domingo, 7 de maio de 2017

COMENTÁRIO LIGEIRO SOBRE O ROMANCE "VIDAS SECAS", DE GRACILIANO RAMOS


Por Anderson Cássio de Oliveira Lopes 
(Publicado originalmente em 25/02/2013)


Na obra Vidas Secas, a linguagem direta das personagens é caracterizada pela simplicidade – por vezes mesmo insuficiência – da expressão verbal. Com efeito, como os protagonistas da história são pessoas não alfabetizadas, e pretendendo dar-lhe maior realismo e verossimilhança, o autor pontua a narrativa com poucos diálogos, curtos, não raro apenas monossilábicos, salpicados de muxoxos e outras emissões sonoras não exatamente verbais, embora inteligíveis e capazes de estabelecer a comunicação – por vezes precária, sem dúvida, mas sempre é comunicação – entre os membros da família, e, eventualmente, entre estes e pessoas de fora do núcleo familiar, como o saldado amarelo, o fiscal de tributo e o proprietário da fazenda. Sinhá Vitória, repreendendo um dos filhos, diz: “Capeta excomungado!”; Fabiano, andando pelo alpendre, sozinho, diz: “Ecô! Ecô!”; os meninos, pressentindo a inevitabilidade do sacrifício da cadela Baleia, dizem: “vão bulir com a Baleia?”. Desta forma, observa-se que nos diálogos não há frases longas nem períodos compostos de orações subordinadas ou outras complexidades sintáticas, que, de resto, seriam incompatíveis com a ausência de formação acadêmica dos retirantes. Isso no discurso direto, pois, quanto ao indireto livre, predominante na narrativa, é por meio dele que vem à tona toda a angústia contraditória do monólogo interior de Fabiano, assim como as demais vocalizações necessárias à construção da obra. Neste caso, todavia, não se expressa, exatamente, a voz das personagens, mas a leitura destas feita pelo narrador, que diz o que elas diriam se pudessem ou soubessem fazê-lo.
Já a paisagem humana construída por meio da voz e das ações das personagens é, como não poderia deixar de ser, pautada pelas complexidades e contradições inerentes a qualquer sociedade humana, ainda que reduzida a poucos indivíduos isolados e macerados pela miséria e agrestia do ambiente em que vivem, como é o caso das personagens retratadas no romance comentado. Tome-se, por exemplo, o tocante capítulo da morte da cadela Baleia. Ela era estimada como se fosse pessoa da família (e o autor intensifica essa impressão conferindo-se nome próprio, coisa que deixou de fazer em relação aos filhos de Fabiano, mencionados apenas como filho Menor e filho Maior), mas foi assassinada pelo mesmo Fabiano. Claro que a cachorrinha estava doente e sofrendo, porém não costumamos sacrificar nossos parentes só porque adoecem ou sofrem. Por outro lado, o próprio Fabiano, alguns capítulos antes, dera evidente demonstração de nobreza de sentimentos (ou torpe pusilanimidade, a depender do ponto de vista), quando, tendo ao alcance de sua arma branca e sem possibilidade de defesa, o soldado amarelo que anteriormente lhe agredira e insultara de modo injusto, podendo, portanto, tirar desforra da violência sofrida, Fabiano, sofreando um impulso inicial, não apenas permite que o soldado amarelo vá embora incólume, como ainda lhe indica o melhor caminho a seguir.
Graciliano Ramos, na condição de intelectual socialista engajado, debruça-se sobre os graves problemas e contradições sociais do país – e do Nordeste em especial –, procurando ilustrar e denunciar, mediante o discurso e a ação das personagens, os conflitos e “injustiças” a seu ver presentes na sociedade. Na voz do fazendeiro, ele inscreve o estereotipado discurso do proprietário, identificado com o “capitalismo selvagem”, que “explora” acintosamente o empregado, defraudando-o em seus já parcos rendimentos; na de Fabiano, a fala da massa ignara, analfabeta, humilhada, sem acesso aos bens da cidadania, de todo desprotegida do Estado, que (ao invés de promover a “justiça social” e ser “benevolente”, como diz querer o discurso comunista) só se faz presente para cobrar tributos, como no episódio em que Fabiano tenta vender um leitão na vila. Na ação do fiscal de tributos, vê-se a sanha arrecadatória do Estado, ávido de tributar e sovina quando o assunto é beneficiar a coletividade.
No conjunto, o romance é uma grande denúncia da situação calamitosa em que sobrevivem, em estado de absoluta miséria, milhares de famílias habitantes na região do semi-árido nordestino, passando fome, sede e toda sorte de privações, abandonadas dos governos e maltratadas pela indiferença inclemente da natureza agreste.

