primeiro precisam conhecer a regra geral para depois reconhecê-la na prática. O aprendizado da gramática é necessário a ambas, mas em momentos diferentes. As do primeiro tipo (e eu mesmo estou entre elas) devem acumular uma grande experiência de leitura antes de ter a primeira lição de gramática, porque já terão aquela experiência que lhes permitirá reconhecer do que a gramática está falando. Mas há pessoas que precisam estudar gramática primeiro. O educador é que tem de ter o tirocínio para perceber o que é melhor para o seu aluno.
Gramática On-line - Como o jornalista Olavo de Carvalho vê a situação dos textos impressos dos meios de comunicação. Os cursos de Jornalismo estão levando a sério a abordagem (ou estudo) da linguagem? Qual é a solução?
– A linguagem da mídia é um compactado de cacoetes funcionais. O sujeito que aprende a escrever com base nela vai tender inevitavelmente a compactá-la ainda mais. Só os grandes escritores têm o gênio, o espírito do idioma. É preciso aprender a escrever com Camilo e Machado, e só depois simplificar o idioma para adaptá-lo às necessidades da mídia. Para fazer comida desidratada é preciso partir da comida autêntica: se o sujeito desidrata o que já vem desidratado, acaba comendo areia.
Gramática On-line - O senhor estudou profundamente a Gramática ou, como explicam alguns jornalistas, apela na maioria das vezes à intuição para escrever adequadamente?
– Não sei quem foi que disse que cultura é aquilo que sobra quando a gente esquece o que aprendeu. Fiz muitos exercícios de gramática, seguindo especialmente a velha Gramática Metódica de Napoleão Mendes de Almeida, e procurei incorporar o aprendizado de tal modo que a regra aprendida funcionasse automaticamente. Hoje, que escrevo com correção, esqueci metade da nomenclatura gramatical e ela não me faz falta nenhuma. A gramática é um estudo reflexivo que pressupõe de certo modo o conhecimento prático do idioma e não pode substituí- lo. Mas, como eu já disse, as mentes muito dedutivas e analíticas precisam já de um pouco de gramática no começo do aprendizado.
Gramática On-line - Tem-se falado muito sobre a influência da língua na sociedade e vice-versa. A difusão intolerante da Gramática tradicional dá origem, segundo alguns sociolingüistas, ao preconceito lingüístico, sentimento por meio do qual se mantém o desrespeito às variantes lingüísticas divergentes da norma culta, da variante de prestígio. O senhor acha que o ensino rigoroso da Gramática, como era antigamente, pode contribuir para a manutenção desse preconceito? A norma culta é, como dizem, mais uma das imposições de uma minoria que visa a manter as classes sociais distantes umas das outras?
– Esses sociólogos são simplesmente charlatães que querem tirar proveito político de uma observação falseada da realidade. Não estamos na Inglaterra, onde o falar correto ou incorreto basta para identificar imediatamente a classe social a que o sujeito pertence. Aqui, as classes altas falam e escrevem tão errado quanto o povão, e só quem se interessa pela norma culta são escritores e gramáticos pobretões e marginalizados. Por outro lado, exigir que o aluno, em vez de aprender a norma culta geral, se apegue eternamente aos modos de falar do seu bairro ou da sua classe social, isto sim é discriminá-lo, barrando-lhe o acesso a uma norma que existe justamente para ser o terreno comum da comunicação democrática. Os inimigos da norma são obscurantistas que querem prender cada pessoa no gueto lingüístico e social da sua infância, bloquear a comunicação social e inviabilizar a democracia. Os que inventaram essa ideologia sabem perfeitamente que o propósito dela é criminoso. Os que a repetem como papagaios do alto de suas cátedras são apenas tolos desprezíveis.
Gramática On-line - Na sua opinião, é mais eficaz combater o preconceito lingüístico ou difundir de maneira mais figurativa os conhecimentos do idioma?
– O único preconceito lingüístico que existe no Brasil é contra a linguagem correta. Ninguém é criticado neste país porque fala errado, mas, se usa uma única palavra que a platéia desconheça, é rotulado imediatamente de pedante, e assim todos contribuem para o empobrecimento do idioma. Há na sociedade brasileira uma espécie de populismo atávico, regressivo, mórbido e masoquista. Temos de acabar com ele, e qualquer ensino da gramática é útil para esse fim.[7]

Agora, do mesmo Carvalho, segue um primoroso estudo sobre o assunto ora em debate:
Quem come quem
Texto original. Distribuído aos alunos do Seminário de Filosofia em 12 jun. 1999.
Olavo de Carvalho
A luta pela "identidade nacional" na cultura brasileira tem sido uma longa comédia de erros. Enquanto nossos vizinhos buscavam sabiamente fortalecer os laços que os uniam à cultura hispânica de origem, lutávamos obsessivamente para cortar toda nossa raiz lusitana. Se é verdade que "pelos frutos os conhecereis", está na hora de admitir que apostamos no cavalo errado. De um lado, há perfeita continuidade de Perez Galdós a Jorge Luís Borges, de Unamuno a Octavio Paz, enquanto entre nossos literatos (para não falar de estudantes de letras) não se encontrará um só que, lendo Camilo Castelo Branco, não esgasgue a cada linha, intimidado por um vocabulário que com apenas um século de idade se tornou impenetrável mistério antediluviano. De outro lado, o idioma espanhol se afirma poderosamente como língua de cultura mundial, enquanto o português vai perdendo terreno aqui dentro mesmo, acossado pelo barbarismo midiático, manietado pelos fiscais politicamente corretos, açoitado pelos feitores da incorreção obrigatória.
Um efeito cíclico da nossa obsessão identitária é que, quanto mais nos afastamos da nossa raiz autêntica lusitana, mais temos de tomar emprestada a seiva alheia, seja francesa ou americana, e mais a nossa sonhada autenticidade se torna uma caricatura do estrangeiro. E o motivo disto é bem evidente: recusando-nos a desenvolver formas e estilos a partir de uma tradição lingüística própria, não nos resta alternativa senão rebaixar-nos a fornecedores de matéria-prima. Já no Romantismo, nós entrávamos com os papagaios e os coqueiros, Chateaubriand com a fórmula literária. Ora, em literatura, a forma é tudo: cor local, temas, cenários e documentarismo lingüístico contribuem menos para definir a nacionalidade de uma obra do que o faz a forma interna, esta sim, inconfundivelmente americana ou russa, inglesa ou lusa. A narrativa ágil e quase jornalística dos romances de Hemingway é sempre americana, quer a história se passe em Paris ou se adorne de acento espanhol. Imitada em francês, em malaio ou em urdu, permanece americana, pela força da matriz lingüistica onde foi gerada como solução americana para problemas expressivos americanos. Mais nos valeria, pois, ter desenvolvido a novela camiliana, mesmo que fosse em histórias passadas na África ou no planeta Marte, do que adaptar os temas nacionais ao modelo proustiano ou ao realismo socialista, ainda que temperados de gíria baiana ou mineira. O primado da forma, a sujeição da matéria, são leis inescapáveis, em literatura como em tudo o mais: "Quando o coelho come alface, é a alface que vira coelho, não o coelho que vira alface", resume Jean Piaget. Cobras e índios no molde literário de Apollinare não são cultura brasileira: são o delírio de um turista francês, intoxicado de cauim. O segredo da brasilidade autêntica do teatro de Ariano Suassuna não está nos temas, comuns a tantas obras epidermicamente nacionalistas, nem na imitação da linguagem popular, obrigação dogmática que se tornou cacoete: está em que a fórmula estrutural de suas peças não se inspirou em Sartre ou Brecht, e sim nos autos medievais lusitanos. Suassuna não é brasileiro porque come coco, mas porque digere a fruta local no estômago da tradição lusa. A forma é tudo. E um candomblé na Sorbonne não é sincretismo brasileiro: é a antropologia francesa engolindo o Brasil.
Mais fez pela brasilidade do romance um Machado de Assis, criando com assunto urbano e em português castiço a fórmula inédita das Memórias Póstumas (não há por que exgerar a influência de Sterne), do que dezenas de imitadores de Zola narrando histórias de escravos com sintaxe de cangaceiro. Uma nova fórmula vale mil assuntos. Ser brasileiro, para um romancista, é integrar a experiência — local ou mundial, pouco importa — numa chave intelectual e estética criada por nós segundo as nossas necessidades, e não integrar materiais locais e trejeitos lingüísticos regionais numa tradição narrativa francesa ou inglesa. É uma simples questão de quem come quem.
O protesto de Evaldo Cabral de Melo, de que só povos complexados se preocupam com a própria identidade, pode ser aceito como um exagero corretivo, mas continua exagero. A obsessão germanizante de um povo em luta com o complexo de inferioridade gerou Hermann e Dorothea e a filosofia de Fichte, Schelling e Hegel. E a afirmação xenófoba do russismo contra a hegemonia franco-germânica produziu Dostoiévski, Soloviev e Lossky. Abençoada neurose!
Nosso erro não está em buscar uma identidade. Está em três fontes de engano, nas quais bebemos compulsivamente há mais de um século. Primeira: revoltamo-nos sempre contra o dominador errado. Escravos da Inglaterra, continuávamos a nos bater contra o extinto domínio português. Intoxicados de francesismo, esforçávamo-nos por expelir de nosso ventre os últimos resíduos da herança portuguesa. E hoje, paralisados sob as patas do império mundial anglófono, encenamos ainda um ridículo Ersatz de rebeldia, não anti-anglo-saxônica e sim antilusitana, jogando bombas ideológicas contra a "língua dos dominadores", como se o FMI fosse presidido por Cândido de Figueiredo e a Gramática Metódica de Napoleão Mendes de Almeida fosse a Carta da ONU. Vista sob esse prisma, nossa pretensa busca de independência não é senão afetação e disfarce para encobrir nosso compulsivo puxa-saquismo, nossa incoercível devoção ao poder mais forte, nossa renitente hipnose de botocudos ante os prestígios internacionais do momento.
A segunda coisa: acreditamos demais na mágica besta do popular, do local, do costumeiro e corriqueiro. Achamos que falando de coisinhas do nosso dia a dia e imitando a fala do povo seremos nacionais, quando a força da criação nacional não está na sua matéria, muito menos no populismo do seu estilo, e sim na originalidade das soluções estéticas e intelectuais que, uma vez bem sucedidas, se transformam em soluções e modelos para outros escritores de outras nações. Dostoiévski não representa o gênio russo porque fala da Rússia ou porque imita a fala dos russos, mas porque inventou, desde a Rússia, um sistema de enfoques narrativos que desde então se tornou necessário para todos nós, seja para falarmos da Rússia, seja de nós mesmos. A originalidade de uma literatura nacional é enfim uma só e mesma coisa que a originalidade criativa de seus escritores, a qual por sua vez não é senão a capacidade de dar respostas sérias a ansiedades autênticas. E, quando isto falta, não há documentarismo, populismo ou automacaquice lingüística que o substitua.
A terceira fonte de engano é a perpétua confusão que fazemos entre o universal e o atual. Achamos que, para integrar-nos na cultura mundial, temos de acompanhar o debate que se desenrola entre os povos mais ricos e supostamente mais cultos. Nunca nos ocorre a hipótese de que, no curso desse debate, esses povos possam ter perdido o fio da sua própria tradição cultural, de que possam estar reduzidos à mais profunda incompreensão de si mesmos, de que possam estar mergulhados numa inconsciência que só um maluco suicida desejaria imitar. Tomamos sempre os povos importantes de hoje como se fossem os únicos intérpretes autorizados da tradição ocidental (para não dizer mundial), e nos recusamos a lançar um olhar direto e sem fiscais sobre um passado que eles mesmos, tantas vezes, confessam já não compreender mais. Quem nos garante que, examinando por nossa conta a antigüidade greco-romana, a cristandade medieval, a remota herança dos povos orientais, não seremos capazes de descobrir aí certos tesouros que foram esquecidos pelo establishment cultural euro-ianque ou que mesmo escaparam completamente ao seu horizonte de visão? Quem, que autoridade, que dogma inabalável nos reduz à condição de herdeiros indiretos que só podem ler Marco Aurélio com os olhos de Renan, Parmênides com os de Heidegger ou Aristóteles com os de Jaeger? Quem nos arrebata o privilégio de desfrutar diretamente de uma herança que não pertence só aos povos ricos e que os povos ricos tantas vezes desprezaram, traíram, aviltaram e perderam? Quem nos assegura que a linha de evolução intelectual da Europa moderna foi a única ou a melhor possível que poderia ter-se desenvolvido a partir do legado medieval e antigo? Por que embarcar na paralisante suposição apriorística de que não podemos descobrir aí novos e inéditos desenvolvimentos? Por que fazer da história intelectual européia o modelo paradigmático e inescapável da sucessão dos tempos? Por que repetir, como um disco rachado, que as coisas não poderiam ter sido de outro modo e recusar-nos a experimentar outros modos possíveis? Por que não podemos escandalizar e chacoalhar a empáfia dos usurpadores, lendo Heidegger através de Parmênides, Nietzsche através de Sócrates, a modernidade através da Idade Média? Por que não podemos, em vez de medir o passado com a régua dos senhores do dia, julgar os senhores do dia à luz das sementes cujo máximo e perfeito desenvolvimento eles, sem a mínima prova, asseguram representar? Por que não nos atravemos a provar que as antigas sementes, plantadas em terra nova, podem dar melhores e mais doces frutos do que as ideologias européias, o comunismo, o fascismo, duas guerras mundiais e a presente degradação intelectual do mundo?
Não fomos só nós que caímos na esparrela de abdicar de uma herança que nos pertence. Os portugueses, inferiorizados por não acompanhar pari passu o pensamento moderno, acabaram se esquecendo daqueles fantásticos filósofos de Coimbra, mestres de Leibniz, que em pleno século XVI já pensavam em economia de mercado e física probabilística, saltando três séculos sobre a ilusão mecanicista cujo prestígio, tão invejado pelos ìluministas lusos, só fez atrasar o desenvolvimento das ciências e inspirar, na política, os frutos mais letais do estatismo centralizador. Até hoje Portugal, como um príncipe bêbado que se imaginasse mendigo, atribui suas desventuras ao fato de não ter tido seu Voltaire ou seu Rousseau, quando seu único erro foi o de esquecer-se de si, o de não conseguir olhar seu próprio passado senão no espelho enganoso da modernidade alheia.
Por ironia, justamente nisso continuamos imitando servilmente Portugal. Iludidos pelo dogma de que o presente abrange todo o passado — quando por definição nenhum conjunto de fatos esgota o possível —, recusamo-nos a receber o legado das grandes épocas e continuamos mendigando às portas da mediocridade européia (e americana) atual. Barramos assim nosso acesso a uma verdadeira universalidade e continuamos nos agitando em vão na falsa alternativa cíclica do estrangeirismo e do localismo, ora em formato puro, ora ressurgida sob o disfarce do elitismo e do populismo.
Reincide no engano —só para dar um exemplo recente — o livro de Marcos Bagno, Preconceito Lingüístico. O Que É, Como Se Faz (1), ao assumir a defesa do mais entrópico laissez-faire gramatical contra toda tentativa de conservar a unidade da norma culta, abominada como mecanismo de exclusão social e opressão dos pobrezinhos. Adornando de terminologia técnica uma argumentação que no fundo não passa do habitual apelo ao ressentimento populista contra os adeptos do purismo vernáculo, supostamente também senhores do capital — ai, meu Sacconi! —, o autor nem de longe dá sinal de perceber que, afrouxada a norma portuguesa, o que haverá de predominar não será o democratismo igualitarista das falas populares, autoneutralizantes por sua multiplicidade mesma, e sim a influência ordenadora da norma anglo-americana, ocupando substitutivamente — e usurpatoriamente — o lugar da regra vernácula. Isso aliás já vem acontecendo, como se vê pela alarmante disseminação do uso de palavras portuguesas montadas segundo uma sintaxe inglesa — "amanhã estarei indo viajar" —, o que já não é mais a corriqueira assimilação de vocábulos estrangeiros e sim precisamente o contrário de uma assimilação: é uma adaptação do material nacional à forma dominante estrangeira, é ser assimilado, é fazer o papel da alface na fisiologia do coelho. Toda cultura nacional é um vasto sistema de incorporações, no qual manifestações isoladas e locais vão se integrando numa unidade superior, e isto acontece com a língua tanto quanto com as idéias. Se, no topo, esse movimento não encontra um critério de unidade que lhe seja próprio, ele logo se amolda a um de fora, preferindo antes ser assimilado do que voltar à dispersão de onde partiu. Se o prof. Bagno fosse um agente consciente do imperialismo, pretendendo dissolver a nossa unidade lingüistica para lhe sobrepor a americana, seu livro seria obra de inteligência, mista de maquiavelismo. Mas não: ele é apenas mais um esquerdista doido, desses que, ansiosos para expressar sua miúda revolta imediatista e cega, não sabem a quem servem em última instância e aliás não querem nem saber: falam o que lhes dá na telha e, de tempos em tempos, constatam, mais revoltados ainda, que tudo deu errado e seu mundo caiu.
Para cúmulo de inconsciência, o prof. Bagno, citando indevidamente Aristóteles, proclama que sua obra é política, quando a política para o Estagirita é o cuidado do bem comum, isto é, a vigilância sobre os rumos da sociedade como um todo, e nunca a adesão parcialista a exigências de grupos ou classes, defendidas como se valessem por si e sem o mínimo exame das conseqüências que seu atendimento possa produzir sobre o corpo da sociedade integral. Para os meninos da Febem ou para o lavrador de Ponta Grossa, pode ser bom ou pelo menos cômodo, a curto prazo, que os deixem escrever como falam, sem subjugá-los à uniformidade da norma. Subjetivamente, eles talvez se sintam, assim, menos excluídos. Mas, objetivamente, aí sim é que estarão excluídos, aprisionados na sua particularidade e sem acesso à conversação das classes cultas. Tudo depende de saber se preferimos enfraquecê-los pela lisonja ou fortalecê-los pela disciplina. Há nisso uma escolha moral que os amigos do povo preferem não enxergar. E se, levando as opiniões do prof. Bagno às últimas conseqüências, as próprias classes cultas desistirem da norma unitária e, para não passar por preconceituosas ante o olhar malicioso dos ressentidos, adotarem como obrigatória a entropia populista, então das duas uma: ou a entropia arrastará na sua voragem o pouco de possibilidade de diálogo racional que ainda resta neste país, ou então uma norma substitutiva acabará por se impor, e ela certamente virá da rede das telecomunicações, cujo idioma e padrão é o inglês. Qualquer das duas coisas será indiscutivelmente boa, mas para os Estados Unidos. E, se me perguntarem se o que é bom para os Estados Unidos não é bom para o Brasil, direi, de novo, que é uma simples questão de quem come quem. (2)
 NOTAS
(1) São Paulo, Loyola, 1999.
(2) Erros idênticos aos do Prof. Bagno já podiam ser encontrados, com um ano de antecedência, em Por Que (Não) Ensinar Gramática na Escola, de Sírio Possenti, professor da Unicamp (Campinas, Mercado de Letras, 2ª impressão, 1998. As idéias de Bagnos e Possentis vêm fazendo as cabeças — isto é desfazendo os cérebros — da maioria dos estudantes de Letras neste país.[8]

O grande linguista e filólogo Evanildo Bechara também discute várias das questões trazidas à baila pelo artigo A Ideologia Que Debilita o Pensamento. Eis alguns trechos:
A escola e a chamada crise do idioma
A crise com que a escola se defronta tem raízes mais profundas do que uma simples verificação da escassez de recurso e do desinteresse das autoridades competentes, ou do despreparo do corpo docente e discente.
A nosso ver, uma análise mesmo superficial permite apontar três ordens de crises independentes, mas estreitamente relacionadas, que acabam desaguando na ação da escola. Recebendo o aluno já possuidor de um saber lingüístico prévio limitado à oralidade, a escola não o leva a desenvolver esse potencial — enriquecendo a sua expressão oral e permitindo-lhe criar, paralelamente, as condições necessárias para uma tradução cabal, efetiva e eficiente, expressiva e coerente (falando ou escrevendo) de suas idéias, pensamentos e emoções.
A primeira crise é na ordem institucional, na própria sociedade, que, de uns tempos para cá, seguindo as pegadas de uma tendência mundial do após-guerra, privilegiou o coloquial, o espontâneo e o expressivo, renovando, consideravelmente, a língua popular e o argot.
Este movimento, positivo em sua essência, trouxe, pela incompreensão e modismo de muitos, uma conseqüência nefasta, à medida que o privilegiamento da oralidade estimulou o desprestígio da tradição escrita culta, já que se defendeu — sem ser praticado afetivamente pelos escritores, pois nunca deixaram de contemplar a sua obra como arte — que o verdadeiro bom estilo é aquele que se aproxima da espontaneidade popular, ou, então, aquele que se despe da artificialidade do estilo cultivado. A desinformação das pessoas e a crescente substituição da leitura pelos meios de comunicação de massa não permitiram ver o quanto havia de erro na suposição de que os modernistas, aceitando a decisiva influência popular, admitiram todas as alterações de linguagem, ainda aquelas que destruíam “as leis da sintaxe e a essencial pureza do idioma”, como dizia Machado de Assis.
A tendência influenciou decisivamente os costumes lingüísticos de tal modo que, no português do Brasil, a distância entre o nível popular e o nível culto ficou tão marcada que, se assim prosseguir, acabará chegando a se parecer com o fenômeno verificado no italiano ou no alemão, por exemplo, com a distância entre um dialeto e outro.
(...)