COMENTÁRIO RÁPIDO SOBRE O ROMANCE "AS INTERMITÊNCIAS DA MORTE", DE JOSÉ SARAMAGO


Por Anderson Cássio de Oliveira Lopes
(Publicado originalmente em 25/02/2013)

A querela do escritor José Saramago contra a Igreja Católica evidencia-se já no capítulo I

No primeiro capítulo de As Intermitências da Morte, o escritor português José Saramago perpetra, não sem uma boa porção de humor, explícita crítica à Igreja Católica. Com efeito, o diálogo travado entre o primeiro-ministro e o cardeal católico é vazado com fina ironia, notadamente quando o cardeal declara que desde o princípio a igreja não tem feito outra coisa senão contradizer a realidade; que a sua especialidade é usar a fé como arma para neutralizar a natural curiosidade do ser humano; que sem morte não há ressurreição, sem a qual, por sua vez, não há necessidade de igreja... Decerto essa crítica seria muito mais verdadeira se voltada contra o comunismo/socialismo de que era adepto o mesmo Saramago, porém este era exímio em alfinetar e maldizer a religião e a crença alheia, embora perfeitamente rombo e lapuz no concernente à autocrítica das suas próprias crenças ideológicas...
De qualquer sorte, cumpre ressaltar a presença de uma espécie de fio cômico a perpassar a seriedade aparente deste diálogo entre a autoridade política e a religiosa, de modo a infundir no leitor a certeza da tartufice da igreja, que – na sua infatigável pugna por estabelecer-se e amealhar poder, dinheiro e prestígio – abusa da boa-fé do povo crédito, sem hesitar em distorcer a realidade e a verdade dos fatos, desde que com isso alcance os seus desideratos seculares. Na teia prosística de Saramago, vislumbra-se que nem os graduados representantes a própria Igreja Católica creem deveras em seus dogmas, mas impõe-nos à população em geral, incapaz de, em seu próprio ser, encontrar o conforto psicológico de que necessita. Resta evidente, no diálogo destacado, que a igreja é muito deste mundo, é um fim em si mesma, e não um meio para se chegar a algo maior em outra dimensão. O próprio Deus não é o fim último a que se busca, mas apenas instrumento para a consecução dos objetivos terrenos dos dirigentes eclesiásticos. O medo da morte e a angústia do fim, inerentes em maior ou menor grau a todo ser humano, manipulados com extraordinária mestria pelos religiosos, completam o arsenal abstrato e ideológico com o qual a igreja logra sustentar o seu poder e autoridade. Por fim, conquanto a crítica e o azedume de José Saramago dirijam-se diretamente à Igreja Católica, estendem-se facilmente a todas as agremiações religiosas com penetração e influência transnacionais.

Como a morte é tratada nesta obra de Saramago

No tratamento da morte, Saramago serve-se de diversos recursos de estilo, o principal dos quais sendo a prosopopeia, figura de pensamento que consiste em personificar, atribuir vida aos seres inanimados, fictícios, abstratos, ausentes ou mortos. Essa personificação da morte lobriga-se logo no início do romance, quando se diz metaforicamente, a propósito do fato de não haver registro de óbito no dia primeiro de janeiro, que “já começava a ser chamado por alguns graciosos, desses que nada respeitam, a greve da morte” (grifei). Todavia, a personificação consubstancia-se em definitivo somente quando o diretor-geral da emissora de televisão nacional recebe uma carta violeta assinada pela morte, na qual carta se anuncia “o imediato retorno à normalidade”, ou seja, as pessoas voltarão “a morrer tal como antes sucedia, sem protestos notórios, desde o princípio dos tempos até ao dia trinta e um de dezembro do ano passado”. Abramos um parêntese para referirmos que a cor da carta não é sem propósito, já que o violeta, com sua vasta simbologia, significa também a passagem outonal da vida para a morte. Ainda na mesma missiva violeta ao diretor-geral, a morte faz saber que alterará a sua estratégia, dando um aviso prévio de uma semana a toda a gente “para pôr em ordem o que ainda lhe resta de vida, fazer testamento e dizer adeus à família”. A partir dessa carta ao diretor-geral, a personificação da morte ganha novos contornos – em especial quando retorna três vezes a carta-aviso remetida a um misterioso violoncelista, fato inusitado para a morte, que, intrigada, resolve entregar pessoalmente a missiva – culminando na sua encarnação numa jovem e bela mulher de 36 anos, que se veste como se realmente fosse mulher, hospeda-se num hotel próximo à residência do violoncelista, compra um camarote para assistir ao concerto em que tomará parte o dito violoncelista, enfim, a bela e jovem morte faz por acercar-se dele, que possui 49 anos e vive sozinho com seu cachorro. Enceta-se, por assim dizer, uma espécie de romance macabro e sensual do músico com a morte encarnada, ao qual romance não faltaram nem sequer os vaivéns e desencontros dos namoros comuns. O clímax ocorre quando a morte toca a campainha da casa do violoncelista, supostamente decidida a entregar-lhe a carta fatal. Ele atende, trocam os “boas noites”; ele a convida para entrar, conversam, ele executa ao violoncelo, a pedido dela, a suíte número seis de Bach. Dão-se as mãos. Ele pergunta-lhe se ela deseja um táxi. “Não, ficarei contigo”, disse a bela morte encarnada, oferecendo-lhe a boca.  “Entraram no quarto, despiram-se e o que estava escrito que aconteceria, aconteceu enfim, e outra vez, e outra ainda. (...) No dia seguinte ninguém morreu”.

A QUESTÃO DA IDENTIDADE NACIONAL NO BRASIL


Por Anderson Cássio de Oliveira Lopes
(Publicado originalmente em 25/02/2013)

As reflexões a seguir foram provocadas por este poema:


Brasil mostra tua cada (autor: Ney Matogrosso)


Eu estava esparramado na rede
Jeca urbanóide de papo pro ar
Me bateu a pergunta meio à esmo:
Na verdade, o Brasil o que será?


O Brasil é o homem que tem sede
Ou o que vive na seca do sertão?
Ou será que o Brasil dos dois é o mesmo
O que vai, é o que vem na contra mão?
O Brasil é o caboclo sem dinheiro
Procurando o doutor n’algum lugar
Ou será o professor Darcy Ribeiro
Que fugiu do hospital pra se tratar?

A gente é torto igual a Garrincha e
Aleijadinho
Ninguém precisa consertar
Se não der certo a gente se vira sozinho
Decerto então nada vai dar
O Brasil é o que tem talher de prata
Ou aquele que só come com a mão?
Ou será que o Brasil é o que não come
O Brasil gordo na contradição?
O Brasil que bate tambor de lata
Ou que bate carteira na estação?
O Brasil é o lixo que consome
Ou tem nele maná da criação?
Brasil Mauro Silva, Dunga e Zinho
Que é o Brasil zero a zero e campeão
Ou o Brasil que parou no caminho:
Zico, Sócrates, Júnior e Falcão?
O Brasil é uma foto do Betinho
Ou um vídeo da Favela Naval?
São os Trens da Alegria de Brasília?
Ou os trens do Subúrbio da Central?
Brasil Globo de Roberto Marinho?
Brasil bairro, Carlinhos Candeal?
Quem vê, do Vidigal, o mar e as ilhas
Ou quem das ilhas vê o Vidigal?
O Brasil alagado, palafita?
Seco açude sangrado, chapadão?
Ou será que é uma Avenida Paulista?
Qual a cara da cara da nação?