O coloquialismo, que no trabalho de muitos cronistas modernos resulta de um elaborado e consciente artesanato expressivo, nem sempre tem sido visto como tal no dia-a-dia de sala de aula. O resultado é que os alunos, não sendo alertados para o propósito estilístico que inspira a opção lingüística, limitando-se a essa leitura, têm perdido o contacto com os tradicionais textos “clássicos” e, com isto, a oportunidade de extrair deles subsídios para o seu enriquecimento idiomático, especialmente no campo da sintaxe e do léxico.
E assim perde a escola o apoio que lhe poderia dar a literatura no aperfeiçoamento da educação lingüística dos alunos.
A segunda crise é na universidade, já que a lingüística ainda não conseguiu constituir-se definitivamente, desdobrando-se em diversas lingüísticas que discutem seu objeto, suas tarefas e suas metodologias. Apresentadas ora paralela ora conflitivamente, a verdade é que as teorias lingüísticas ainda não chegaram a consolidar um corpo de doutrina capaz de permitir uma descrição funcional integral do saber elocucion, do saber idiomático e do saber “expressivo”.
A terceira crise é na escola, na medida em que, não se fazendo as distinções necessárias entre gramática geral, gramática descritiva e gramática normativa, a atenção do professor se volta para os dois primeiros tipos de gramática, desprezando justamente a gramática normativa que deveria ser o objeto central de sua preocupação e, em conseqüência, despreza toda uma série de atividades que permitiriam levar o educando à educação lingüística necessária ao uso efetivo do seu potencial idiomático.
(...)
Já que estamos fazendo uma crítica a certas inovações perturbadoras e pouco producentes que muitos compêndios, à luz de uma didática formal ou informal, pretenderam introduzir no ensino da língua portuguesa, na década de 60, cabe um comentário acerca do privilegiamento da língua oral, espontânea, em relação à língua escrita.
Deveu-se o fenômeno, cremos nós, a duas ordens de fatores: uma de natureza lingüística, outra de natureza política. As ciências da linguagem vieram patentear que as línguas históricas são fenômenos eminentemente orais e que o código escrito outra coisa não é senão um equivalente visível do código oral, que, de falado e ouvido, passa a ser escrito e lido. Assim sendo, a lingüística norte-americana, especialmente ela, pôde desenvolver rígidos e precisos modelos de descrição de línguas indígenas que jamais conheceram, de modo sistemático, a transposição escrita do discurso falado.
Esta possibilidade de uma metodologia com rigor científico aplicada a línguas ágrafas parece que estimulou em muitos estudiosos bloomfieldianos certa desatenção ao código escrito, considerando-o até campo que extrapolava a investigação lingüística. Tal atitude chegou a provocar a crítica de Gleason, autor de um dos melhores manuais de lingüística descritiva de orientação norte-americana.
Essa visão distorcida da realidade incentivou outro passo adiante dado por alguns lingüistas, também em geral norte-americanos: a crítica à natureza normativa da gramática tradicional, com a defesa de que se deve deixar a língua livre de qualquer imposição. Um desses lingüistas, Robert Hall, em 1950, chegou a intitular ou a aceitar esse título pela editora a um livro seu de divulgação lingüística: Leave your language alone [a sua língua em paz], título que, a bem da verdade ou de alguma mudança de orientação, foi alterado na 2ª edição.
Portanto, vieram pela porta da própria lingüística e se instalaram nas salas de aula de língua portuguesa esse privilegiamento do código oral em relação ao escrito e certa desatenção a normas estabelecidas pela tradição e conservadas ou recomendadas no uso do código escrito padrão.
Por isso, assistiu-se entre nós, na década de 60, a um insurgimento contra o ensino da gramática em sala de aula; em vez de dotá-la de recursos e medidas que a tornassem um instrumento operativo e de maior resistência às críticas que justamente lhe eram endereçadas desde há séculos, resolveram muitos professores e até sistemas estaduais de ensino aboli-la, sem que trouxessem, à sala de aula, nenhum outro sucedâneo que, apesar das falhas, pudesse sustentar-se pelo espaço curto de uma única geração.
A bem da verdade, cabe-nos dizer que já se assiste, a partir da década de 70, a uma reação a esse estado de coisas, e os livros didáticos mais recentes voltam a insistir no padrão culto da linguagem, quer nas recomendações da gramática normativa, quer através da inclusão e seleção de textos, literários ou não, que refletem esse padrão.
Ainda insistindo nessa ordem de idéias, é interessante lembrar a indulgência e até certo elogio com que Ferdinand de Saussure comenta a tarefa da gramática tradicional, de inspiração grega. Logo na introdução do Cours de linguistique générale, ao referir-se à polissemia do termo gramática, diz que essa gramática tradicional está “fundada na lógica e desprovida de toda a visão científica e desinteressada da própria língua”, porquanto o que se pretende é “unicamente dar regras para distinguir as formas corretas das incorretas; é uma disciplina normativa, muito distante da observação pura, o seu ponto de vista é necessariamente restrito”
A outra ordem de fatores procede da política, ou, para não desmerecer uma atividade nobre, de certas teses populistas e demagógicas, especialmente no que concerne à educação lingüística de adultos, segundo as quais devem os “oprimidos” ficar com sua própria língua e não aceitar a da classe dominante.
Ora, a educação lingüística põe em relevo a necessidade de que deve ser respeitado o saber lingüístico prévio de cada um, garantindo-lhe o curso na intercomunicação social, mas também não lhe furta o direito de ampliar, enriquecer e variar esse patrimônio inicial. As normas da classe dita “opressora” e “dominante” não serão nem melhores nem piores, ou as normas da língua literária não serão nem melhores nem piores do que as usadas na língua coloquial. Como bem lembrou o professor Raffaele Simone , “enquanto a posição populista perpetua a segregação lingüística das classes subalternas, a educação lingüística deverá ajudar a sua liberação”.
A tese populista do ponto de vista democrático é tão falha quanto a tese que combate, pois ambas insistem num velho erro da antiga educação lingüística, já que ambas são de natureza “monolíngüe”, isto é, só privilegiam uma variedade do código verbal, ou a modalidade dita “culta” (da classe dita “dominante” ou “opressora”), ou a modalidade coloquial (ou da classe dita “oprimida”).
 (...)
Na escola antiga, o professor cometia o erro de entender como a língua aquela modalidade culta — literária ou não — refletida no código escrito ou na prática oral que lhe seguia o modelo, de todo repudiando aquele saber lingüístico aprendido em casa, intuitivamente, transmitido de pais a filhos.
Hoje, por um exagero de interpretação de “liberdade” e por um equívoco em supor que uma língua ou uma modalidade é “imposta” ao homem, chega-se ao abuso inverso de repudiar qualquer outra língua funcional, que não seja aquela coloquial, de uso espontâneo na comunicação cotidiana.
Em ambas as atitudes há realmente opressão, na medida em que não se dá ao falante a liberdade de escolher, para cada ocasião do intercâmbio social, a modalidade que melhor sirva à mensagem, ao seu discurso.
No fundo, a grande missão do professor de língua materna — no ensino da língua estrangeira o problema é outro — é transformar seu aluno num poliglota dentro de sua própria língua, possibilitando-lhe escolher a língua funcional adequada a cada momento de criação e até, no texto em que isso se exigir ou for possível, entremear várias línguas funcionais para distinguir, por exemplo, a modalidade lingüística do narrador ou as modalidades praticadas por seus personagens.
(...)
Como bem lembrou o inesquecível mestre Matoso Câmara, “a gramática normativa tem o seu lugar à parte, imposto por injunções de ordem prática dentro da sociedade. É um erro profundamente perturbador misturar as duas disciplinas e, pior ainda, fazer lingüística sincrônica com preocupações normativas”.
Acredito que o ensino da gramática normativa resulta da possibilidade de que dispõe o falante de optar, no exercício da linguagem, pela língua funcional que mais lhe convém à expressão. Resulta, portanto, da “liberdade” de escolha que oferece uma língua histórica considerada em sua plenitude.
É uma língua “adquirida” cuja técnica histórica lhe cabe ser “ensinada”.
 (...)
A primeira área do saber a merecer a constante preocupação formativa do professor de língua materna é a própria linguagem e a sua manifestação concreta através das línguas históricas (portuguesa, inicialmente). Melhor do que nós, di-lo o genial lingüista italiano Antonino Pagliaro:
“Como em todas as ciências, o valor humano da gramática, antes de ser didático e normativo, é formativo. Ele leva a mente a refletir sobre uma das criações mais importantes e humanamente mais vinculativas, de cuja constituição, de outro modo, nos não preocuparíamos mais do que com o mecanismo da circulação do sangue ou da respiração (pelo menos enquanto funcionam bem!). Contudo a palavra é uma atividade consciente, e a adesão a um sistema lingüístico diferente daquele a que poderíamos chamar natural, como a aquisição de uma língua comum, é, em substância, um fato de ordem volitiva. A reflexão sobre a constituição e os valores desse sistema desenvolve e aperfeiçoa a consciência lingüística que é também uma consciência estética; simultaneamente e por meio das análises das correlações e das oposições que constituem o seu caráter funcional, habitua a mente a descobrir no pensamento discursivo as formas que foram elevadas a uma função cognoscitiva mais alta no pensamento racional”.
O contacto com uma língua nos permite observar numerosos fatos de ordem extralingüística que atuam nas relações entre palavras e coisas, língua e pensamento. O primeiro deles é, sem dúvida, o que vários lingüistas denominam “afetividade” e que vem a ser uma série de alterações e desvios causados na língua pelos estados psíquicos emocionais em que está envolvido o falante. Estas transformações afetam todo o material lingüístico, dos sons à estrutura das palavras, da seleção vocabular à construção das frases. Nesta ordem de fatores, viram também alguns psicanalistas, com Freud à frente — e, às vezes, com certo exagero —, a origem de muitos erros de fala e de escrita nos chamados pensamentos marginais, que, existentes com repressão no subconsciente, reaparecem e influem no enunciado de nossos pensamentos, sem que disso, muitas vezes, nos demos conta.
(...)
Importância da atividade oral
Depois deste quadro que, apesar de esquemático, se apresenta como de muita utilidade para o trabalho docente, Lo Cascio enfatiza a prioridade da competência verbal. Quase sempre a escola enfatiza as suas preocupações com o “ensinar a ler e a escrever”, como se se tratasse de ensinar dois códigos que constituem uma alternativa que substitui a realidade lingüística quotidiana. Seria necessário, acentua o lingüista italiano, que se propusesse inicialmente ensinar a “falar”, não só como instrumento de expressão mas também como instrumento social de comunicação para todas as ocasiões.
Neste sentido, o ensino lingüístico na escola deverá partir da atividade oral, pois que constitui a base para a aquisição ideal de quase todas as competências lingüísticas de que falamos atrás. Mas vale a pena lembrarmos, ainda com Lo Cascio, que a função do professor deve ser a de um estimulador, que não deve também perder de vista a sua missão programaticamente corretiva.
Este exercício não só promoverá um desenvolvimento de uma habilidade e de um hábito de falar, de verbalizar, mas ainda de reflexão, de formulação de idéias, sobre a própria atividade lingüística.
Destaca-se, desta maneira, o papel catalisador do professor de língua, em sala de aula, ponto de partida e de convergência para que o aluno desenvolva hábitos de falar com eficiência, desembaraço, correção e certa elegância, além da aquisição e assimilação do conhecimento. Com isto, pretendemos pôr nos devidos termos a tese de que o professor, sob a alegação de falar a língua do seu aluno, mais facilmente se aproxima dele e do seu mundo. A estratégia vale como movimento inicial, e não como uma atitude permanente para que se instaure em sala de aula aquilo a que podemos bem chamar de “mesmice idiomática”, onde o mestre fala a língua do aluno por lhe faltar competência para utilização de um nível mais adequado com os seus compromissos de educador. Também com isto não desejamos que retorne à sala de aula aquele professor de palavras difíceis e retórica vazia.
A presença do verdadeiro professor ajudará ao aluno na percepção e individualização das mensagens recebidas, estimulará a formação da competência receptiva dos educandos, permitindo-lhes transformar as informações que a eles chegam em categorias e estruturas do seu mundo capazes de ser expressas por eles mesmos, através da sua competência produtiva.
(...)
Lingüística e gramática tradicional
O que, de modo algum, compete à lingüística é ser o pelourinho da gramática tradicional, apontando-lhe os erros, mas não a enriquecendo com sucedâneos mais eficazes. Lingüistas do porte de Saussure, desde os início da lingüística contemporânea, já ressaltaram as qualidades da gramática tradicional, dentro das limitações da sua proposta pedagógica e, mais recentemente, Lyons (língua e lingüística Zahar, 1982) declara que “ultimamente os lingüistas vêm adotando uma perspectiva mais equilibrada quanto à contribuição que a gramática tradicional [ . .} vem prestando ao desenvolvimento de sua disciplina” (p. 47). E importa lembrar que o mesmo lingüista, falando do conceito de flexão, declara, acerca da gramática tradicional: “Se bem explicada e precisamente formulada, a abordagem tradicional é pelo menos tão boa quanto qualquer outra alternativa que tenha sido até agora apresentada” (Id., ibid., p. 101).
Infelizmente muita gente não traça com a devida segurança os limites desses campos, e transforma, assim, a aula de língua portuguesa numa aula de lingüística de objetivos bem diferentes.
Uma nomenclatura que se aplica ao lingüista pode ter utilização restrita na aula de português; mas muita gente vê, por exemplo, em SINTAGMA a pílula salvadora para combater todos os males de um péssimo ensino da língua materna.
Língua materna e línguas estrangeiras
Outros — com pior conseqüência — não conseguem fazer a distinção entre o ensino da língua materna e o ensino das segundas línguas ou línguas estrangeiras. Daí advém um grave erro que se está incutindo na aula de português: tratar a língua materna (e ensiná-la!) como se fosse uma língua estrangeira.
Sabemos todos que a metodologia difere num e noutro ensino, e confundi-los é minimizar a potencialidade dos recursos do aprendizado do vernáculo.
Como conseqüências perigosas, senão danosas, do mau emprego da lingüística na aula de português, pode mos citar:
a) o empobrecimento da língua escrita culta nas atenções do professor;
b) o embaralhamento do conceito de norma lingüística, em especial para a língua escrita.
Que o lingüista enfatize a língua oral, bem conhecemos as razões que o levam a isso, porquanto a universalidade dos idiomas se patenteia na sua oralidade.
Mas o professor de língua portuguesa, sem desprestigiar o valor da língua coloquial — erro, aliás, da antiga geração de mestres —, deve centrar sua atenção no padrão culto, que presidirá à produção lingüística do educando, falando ou escrevendo.
Vê-se que se confundiram os conceitos e níveis de língua oral e língua escrita, língua coloquial e língua culta, com graves prejuízos para a orientação do ensino do português.
Que a língua coloquial esteja presente no ensino da língua estrangeira, compreende-se, porque aí o aluno tem de se adequar à realidade única que o professor lhe põe diante dos olhos, pela mesma razão pragmatista que sempre acompanha o aprendizado de uma outra língua. Mas, no tocante à língua materna, esse nível de aprendizado já lhe é conhecido pela espontaneidade da língua transmitida no lar e no convívio da comunidade lingüística em que se desenvolveu o aluno.
A esse saber lingüístico prévio a escola acrescenta uma língua adquirida, pautada pelos padrões lingüísticos que vigem nas pessoas escolarizadas e que se esperam do desempenho de uma pessoa culta ou aspirante a esse nível de cultura.
(...)  
Os erros apontados acima extrapolaram os limites dos alunos e chegaram ao próprio professor de português que, ensinando a desacreditar os padrões da língua escrita e culta, acabaram eles mesmos por desconhecer esses padrões.
(...)
Esses são os engastados na ciência lingüística, que é, como a entendem, uma pseudociência. Os verdadeiros lingüistas, quando escrevem, primam no vernáculo; veja-se, por exemplo, um Sapir, um Bloomfieid, um Fries, um Bolinger, para só falar dos de língua inglesa.
Entre nós, o que acontece? Conviver com os bons autores, antigos e modernos, é tido como sinal de “cafonice”. E, com isto, o padrão da língua culta vai sendo esquecido por aqueles que a deveriam saber por profissão.
Esse tipo de lingüística, entre nós, fez soçobrar a filologia; ao contrário, aliás, do que acontece nos países onde a verdadeira lingüística está em pleno apogeu.
Com essa ignorância, estamos cedendo a palma aos estrangeiros que vão estudando a língua portuguesa mais que os nacionais. Com as sempre raríssimas exceções, quem dentre nós estuda a tradição dos temas que preocuparam um Said Ali, um Sousa da Silveira, um Antenor Nascentes, um José Oiticica, um Serafim da Silva Neto, um Ismael de Lima Coutinho, senão um Harri Meíer, um Joseph Piei, um Joan Corominas, um Yakob Maikiel, um Giuseppe Tavani, todos estrangeiros? Por tudo isto, deve a Universidade, nas aulas de língua portuguesa, ao lado da descrição científica de sua gramática, voltar à tarefa de transmitir os padrões da língua escrita culta, através do aturado convívio dos clássicos brasileiros e portugueses de todas as épocas.[9]

Leia-se ainda o seguinte artigo:
O mito do preconceito lingüístico
por José Maria e Silva, em 14 de novembro de 2002
Parte I
Rodapé para um golpista da língua

Se houvesse um Código de Ética do Magistério, o sociolingüista Marcos Bagno, autor do famigerado Preconceito Lingüístico, deveria ter sua licença de professor cassada em caráter de urgência. Ele mesmo confessa que engana seus alunos e discípulos:Peço simplesmente aos leitores e leitoras que meditem sobre essa situação que tanto me angustia: homenagear com um livro pessoas que jamais poderão lê-lo. Isso explica, decerto, a grande dose de indignação que em certos momentos passa à frente da reflexão científica serena e me faz assumir o tom apaixonado de quem não tolera nenhum tipo de intolerância

Da Cabeça de Bagno
Os mitos da cabeça de Bagno
Mito nº 1: “A língua portuguesa falada no Brasil apresenta uma unidade surpreendente”.
Mito nº 2: “Brasileiro não sabe português. Só em Portugal se fala bem português”.
Mito nº 3: “Português é muito difícil”.
Mito nº 4: “As pessoas sem instrução falam tudo errado”.
Mito nº 5: “O lugar onde melhor se fala português no Brasil é o Maranhão.”
Mito nº 6: “O certo é falar assim porque se escreve assim.”
Mito nº 7: “É preciso saber gramática para falar e escrever bem.”
Mito nº 8: “O domínio da norma culta é um instrumento de ascensão social.”
Por vezes, gostaria que minhas palavras fossem punhos e que delas saíssem socos. Mas peço simplesmente aos leitores que meditem sobre essa situação que tanto me angustia: usar a deferência dos argumentos contra pessoas que jamais poderão compreendê-los. Uns, porque lhes falta inteligência. Outros, porque parece lhes faltar caráter. Isso explica, decerto, a minha enorme, incendida, angustiada fúria, que, entretanto, jamais passa à frente da reflexão – apenas se deixa cavalgar por ela, em respeito às rédeas da inteligência. Essa fúria volta e meia é desencadeada pelo excesso de tolices que leio nos jornais a respeito de temas relativos à educação.
Há pouco tempo, matéria de um jornal local (O Popular) trazia o título “Melhora nível de redações nos vestibulares”. Já no segundo parágrafo da referida matéria, percebi que ela não merecia nenhum crédito. Uma das professoras entrevistadas, depois de dizer que “tem havido uma melhora impressionante na produção textual” dos alunos, completava: “Embora ainda exista muito clichê e casos em que o candidato se prende demasiadamente à fórmula – apresentação, desenvolvimento e conclusão –, em detrimento do conteúdo”. Ora, o que se pode esperar de um aluno que não se prende a essa fórmula eficaz e comum de exposição de idéias? Que ele seja um paradigmático Guimarães Rosa? É óbvio que se um aluno normal recusa o sintagmático princípio-meio-e-fim de um texto, ele deve ter a raríssima genialidade de reinventá-lo, caso contrário irá incorrer no misto de puerilidade e esquizofrenia da literatura que lhe é apresentada por modelo – como o livro A Friagem, de Augusta Faro, elogiado pelo jornalista, pelo brilhante Roberto Pompeu de Toledo, mas paradigma da subliteratura local que infesta os vestibulares goianos.
Entretanto, o absurdo da pedagogia moderna escancarado na reportagem não se limita a essas sandices. Vai muito além. Outra professora ouvida na matéria afirmou: “A exigência do domínio da língua culta é preconceituosa. Afinal, nem todos têm acesso a ela”. É espantosa essa capacidade pueril que, hoje em dia, qualquer pessoa – não só professores primários mas até seus alunos – tem de duvidar da civilização a que pertence, julgando-se maior do que ela com um simples dar de ombros mental. Que obra-prima da humanidade aquela professora escreveu para ter a ousadia de deitar por terra uma língua que ultrapassa em séculos sua efêmera insignificância intelectual? Não sei se é o seu caso, mas muitos professores que estampam a mesma arrogância em face do saber milenarmente acumulado, mal conseguem escrever um bilhete para os pais de seus alunos. De onde vem essa ignorância infinita que, de tão alijada do conhecimento, chega a imaginar que ele não existe?