A questão da “identidade nacional brasileira”, tão recorrente nas discussões da intelectualidade do país desde que este declarou-se independente de Portugal, é o motivo condutor desse poema de Ney Matogrosso.
O “eu” lírico apresenta-se como “Jeca Urbanóide” que, do alto de sua ociosidade improfícua, questiona acerca da “identidade” do brasileiro; questionar por questionar, como quem procura matar a preguiça provocada pela desocupação, a mandriice de quem pode dar-se ao luxo de ficar “de papo pro ar”, “esparramado” numa rede; ou questiona porque, após a Independência, nunca envelheceu no Brasil a voga da busca pela “identidade nacional”, uma das marcas de atitude típicas de país colonizado que ainda não encontrara seu “autêntico” lugar no mundo.
Seja qual for o móvel do questionamento, o “eu” poético restringe-se às interrogações, sem chegar a uma solução para o problema, exceto no que diz respeito ao fato de, segundo o “eu” lírico, o brasileiro ser um torto que não precisa de endireitamento, a exemplo de Garrincha e Aleijadinho. No mais, a dúvida do poeta quanto à identidade nacional oscila entre as pessoas e situações de maior contraste – econômico, político, social, de talento ou de atitude – sem vislumbrar um meio tom a que pudesse atribuir, finalmente, a tão almejada “identidade cultural brasileira”. Ou talvez a tenha encontrado na impossibilidade mesma de conciliar (extraindo um meio termo) contrastes e contradições tão irreconciliáveis como são aqueles apontados no decurso dos versos, a exemplo da maravilhosa Seleção Brasileira de Futebol que fracassara em 1982 (“Zico, Sócrates, Júnior e Falcão?”), em confronto com a horrível, porém vitoriosa Seleção de 1994 (“Brasil Mauro Silva, Dunga e Zinho”).
Ao ver-se na impossibilidade de decidir, aí mesmo está a decisão sobre a nossa identidade: o Brasil é um país de contrastes e o brasileiro é o produto dessas contradições aparentemente insanáveis. É assim que, indiretamente e por vias tortas, emerge do texto uma possível resposta à conclamação feita no título do poema, resultando, para o Brasil, uma cara contraditória, vincada pelas rugas da miséria, do crime e da violência, mas maquiladas pelos batons das ilhas de opulência e o ruges dos talentos isolados e fracassados.
Em todo caso, não parece encerrar aqui a incansável busca pelo “ser brasileiro” (até porque não são poucos os países ou povos do mundo que ostentam contrastes e contradições semelhantes aos nossos), ao menos não no horizonte das próximas décadas, ou enquanto houver intelectuais “de papo pro ar”, dispostos a empreendê-la, alimentá-la ou forjá-la, num processo que denuncia inquietação para com o fato da colonização e, mais que isso, denuncia aquilo que Nelson Rodrigues tão bem definiu como o “complexo de vira-latas”.
Só quando atingir certa maturidade enquanto nação, cessará essa busca desenfreada pela “identidade”, cessando, conjuntamente, o complexo psicológico de povo colonizado.


LINGUAGEM E PODER EM "O DISCURSO DO REI"


Por Anderson Cássio de Oliveira Lopes
(Publicado originalmente em 16/04/2012)


A articulação feliz entre linguagem e poder, por um lado, e a exploração das emoções humanas irradiadas da luta pela exitosa superação de grandes desafios, tendo por cenário e pano de fundo momentos de primeira relevância na história universal da humanidade, fizeram de O Discurso do Rei um dos filmes de maior sucesso cinematográfico nos últimos tempos.

A relação entre linguagem e poder é bem conhecida e estudada há tempos, mas a película em discussão inverte os termos tradicionais da questão. Normalmente, admite-se que a linguagem seja fonte de poder ou, em termos mais precisos, que o poder, dentre outros fatores, emane do domínio da linguagem. Aqui, poder não é apenas a possibilidade de fazer algo, mas também, e especificamente, a possibilidade de comandar pessoas, tomar decisões que atinjam suas vidas, tê-las, enfim, sujeitas a essas decisões. Já a linguagem, por sua vez, cá não está tomada como um simples mecanismo de comunicação, senão como instrumento crucial ao estabelecimento dos vínculos de poder, notadamente em sociedades civilizadas em que este advém menos da força bruta que da habilidade política e relacional.

A inversão existente no filme reside no fato de que, tendo o rei George VI os poderes institucionais inerentes ao título de rei e sendo reconhecido como chefe de estado (embora não de governo) não só do Reino Unido, mas também de outros tantos estados independentes ao redor do mundo (inclusive Austrália, Canadá e Nova Zelândia), viu-se tal rei quase que impossibilitado de exercer suas atribuições de chefe de estado, pois era tartamudo desde aproximadamente os quatro anos de idade. Com efeito, sempre que houvera necessidade de falar em público (e algumas vezes mesmo em privado), George VI, numa gaguez contumaz, nada pronunciava, frustrando a expectativa dos milhares de ouvintes que aguardavam suas palavras, em especial, a da esposa e das filhas, amorosas todas elas, as quais muito torciam para que o pai e marido se desincumbisse a contento da obrigação de realizar pronunciamentos ao povo inglês. Observa-se no filme que, sem voz, o poder institucional como que se anula; sem uma linguagem hábil que corporifique e ratifique o poder, este tende a desaparecer ou a tornar-se ineficaz. George VI, também neste ponto, é o antípoda de Hitler, seu maior adversário histórico, uma vez que o Führer chegou ao poder graças, sobretudo, à eloquência de sua linguagem inflamada de nacionalismo, eufórica em seus discursos entusiásticos prenhe de promessas grandiosas para o povo alemão – e catastróficas para o restante da humanidade. George VI, sucedendo ao irmão mais velho – que abdicara em face da pressão da puritana sociedade inglesa, escandalizada ante a manifestada pretensão de casar-se com uma mulher duas vezes divorciada e que levava vida dissoluta – chegou ao poder quase que sem necessidade de pronunciar palavras. Porém, a Segunda Guerra Mundial era já uma realidade que batia sombriamente à porta dos britânicos e, neste momento capital da história inglesa e humana, deveria dirigir-se a seu povo, conclamá-lo para a guerra inevitável, mostrar-se como um guia resoluto no qual cada cidadão poderia depositar sua confiança. Linguagem e poder, neste instante, deveriam casar-se, e a ausência de uma seria a anulação do outro. Com a ajuda de um fonoaudiólogo (e posteriormente seu grande amigo) chamado Lionel Logue, terapeuta heterodoxo mas competente, conquanto sem diplomação acadêmica legal, George VI, naquele instante supremo em que era imperioso atingir pela palavra o coração dos ingleses, superou todas as antigas e persistentes dificuldades de fala intrínsecas aos tartamudos, falou com desenvoltura razoável e solene e, com isso, não só encorajou os súditos para a luta feroz que se lhes apresentava, como ainda assumiu com autêntico valimento os poderes do rei, os quais ele possuía de direito, mas só passou a possuí-los genuinamente quando os amalgamou à linguagem correspondente. O Discurso do Rei passa a impressão de que, se não se revelasse capaz de pronunciar aquele discurso (linguagem) tão reclamado pela premência da guerra, a condição real de George VI (poder) seria posta em cheque, provavelmente a culminar numa destituição ou abdicação, o que contribui para que o telespectador – tal como o cidadão inglês à época – passe, mesmo sem dar pela coisa, a torcer pela superação pessoal de George VI e, por isso mesmo, a vibrar, emocionado, quando ele vence com denodo e pertinácia tão angustiante desafio.