Infelizmente, não vem da pequena cabecinha dessas honradas professoras de escola pública, dignas do respeito de todos nós, mas da doutrinação que recebem no ensino inframental das faculdades de letras. Nessas usinas de diplomar analfabetos, a norma é: língua portuguesa cada qual tem a sua e Deus que se vire para entender a babel de todos. Essa rebeldia sem causa, fruto da adolescência intelectual de nossos acadêmicos, que só descobrem o caminho das bibliotecas quando ingressam na pós-graduação, já se tornou uma seita, com apóstolos, discípulos e até profetas. Entre os profetas, está Marcos Bagno, doutor em língua portuguesa pela USP, mestre em lingüística, poeta, contista e tradutor. Bagno é autor do livro Preconceito Lingüístico: O Que É, Como se Faz, lançado pela Editora Loyola em 1999 e já com quatro edições em menos de um ano. É essa Bíblia dos sociolingüístas que se vai analisar agora.
A sociolingüística é um ramo da lingüística que estuda Marx. Muitos alunos de letras, por deficiência cognitiva, aderem a ela. Incapazes de alcançar o rigor da ciência, contentam-se em macaqueá-la. Daí o enorme sucesso que qualquer autor minimamente alfabetizado faz entre essa gente da pseudolingüística – que não é outra coisa a marxolingüística praticada pela nova geração de professores das faculdades de letras. (...) o jovem Marcos Bagno tornou-se uma Marilena Chauí de calças – faz, em letras, o mesmo sucesso que ela faz em filosofia. Os dois têm em comum a eloqüência, o confusionismo e uma indisfarçável vocação para a charlatanice intelectual.
Preconceito Lingüístico, o pop-livro de Marcos Bagno, é falso em todas as suas premissas, mesmo assim, ou por isso mesmo, o autor quer fazer dele o Manifesto Comunista do idioma, enxergando em cada colocação de pronomes uma mais-valia intelectual a extorquir de todo falante o direito de permanecer iletrado. Incapaz de derrubar o sistema e mudar o governo, Bagno incorporou o marxismo desviante que grassa na educação do país e fez-se cavaleiro andante da linguagem a brandir sua espada sociolingüística contra os moinhos de vento da norma culta. Seu fervor pseudolingüístico, que acaba de dar outro manifesto ao mundo, a Dramática da Língua Portuguesa, parece acreditar que a instauração do Reino de Marx na Terra vai depender de se enforcar o último capitalista nas tripas do último gramático.
Bíblico, Marcos Bagno inventou até um decálogo para sua religião, criativamente chamado de “Dez Cisões”, e sustenta sua fé sociolingüística no combate a oito pecados capitais – os preconceitos lingüísticos, isto é, os baraços e cutelos com que a norma culta do idioma tiraniza os falantes da língua portuguesa e contribui para a injusta divisão do mundo entre milionários e miseráveis. Entre os oito mitos sobre a língua portuguesa que Marcos Bagno combate, pelo menos três, o 2º, o 6º e o 7º, só existem na sua cabeça; outros dois, o 3º e o 4º, existem de fato, mas não pelas razões que ele imagina; e um deles, o 5º, é absolutamente inócuo, sendo de admirar que alguém perca tempo em lhe dar combate. Restam dois “mitos”, o 1º e o 8º, que não são mitos, mas constatações a respeito do português, por sinal, benéficas para seus falantes.
Como se vê, Marcos Bagno, que se apresenta arrogantemente como cientista da língua, não alcança sequer o nível da falácia, porque a falácia é apenas a contraface da lógica, não a sua negação absoluta, como o obscurantismo e a irracionalidade que alicerçam o livro Preconceito Lingüístico o são. A capa deste livro de Marcos Bagno traz uma fotografia de seus sogros pobres, lavradores analfabetos a quem ele dedica a obra. É a partir deles que Bagno justifica sua “grande dose de indignação” contra todas as formas de preconceito. E, assumidamente de esquerda, começa por denunciar (citando Maurizzio Gnerre) um dos mais graves “preconceitos” derivados do “mito da unidade lingüística do Brasil”– o de que a Constituição é redigida na língua-padrão, “que só uma parcela pequena de brasileiros consegue entender”. Taxativamente furioso, Bagno denuncia: "A discriminação social começa, portanto, já no texto da Constituição".
Segundo o próprio Bagno confessara na introdução do livro, a razão de sua vida intelectual é a luta apaixonada contra as discriminações. Logo, a única coerência possível de sua parte seria a exigência de que a Constituição do país abandonasse a língua-padrão e se multiplicasse em tantas versões quantas fossem as necessidades particulares dos falantes da língua portuguesa no Brasil. Entretanto, Bagno faz o contrário e, em vez de manter a coerência, sai pela tangente: “É claro que Gnerre não está querendo dizer que a Constituição deveria ser escrita em língua não-padrão”. Ora, de duas uma: ou Bagno, contrariando o que dissera linhas antes, aceita que a Constituição deve continuar sendo preconceituosa, discriminadora, excludente, ou, então, ele resolveu trair, um parágrafo depois, a causa maior da sua vida declarada um parágrafo antes, deixando que a lei continue discriminando.
À primeira vista, parece apenas um caso de inconsistência intelectual do “cientista”. Mas o que se lê a seguir faz desconfiar de uma distorção proposital do militante. Intuitivamente, Marcos Bagno sabe que romper com a objetividade necessária à lei para cingi-la à subjetividade inevitável dos falantes seria soterrar a Justiça num tribunal de babel. Por isso, ele escreve como quem desconversa, chegando a pensar que o leitor atento vai aceitar sua ressalva frouxa como negação de uma afirmação taxativa. O sujeito é tão insidioso que, ao dizer que ninguém está advogando que “a Constituição deveria ser escrita em língua não-padrão”, começa essa ressalva com a expressão “é claro”, para desarmar de imediato o leitor, levando-o pensar que o que se diz adiante é tão óbvio que sequer merece exame, quando, na verdade, trata-se de um pensamento incompleto, que contradiz completamente um pensamento anterior mas não apresenta suas razões, enquanto o outro apresentava as dele. Com essa desconversa, típica de todo o livro, Bagno fica isento de explicar a grave contradição em que incorre.
Apesar disso, Marcos Bagno se julga uma grande autoridade científica, tanto que não se peja de citar-se a si mesmo: “Como costumo dizer, o que habitualmente chamamos de português é um grande balaio de gatos, onde há gatos dos mais diversos tipos: machos, fêmeas, brancos, pretos, malhados, grandes, pequenos, adultos, idosos, recém-nascidos, gordos, magros, bem-nutridos, famintos etc. Cada um desses gatos é uma variedade do português brasileiro, com sua gramática específica, coerente, lógica, funcional”. Bagno acaba de nos descrever o primeiro caso, na história da humanidade, de “recém-nascidos” com “gramática específica, coerente, lógica e funcional”, falando igual ao Aurélio tão logo responde à palmada do médico com um articulado “ai!”.
Depois dessa licenciosidade poética, inadmissível num sujeito que consumiu verbas públicas na graduação, no mestrado e no doutorado, o contribuinte que sustentou Bagno por esse tempo mínimo de oito anos ainda tem que aturar seu preconceito contra os pobres. Segundo ele, são as “graves diferenças de status social que explicam a existência, em nosso país, de um verdadeiro abismo lingüístico entre os falantes das variedades não-padrão do português brasileiro, que são a maioria de nossa população, e os falantes da (suposta) variedade culta, em geral mal definida, que é a língua ensinada na escola”.
Ora, como é que Marcos Bagno explica a caudalosa tradição de pobres bem falantes (e bem escreventes) no Brasil, que vai de Machado de Assis a Patativa do Açaré, ambos sem passar pela escola formal? Será que Bagno nunca foi capaz de perceber que os nordestinos, apesar da sua fome atávica, nunca tiveram problemas com a língua e é de lá que têm saído muitos dos nossos maiores escritores? Não é entre os nordestinos famintos que viceja uma literatura de cordel altamente sofisticada, com um padrão lingüístico muito mais elevado do que o da maioria dos professores da UFG e da USP juntos? Os profetas bíblicos (homens que precisavam da palavra como ninguém e a manejavam melhor que todos) não vinham sempre das classes mais pobres do mundo hebraico, como vaqueiros, pastores, trabalhadores rurais?
Cumpre ressaltar que o cordel nordestino, literatura de excluídos, sempre foi altamente valorizado tanto pelos próprios nordestinos, que viam em seus repentistas os verdadeiros sábios da tribo, quanto pela gente das grandes cidades, inclusive os políticos, desejosos de ver seu nome na boca dos cantadores. Essa gente esfomeada do Nordeste, grande parte analfabeta, tendo que decorar seus decassílabos heróicos, à moda de Camões, são a prova de que não existe abismo lingüístico determinado pelas diferenças de classe. E se por acaso a miséria oprime a fala, abastardar a fala não erradica a miséria – radica a desigualdade.
O Mito nº 2 atacado por Marcos Bagno, o de que “brasileiro não sabe português e que só se fala bem português em Portugal”, é uma cantilena de Preconceito Lingüístico: O Que É, Como se Faz. Bagno diz que a norma culta no Brasil “é presa a um ideal lingüístico inspirado no português de Portugal, nas opções estilísticas do passado, nas regras sintáticas que mais se aproximem dos modelos da gramática latina”. Deslavada mentira! Como demonstrou Osman Lins, no insuperável Problemas Inculturais Brasileiros, desde a década de 60 que clássicos como Machado de Assis já tinham desaparecido dos livros escolares, dando lugar a autores estilisticamente simplistas, como Orígenes Lessa. E, na década de 70, esse desaparecimento dos clássicos do século passado se acentua e eles passam a ser substituídos pela quadrinização dos livros didáticos, magistralmente ridicularizada por Osman Lins, quando ironiza as “Vírgulas Falantes”.
Há quem, obtusamente, possa não ver relação entre uma coisa e outra, alegando que Bagno não é contra os clássicos, tanto que escreveu um Machado de Assis para Principiantes; mas a relação é óbvia e só não a percebe quem é incapaz de um silogismo simples. Ora, se houvesse mesmo os mitos de que só se fala português em Portugal, que os legítimos representantes da norma culta são os escritores e que só se pode falar como eles escrevem, é evidente que a escola não seria a primeira a abandonar os clássicos já nas décadas de 60 e 70, como fez, influenciada pelo advento da televisão. E a escola tem mudado para pior. Substituindo a quadrinização denunciada por Osman Lins pelo compartimentalismo inspirado na linguagem do CD-Rom, os livros didáticos aboliram de vez os clássicos e a norma culta como padrões de linguagem, substituindo-os pelos piores textos modernistas (como os de Oswald de Andrade) e por matérias de jornal. O Machado de Assis que ainda se lê na escola não é o da linguagem castiça, mas o dos triângulos amorosos. Os livros didáticos de maior sucesso na escola pública só costumam chamar a atenção do aluno para a linguagem de uma obra literária quando ela segue o paradigma modernista da subversão gramatical.
É no combate ao Mito nº 4 (“As pessoas sem instrução falam tudo errado”), que Marcos Bagno começa a revelar, a partir de sua própria cabeça, os preconceitos lingüísticos que projeta na sociedade. Depois de afirmar que a troca do “l” pelo “r” nos encontros consonantais, como em Craudia, chicrete, praca, broco, pranta, é “tremendamente estigmatizada”, o que o deixa possesso, o sociolingüísta tenta provar, “cientificamente”, inclusive com Camões, que essa pronúncia deve ser aceita pela escola, como uma variante lingüística dos “brasileiros falantes das variedades não-padrão”, a “classe social desprestigiada, marginalizada, que não tem acesso à educação formal e aos bens culturais da elite”, para quem a fonética da norma culta é “estrangeira”.
Além do absurdo de achar que todo pobre ou analfabeto troca o l pelo r, o que é absolutamente falso, Marcos Bagno ainda tem a desfaçatez de afirmar que, no caso dos “falantes da norma culta urbana”, das “pessoas escolarizadas”, que enfrentam o mesmo problema, “trata-se realmente de uma dificuldade física que pode ser resolvida com uma terapia fonoaudiológica”. Quer dizer, se o filho do lavrador entra na escola e fala pranta, a professora não deve corrigi-lo nem mandá-lo para a fonoaudióloga, caso não consiga superar essa pronúncia – ele deve continuar prantado na própria insuficiência lingüística. Agora, se for o filho do Bagno ou outro privilegiado falante da elite que faça essa troca, aí, sim, o governo deve pagar-lhe, correndo, um tratamento fonoaudiológico. Se as massas tivessem a autonomia que os sociolingüístas lhes atribuem, mandariam Bagno prantar fava com essa sua estranha igualdade.
Não é de estranhar que Marcos Bagno veja em todo pobre um limitado falante do idioma. O Projeto Censo, uma das grandes pesquisas sociolingüísticas que ele julga referenciais, “investiga o uso da língua no Rio de Janeiro nas classes sociais não-cultas (isto é, pessoas que não cursaram uma universidade)”, segundo palavras textuais do próprio Bagno. Por esse critério, o jornalista Paulo Francis, se fosse vivo, seria entrevistado para a pesquisa, classificado como “não-culto” por só ter o 2º grau completo.
O explícito preconceito de Bagno contra a inteligência dos pobres se completa no seu Mito nº 6 (“O certo é falar assim porque se escreve assim”). Diz Bagno que as escolas querem “obrigar o aluno a pronunciar do jeito que se escreve” e ressalva: “Seria mais justo e democrático dizer ao aluno que ele pode dizer bunito ou bonito, mas que só se pode escrever bonito, porque é necessária uma ortografia única para toda a língua, para que todos possam ler e compreender o que está escrito”. Por analogia, será também “justo e democrático” que o professor diga ao menino da roça que ele pode dizer prantar, se quiser, mas só pode escrever plantar devido à necessidade de que outros compreendam o que escreveu. Com isso, mais uma letra passa a ter dois sons na língua, aumentando a esquizofrenia fonética, que tanto preocupa Bagno.
Mas esse sexto “mito” de Bagno, a exemplo do quinto, sequer mereceria comentário – é absolutamente falso e só existe em sua cabeça. Nenhum professor cobra do aluno uma pronúncia idêntica à escrita, contrariando a fala corrente em seu meio. Uma professorinha goiana, mesmo se tiver a felicidade de nada saber de sociolingüística, jamais exigirá de um aluno seu que fale ou leia “A casa dê Maria” em lugar de “A casa di Maria”; pelo contrário, enquanto o aluno continuar lendo o de fechado, ela saberá que ele ainda não adquiriu fluência na leitura, porque não se despregou das letras e as soletra em vez de lê-las.
Abundam no livro Preconceito Lingüístico falsidades do gênero. Ainda durante o combate ao suposto Mito nº 6, Marcos Bagno afirma que “a gramática tradicional despreza totalmente os fenômenos da língua oral, e quer impor a ferro e fogo a língua literária como a única forma legítima de falar e escrever, como a única manifestação lingüística que merece ser estudada”. E cita como exemplo a Nova Gramática do Português Contemporâneo, de Celso Cunha e Lindley Cintra, um clássico do gênero, que abona seus tópicos gramaticais com frases retiradas das obras literárias.
Para Marcos Bagno, essa obra de Celso Cunha “só pode ser consultada por quem tiver dúvidas no momento de escrever um texto literário”, uma vez que, segundo seu tosco julgamento, ela não aborda “fenômenos característicos de outras normas escritas, como a jornalística ou a da produção científica, muito menos os fenômenos típicos da língua falada”. Ora, se tiveres essa gramática em casa, leitor ou leitora, experimenta abri-la em qualquer página. Verás que as frases retiradas dos livros literários para análise gramatical não podem, em sua maioria, ser consideradas literárias.
O livro está cheio de frases como a que se segue: “Aqui não passa ninguém”. Trata-se de uma frase do escritor português Fernando Namora, ilustrando uma lição sobre advérbio. Mas o que ela tem em si de literária, de tão especificamente estética, que não possa ser útil a quem queira escrever um recado para afixar numa porta em Goiânia, Lisboa ou Luanda? Não é o fato de usar texto literário que fará uma gramática ser exclusiva de escritores. Se fosse assim, deveria haver uma gramática específica para cada segmento social: uma para advogados, outra para médicos, esta para engenheiros, aquela para historiadores.
Não há um fosso entre a língua dos escritores e a dos demais segmentos da elite intelectual, muito menos entre a fala deles e a fala comum. Marcos Bagno comete mais uma mentira deslavada quando diz que Celso Cunha não trabalha “outras normas escritas” nem com “fenômenos típicos da língua falada”. Será cinismo ou idiotice o que impede esse pseudolingüísta de ver que as obras literárias – mais do que qualquer outra manifestação lingüística – são as mais representativas dos vários registros de fala da sociedade? Por exemplo: o estro de Euclides da Cunha dialoga de igual para igual com a tese científica; a secante de Rubem Fonseca é um recorte do mais puro jornalismo; já a crônica de Carlos Drummond tem o vívido sabor da língua falada.
Além disso, nos textos literários aproveitados por Celso Cunha há diálogos, e esses diálogos reproduzem fenômenos típicos da linguagem oral. E são textos que vão de clássicos do romantismo português e brasileiro a autores contemporâneos como Adonias Filho ou Lins do Rego. Sem contar que o “tradicional” Celso Cunha é infinitamente mais progressista do que o “revolucionário” Marcos Bagno – em sua gramática, Cunha fez questão de se utilizar de textos literários portugueses, brasileiros e africanos. Ora, se dependesse do quixotesco marxolingüísta da USP, os povos africanos, que muito precisam do português como língua de cultura, seriam completamente abandonados por nós. Os falantes lusófonos da África não cabem no brasileirês da sociolingüística, porque, numérica e economicamente insignificantes, são desprezíveis para a cartografia lingüística de Marcos Bagno.
O Mito nº 7 também não mereceria comentários se não fosse pelo fato de que é o próprio Bagno quem o desmente, sem perceber. Depois de afirmar que “é difícil encontrar alguém que não concorde” com a idéia de que é “preciso saber gramática para falar e escrever bem”, ele mesmo aponta três escritores de grande sucesso que não concordam com ela – Rubem Braga, Carlos Drummond de Andrade e o próprio Machado de Assis. Aliás, o próprio Bagno reconhece que “os escritores são os primeiros a dizer que gramática não é com eles!”. Será que todos os escritores juntos, do passado e do presente, foram incapazes de convencer uma só pessoa de que não é preciso saber gramática para falar e escrever bem a ponto de deixarem surgir esse preconceito? É claro que não. Eis, aí, mais uma confusão da cabeça de Bagno.
O que todo mundo de fato acha – e trata-se de fato, não de mito – é que para falar e, sobretudo, para escrever bem é preciso ler muito. A gramática como verdade já não existe na maioria das escolas. Quando muito, o aluno é instado (mas não obrigado) a decorar algumas inócuas regras gramaticais, que depois lhe são cobradas acriticamente, em provas de marcar com X. Aprende-se o português nas escolas públicas de duas maneiras: ou escrevendo-se como se quer, sem regra alguma, salvo a do umbigo; ou mediante a reprodução de fórmulas esclerosadas, mas adredemente facilitadas para que o aluno não seja reprovado depois. O primeiro modo, especialmente nos ciclos básicos da escola pública, é o mais corrente, por força do construtivismo. O aluno é levado a produzir seus próprios textos (e estudar segundo eles), mesmo quando não é capaz de assinar o nome, porque se considera autoritarismo colocá-lo em contato com os bons autores do idioma.
Mas é no combate a um fato que toma por mito, o Mito nº 8 (“O domínio da norma culta é um instrumento de ascensão social”), que o marxolingüísta Marcos Bagno se revela por inteiro. Bagno chega a ironizar essa verdade: “Se o domínio da norma culta fosse realmente um instrumento de ascensão na sociedade, os professores de português ocupariam o topo da pirâmide social, econômica e política do país, não é mesmo?” Pronto! Marcos Bagno parece ter sido capaz de um silogismo: o domínio da norma culta é instrumento de ascensão social; o professor de português domina a norma culta; logo, é ele quem deveria mandar na sociedade.
Eis um primor da lógica construtivista, haurida na pedagogia-parangolé de uma Ester Grossi, na filosofia charlatã de um Ernildo Stein ou na historiografia oligofrênica de uma Ledonias Franco – uma premissa rota e uma conclusão torta, ambas depondo contra o labirinto mental da cabeça de Bagno. Porque qualquer pessoa sabe que professor de português da escola pública não domina a norma culta satisfatoriamente. Basta examinar o desempenho dos vestibulandos de letras e pedagogia para se constatar que eles obtém as piores notas, inclusive nas provas de redação e português. Por que será que Marcos Bagno não foi capaz de perceber coisa tão óbvia quanto o sol num meio-dia sem nuvens? Talvez por uma distorção do ambiente em que vive. Na carreira do magistério público, os silogismos se escrevem por premissas tortas: se um professor de português é excelente, vai preparar alunos para o vestibular de medicina; se é sofrível, vira doutor e vai formar professores na graduação de letras.
Apesar de ter-se tornado um ídolo em muitas faculdades de humanas do país, inclusive na Faculdade de Letras UFG, onde os alunos estão fazendo trabalho sobre o livro Preconceito Lingüístico, Marcos Bagno é o avesso do que se pode esperar de um cientista, credencial com que ele gosta de se apresentar ao leitor em suas obras. Recorrendo a um de seus marxolingüístas preferidos, ele afirma taxativamente: “A propaganda da suposta dificuldade da língua é, como diz Gnerre no livro já citado, o arame farpado mais poderoso para bloquear o acesso ao poder”.
Notastes, leitor e leitora, a importância extrema que ele, corroborando Gnerre, concede à língua? Ela – sustenta Marcos Bagno – é o mais poderoso bloqueio de acesso ao poder. Entretanto, é o mesmo Marcos Bagno quem diz: “O domínio da norma culta de nada vai adiantar a uma pessoa que não tenha todos os dentes, que não tenha casa decente para morar, água encanada, luz elétrica e rede de esgoto”. E Bagno, como se estivesse num palanque do MST, continua por um parágrafo inteiro falando que não adianta a norma culta para quem não tem emprego, é cidadão pela metade ou vive acossado por senhores feudais que lhe tiram a terra para morar. Ora, se “não dominar a norma culta é o mais poderoso instrumento de exclusão do poder”, dominá-la tem que ser – necessariamente – o mais poderoso instrumento de ascensão social.
Por outro lado, Bagno concebe “ascensão social” de um modo muito peculiar: para ele, ascender é dominar – só ascende aquele que alcança o topo. Ora, se uma mulher trabalha como auxiliar de enfermagem num hospital e, com muito esforço, se forma em medicina, é claro que ela ascendeu socialmente, mesmo que não tenha se tornado dona de hospital, coisa que ciência alguma lhe vai garantir se ela não vier de um berço rico. Com a língua é a mesma coisa. Eu, por exemplo, que passei de cozinheiro de hospital a editor de jornal, não tenho dúvida de que ascendi socialmente. Mas, de acordo com Bagno, estou enganado. Eu só poderia dizer que tive uma ascensão social se fosse o dono da Organização Jaime Câmara (a maior empresa de comunicação do Centro-Oeste) e se o Júnior Câmara (seu proprietário) fosse meu empregado, uma vez que creio escrever melhor do que ele.
É possível se conceber uma mente mais tacanha, mais abjeta, mais materialista, mais obcecada em poder e dinheiro do que essa de Marcos Bagno? E pensar que é gente dessa laia que dita a ética nas escolas públicas. Mas nem era preciso contra-argumentar tanto. Basta examinar o mito que desespera Bagno: “O domínio da norma culta é um instrumento de ascensão social” (grifo meu). Como ele próprio afirma, ela é um instrumento, não o instrumento. Se as pessoas acreditassem que a norma culta é o instrumento de ascensão social, aí, sim, seria o caso de Bagno combater o mito. E eu lhe daria razão.
Por fim, Marcos Bagno se desmascara de vez. É ele quem escreve, textualmente, na página 72 de Preconceito Lingüístico: “Valerá mesmo a pena promover a ascensão social para que alguém se enquadre dentro desta sociedade em que vivemos, tal como ela se apresenta hoje?” (grifos dele próprio).
Por favor, leitores e leitoras, relede esta frase. Percebeis a extrema gravidade dela? Se houvesse um Código de Ética do Magistério, o pseudolingüísta Marcos Bagno (agora ele se revela como tal) teria que ter a sua licença de professor sumariamente cassada. É o próprio Bagno quem assume explicitamente – e por escrito – que, como professor, não está interessado em ensinar nada a seus alunos, mesmo ganhando para isso, porque não é sua intenção emancipá-los para que participem da sociedade que aí está. Ou seja, Bagno quer vê-los na miséria, porque precisa da miséria para manter seu discurso contra o sistema. Já pensaram se os médicos de esquerda, ferozes combatentes da indústria farmacêutica, fossem adotar a ética da cabeça de Bagno? Deixariam morrer seus pacientes infartados para não vê-los dependentes de medicamentos. Só nas ciências humanas se concede título de doutor a um sujeito tão mal resolvido como intelectual e cidadão.
Marcos Bagno é tão confuso que chega a depor contra si mesmo. Eis o que ele diz sobre o seu objeto de conhecimento: “Existe um mito ingênuo de que a linguagem humana tem a finalidade de comunicar, de transmitir idéias, mito que as modernas correntes da lingüística vem tratando de demolir, provando que a linguagem é muitas vezes um poderoso instrumento de ocultação da verdade, de manipulação do outro, de controle, de intimidação, de opressão, de endurecimento”.
Só um doutorzinho da USP, aquele antro de cúmplices que arrastam até hoje um cadáver insepulto com a cara de inocentes, é que tem o despudor, a presunção, a desfaçatez, de chamar de “mito ingênuo” a idéia de que a linguagem humana tem a finalidade de comunicar, de transmitir idéias. Tem cabimento Bagno não perceber que, até para transmitir esse seu arremedo de idéia, esse lodaçal lingüístico que lhe vai pelo cérebro, ele não teve outro recurso senão recorrer à linguagem? Se a tese de Marcos Bagno for estendida a outras instâncias da realidade, será preciso considerar que é um mito ingênuo supor que a água foi feita para saciar a sede, porque ela também afoga; que o alimento foi feito para matar a fome, porque ele também dá indigestão; enfim, que o ânus foi feito para defecar, porque dele também saem “idéias”. Aliás, chego a desconfiar da epígrafe que abre este artigo. Será que Preconceito Lingüístico saiu mesmo da cabeça de Bagno?
– Concordo, leitores e leitoras. Acabo de cometer um grave desrespeito contra Marcos Bagno. No próximo artigo, quando vou demonstrar porque Bagno é um golpista da língua, se tiver de usar os vocábulos ânus e defecar novamente, pedirei licença para substituí-los por seus equivalentes populares. Não pretendo destratar ainda mais o lingüísta Bagno, obrigando-o a aturar essa ofensiva norma culta, que ele tanto detesta.

Parte II
Quando a língua se faz regougo
Disfarçando-se de vanguarda da ciência, a sociolingüística de Marcos Bagno não passa de um panfleto pedagógico, que tenciona fazer da língua portuguesa um instrumento de doutrinação política
Enganam-se os cristãos de língua portuguesa – a Bíblia foi psicografada. Ao contrário do que comumente se imagina, a versão portuguesa das Escrituras não foi traduzida pelo protestante João Ferreira de Almeida, mas ditada por seu espírito, muito depois de sua morte. Essa informação bombástica, que pode subverter todos os alicerces da cultura ocidental, é revelada no livro Preconceito Lingüístico: O Que É, Como se Faz (Editora Loyola), do sociolingüísta Marcos Bagno, parcialmente analisado em artigo anterior. Ficcionista, poeta, tradutor e doutor em lingüística pela USP, Marcos Bagno, quase de passagem, sem perceber o profundo impacto de sua revelação, afirma, na página 134 do livro: “A primeira tradução da Bíblia para o português, por exemplo, só aconteceu em 1719, por obra de um protestante, João Ferreira de Almeida”.
O espírito do médium Chico Xavier ainda nem sonhava com sua encarnação atual e faltavam quase dois séculos para que o positivista francês Hipólite Leon Denizart Rivail sistematizasse o espiritismo, com o nome de Alan Kardec. Talvez por isso, o trabalho mediúnico de tradução da Bíblia para o português tenha passado despercebido. Mas não há dúvida: só pode ter sido o espírito de João Ferreira de Almeida quem ditou essa tradução para um médium em 1719. Porque João Ferreira de Almeida “desencarnara” 28 anos antes: ele morreu em 1691, aos 63 anos. Como poderia traduzir a Bíblia – fisicamente – em 1719?
Em si, esse canhestro erro de Marcos Bagno não compromete a essência de Preconceito Lingüístico, uma vez que o livro não trata de religiões, mas de línguas. Entretanto, ele é um sintoma do labirinto mental da cabeça de Bagno. Se essa informação, em seu todo, é lateral no contexto de Preconceito Lingüístico, o mesmo não se pode dizer da data, “1719”, em relação à informação em si. Uma vez que Bagno tencionava realçar o quanto foi tardia a tradução da Bíblia para o português, precisar uma data sem consultar quaisquer enciclopédias, ou consultá-las de modo apressado, revela um certo despreparo didático-pedagógico para separar o essencial do supérfluo; deficiência que fica evidente quanto ele encrespa com Dad Squarisi, responsável por uma coluna sobre o idioma que é reproduzida em vários jornais do país.
Squarisi utiliza-se de um truque muito usado por todos os professores de português quando querem explicar a voz passiva. Mostra que há duas formas de construir a voz passiva: com o verbo ser (passiva analí­tica) e com o pronome se (passiva sintética). E, na dúvida entre vende-se casas ou vendem-se casas, ela sugere que se recorra à voz passiva analítica, com o verbo ser (“casas são vendidas”), para se descobrir que, na voz passiva sintética, o correto é vendem-se casas.
Quando vai contestá-la, Marcos Bagno confunde superfícies com profundezas e chama esse recurso de “esfarrapado truque”, desvirtuando completamente o que sugere Squarisi. Ela e as gramáticas normativas jamais disseram que vende-se pode ou deve ser substituído por é vendido que, no fim, o emissor da mensagem terá o mesmo efeito – algo que Marcos Bagno as acusa de fazer. Pelo contrário, é exatamente por saberem do efeito muito maior da voz sintética (vende-se... ou vendem-se...) que as gramáticas se valem do “truque” para explicar como é que se deve escrever a frase. Ou seja, mandam o aluno pensar em “casas são vendidas” apenas para que ele perceba porque deve escrever “vendem-se casas” e não “vende-se casas”.
Para Bagno, essa exigência dos gramáticos é mais um preconceito lingüístico. Porém, que mal existe em levar um falante do idioma a refletir sobre a referida construção, uma vez que ela vai além do aspecto meramente formal do português? Preconceito não é pedir que o aluno o faça, mas imaginá-lo incapaz de refletir sobre isso, deixando que continue escrevendo como aprendeu nas tabuletas do comércio de seu bairro. Preconceito é impedi-lo de estabelecer essas relações importantes entre a ação e seu objeto, algo que lhe vai servir pela vida afora, quando for pensar sobre qualquer fenômeno mais abstrato.
É ainda nessa crítica a Dad Squarisi que o cientista da USP se deixa perder pelo militante de esquerda. Marcos Bagno tenta aprofundar-se numa análise verdadeiramente lingüística e não panfletária do idioma, mas acaba vítima de seu próprio veneno. Ele demonstra que a posição dos elementos num enunciado muda a interpretação de seu significado e, numa argumentação em crescendo, procura provar que, quando se quer dizer que “muitos operários foram demitidos da Ford”, o correto é dizer – na voz sintética – “demitiu-se muitos operários da Ford” e não “demitiram-se muitos operários da Ford”, como preconiza a gramática normativa. Marcos Bagno sustenta que, se o verbo estiver no plural, como no segundo caso, a frase perderá completamente seu impacto e não vai deixar claro que os operários foram demitidos a contragosto – parecerá que pediram demissão, o que esconderia a crueldade de seus patrões.
Aparentemente, Marcos Bagno está coberto de razão. Entretanto, não é ele próprio quem defende o critério pragmático como uma dimensão essencial da análise de um enunciado lingüístico? Pois, sejamos pragmáticos: analisemos esse enunciado não de acordo com esclerosadas normas gramaticais, como diria Bagno, mas segundo os efeitos que ela suscita em seu contexto. Mesmo na linguagem culta de jornais ou universidades, jamais se fala ou se escreve uma frase do gênero começando com o verbo. A ordem normal é sempre a direta: “Muitos operários foram demitidos da Ford”. Se alguém inicia com verbo uma frase assim é porque fala a partir da norma culta, para falantes da norma culta e, ainda por cima, por escrito, muito provavelmente de forma literária e rebuscada. Ora, num contexto desses, escrever demitiu-se em lugar de demitiram-se como quer Marcos Bagno, é matar completamente qualquer efeito da frase. Para ouvintes muito cultos e numa situação formal (como esse público a quem obviamente se destina uma frase do gênero), o desvio gramatical será um ruído na mensagem, o que reduzirá sensivelmente seus efeitos. A não ser que Marcos Bagno, ao propor a extinção total dessa diferença, queira fazer o mesmo com todo falante capaz de apreciá-la.
O autor de Preconceito Lingüístico também implica com o acadêmico Arnaldo Niskier por conta de uma observação perfeitamente compreensível. Niskier escreveu: “O sujeito que usa um termo em inglês no lugar do equivalente em português é, na minha opinião, um idiota”. Marcos Bagno comenta: “Ora, se ele mesmo reconhece que o uso de estrangeirismos é a face mais irritante de um país colonizado culturalmente como o nosso, é injusto chamar de idiota a pessoa que é, de fato, uma vítima dessa colonização cultural. Se nosso comércio está repleto de nomes em inglês é porque os comerciantes e os industriais sabem que isso atrai mais o público, que qualquer produto com aparência de estrangeiro tem maior aceitação por parte do consumidor”.
É difícil ler uma coisa dessas sem um frêmito de indignação. O mesmo Bagno que submete a língua ao determinismo econômico, agora submete a economia ao determinismo lingüístico. Qualquer pessoa sabe que – a despeito de outros fatores – o que mais atrai o consumidor é o preço baixo. Até o Carrefour, que tem um público de poder aquisitivo alto, sabe muito bem disso e se um produto de marca não baixa a um preço que ele considera satisfatório, esse produto fica fora das prateleiras. Isso já aconteceu lá com o arroz Cristal e acontece freqüentemente com o Nescafé, uma marca tradicional de café solúvel. As papelarias estão cheias de canetas importadas, com nomes em inglês, mesmo assim a velha Bic continua sendo uma campeã de vendas, a despeito da Lei de Bagno. É que ela reúne baixo preço e qualidade razoável. Das canetas de seu nível é a de mais resistência.
Entretanto, o problema mais grave é o “ético” Marcos Bagno distorcer, mais uma vez, a fala alheia. Bagno sabe muito bem que Arnaldo Niskier não está se referindo aos comerciantes quando diz que usar termo em inglês no lugar do português é ser idiota. Obviamente, Niskier refere-se a jornalistas, economistas, professores universitários, técnicos do governo e outras pessoas do mesmo nível social. Mas Bagno escamoteia esse fato e faz de conta que Niskier está chamando de idiota uma Carolina qualquer da Vila Finsocial que resolve botar na sua confecção o nome de Karollyne. Ora, isso é inglês? Não. É língua bárbara, balbucio do escravo ante o senhor. Logicamente não é disso que trata Arnaldo Niskier.
Essa Carolina da Vila Finsocial pode ser – mas não necessariamente – uma vítima da colonização, passível de pena e não de crítica. Mas o que dizer daquele sujeitinho filho de papai, que vai estudar economia em Chicago e volta de lá esnobando inglês com os colegas, enquanto saqueia o Brasil descaradamente? Pode-se chamar de vítima da colonização aquela gente do BNDES que ficava fazendo piadinhas em inglês enquanto leiloava o país? Podem ser chamados de vítimas da colonização os doutores da UFMG, que, recentemente, queriam proibir o uso do português num congresso realizado na própria universidade, infringindo as leis do país? Pode-se chamar vítima da colonização o velho escritor e professor universitário goiano Heleno Godoy, tardio doutorando da USP, que, ao traduzir contos do inglês, exige que as aspas fiquem depois das vírgulas nas citações e diálogos, como se essa forma de colocação das aspas fosse peculiar ao escritor traduzido e ele precisasse evidenciar isso na tradução? Nada disso. Essa gente não é vítima de nada. Nós, brasileiros, é que somos suas vítimas, uma vez que lhes pagamos as bolsas com que estudam fora do país e nada ganhamos em retribuição. Serviçais, eles estão sempre de costas para o Brasil, encarando de frente os Estados Unidos – não como quem o enfrenta, mas como quem se submete a uma espécie de felação cultural.
Um exemplo dessa submissão pode ser encontrado na revista Signótica (ano 7, 1985), do curso de letras da Universidade Federal de Goiás. Nela há um artigo todo escrito em inglês do professor Pedro Fonseca, doutor em literatura portuguesa pela Universidade do Novo México e professor do curso de letras da UFG. O artigo examina textos da literatura colonial em busca da representação da imagem feminina. E até mesmo um dos textos estudados, Diálogo das Grandezas do Brasil, atribuído a Ambrósio Fernandes Brandão, o Brandônio, é citado em inglês – oito linhas de citação em inglês. Os autores franceses citados, como Beauvoir e Derrida, também o são em inglês. Qual o sentido disso se esses professores são os primeiros a dizer para o aluno que, de preferência, toda citação em texto científico deve dar prioridade à língua de origem do autor citado? Logo, Beauvoir teria que ser citada em francês e Brandônio em português.
Não por acaso Marcos Bagno é um ferrenho adversário do projeto de valorização da língua portuguesa, apresentado pelo deputado Aldo Rebelo, e, em Preconceito Lingüístico, afirma, taxativamente, que “não adianta bradar contra a invasão de palavras [estrangeiras] na língua portuguesa” sem analisar a dependência sócio-econômica do país. Segundo ele, “é querer eliminar os efeitos sem atacar as verdadeiras causas”. Entretanto, em todo o seu livro, Marcos Bagno não faz outra coisa senão atacar o efeito (a dificuldade da norma culta) em detrimento das causas dessa referida norma não ser bem aprendida nas escolas (entre elas, as péssimas condições do ensino no país). Bagno usa dois pesos e duas medidas: em relação a seu próprio idioma, prega a guerra contra os efeitos; em relação à invasão do inglês, preconiza que se deixe como está até que o Brasil se liberte do jugo norte-americano.
Mais grave é que o mesmo Bagno que impreca contra a norma culta do português, sob o pretexto de que ela é “elitista”‚“branca” e “heterossexual”, louva descaradamente a hegemonia cultural do inglês. Por acaso, o inglês que se impõe ao mundo não o faz por intermédio de sua norma culta – “branca”, “heterossexual” e “ultra-elitista”, porquanto movida a dólar? Só a vesguice materialista explica essa verdadeira unção que Marcos Bagno devota ao poder e ao dinheiro. Pouco depois de não conseguir disfarçar que julga o inglês norte-americano melhor do que os outros porque os Estados Unidos são mais poderosos, Bagno também julga que o português falado no Brasil é o melhor, porque o Brasil é maior e mais forte economicamente do que Portugal. Segundo ele, “quando se trata de língua se deve levar em conta a quantidade”. Ora, se em língua o que conta é a quantidade, por que Bagno não sugere ao MEC que acabe com os programas voltados para a pesquisa e o ensino das línguas indígenas, essas ilhotas perdidas no oceano do português?
Ao ver-se engasgado pela própria incoerência, talvez ocorra a Marcos Bagno desculpar-se com a seguinte afirmação que faz em Preconceito Lingüístico: “Ninguém comete erros ao falar sua própria língua materna, assim como ninguém comete erros ao andar ou respirar. Só se erra naquilo que é aprendido, naquilo que constitui um saber secundário, obtido por meio de treinamento, prática e memorização: erra-se ao tocar piano, erra-se ao dar um comando num computador, erra-se ao falar/escrever uma língua estrangeira. A língua materna não é um saber desse tipo: ela é adquirida pela criança desde o útero, é absorvida junto com o leite materno”. Sob esse prisma, estaria explicada a ojeriza que devota à norma culta de sua língua, enquanto aceita passivamente a do estrangeiro. Mas será que Marcos Bagno está certo ao dizer que “ninguém comete erros ao falar sua própria língua materna”? Se, como afirma Bagno, falar e escrever é como respirar e andar, então, o que faz no currículo escolar a disciplina língua portuguesa se nunca foi necessário introduzir nas escolas as disciplinas andamento e respiração?
Mas também nessa comparação Bagno erra. Até o respirar e o andar podem ser aperfeiçoados, mediante exercícios; aliás, é para isso que existem a ioga e a educação física. Se isso vale para atividades tão pouco modificáveis, como andar e correr (por mais que uma pessoa seja elegante ela não anda de modo muito diferente de outra que não o é), o que dizer da linguagem, que é muito mais artificial do que aqueles dois outros atos, tanto que aparecem muito depois deles na história da espécie? Quando a língua é comparada à respiração na cabeça de Bagno, processa-se, ali, uma redução do estatuto humano – a linguagem falada se torna uma característica animal e o homem volta à condição de símio. E se a fala já á um elemento da cultura, o que dizer da escrita, completamente artificial? Entretanto, Marcos Bagno sustenta que nenhum falante erra em sua língua materna, nem mesmo ao escrever. (...)[10]


[1]ROSA, Jorge la (org.). Psicologia e Educação: O Significado do Aprender. 9. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2007, p. 132.
[2] CASTRO, Cláudio de Moura, Os meninos-lobo. Revista Veja, edição 2120, pág. 24.
[3] CARVALHO, Olavo de. Cartas Comentadas sobre Lingüística e Gramática. Disponível em http://www.olavodecarvalho.org/textos/cartas.htm
[4] ANTUNES, Marco A. T. Disponível em http://www.brazzilport.com/viewtopic.php?t=1338php?t=1338. Capturado em 28/5/2009.
[5] BILAC, Olavo. A Língua Portuguesa. In: Conferências e Discursos. s.l., s.e., s.d., p. 209.
[6] ALMEIDA, Júlia Lopes de. Histórias de Nossa Terra. Rio de Janeiro: ed. Francisco Alves, 1925, p. 12–13.
[7] CARVALHO, Olavo de. O Brasil Tem Filósofo. Disponível em http://www.olavodecarvalho.org/textos/temfilosofo.htm. Capturado em 30/11/2010.
[8] CARVALHO, Olavo de. Quem Como Quem. Disponível em http://www.olavodecarvalho.org/apostilas/quem.htm. Capturado em 30/11/2010.
[9] BECHARA, Evanildo. Ensino da gramática. Opressão? Liberdade?. 5. ed. São Paulo: Ática, 1991.
[10] SILVA, José Maria e. O Mito do Preconceito Lingüístico. Disponível em http://brazzilforum.com/viewtopic.php?f=26&t=12258

2 comentários:

  1. Excelente texto! Objetivo, didático, com clareza e precisão. Parabéns!!!

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  2. Obrigado.
    O objetivo é ir compartilhando o pouco conhecimento, que adquirimos com muitos esforços.

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