Assim, vê-se a existência de uma complementaridade inelutável entre linguagem e poder no mundo civilizado, de modo que o poder materializa-se na linguagem, e esta, por sua vez, impõe-se como esteio necessário daquele, seja como elemento de sua constituição, seja como mecanismo de sua legitimação e efetividade.


A LÍNGUA PORTUGUESA DISCUTIDA NOS JORNAIS

Por Anderson Cássio de Oliveira Lopes
(Publicado originalmente em 16/04/2012)


O amigo Arthur Lacerda remeteu-me pelo correio eletrônico o seguinte artigo, da autoria de Roberto Macedo, publicado na versão digital do jornal Estadão. Ei-lo:

'Bullying' é bulir com a língua portuguesa

02 de junho de 2011 | 3h 20
Roberto Macedo
Na língua inglesa, bullying é o comportamento pelo qual uma pessoa amedronta outra, ou lhe causa dor, ferimento, constrangimento, ou outros sofrimentos, até no plano emocional.
Há tempos noto o crescente uso do termo no Brasil, em particular para descrever ocorrências nas escolas. Ele ganhou maior notoriedade depois que no Rio de Janeiro, no dia 7 de abril, houve o assassinato de 12 crianças na Escola Municipal Tasso da Silveira. O criminoso, Wellington Menezes de Oliveira, teria sofrido o bullying quando aluno da mesma escola. Pela internet soube que, manco, era chamado de suingue pelos colegas.
Da minha janela vejo periquitos a bicar e ameaçar seus colegas e outras aves. Trata-se de comportamento típico de animais, herdado por seres humanos. E, nessa condição, também sob versões além da física, como agressões verbais, apelidos constrangedores, intrigas e fofocas. Já existe também o cyberbullying, via internet, celulares e outras tecnologias digitais.
Portanto, o bullying não é novidade histórica e alcança todo o espaço onde está o ser humano. Assim, seria surpreendente se a língua portuguesa não tivesse palavras próprias para descrevê-lo. E as tem. Surpreendentemente mesmo é o desconhecimento delas, conforme revelado pelo amplo uso de bullying. Pelo que vi na internet, outras pessoas também perceberam esse desconhecimento.
Pensando no referido comportamento, recordei-me de palavras que, quando criança, ouvia para descrevê-lo. Por exemplo, em casa, na escola e na rua alguém dizia "fulano buliu comigo". Aí está o bullying, e nessa e noutras formas em dicionários da nossa língua.
O meu (Houaiss) apresenta como significados de bulir: mexer com, tocar, causar incômodo ou apoquentar, produzir apreensão em, fazer caçoada, zombar e falar sobre, entre outros. E não consta como regionalismo. Neste caso, no Nordeste tem também o significado de tirar a virgindade. Acrescente-se que nas duas línguas as palavras começam da mesma forma, mas ignoro se têm etimologia comum.
O mesmo dicionário tem também bulimento, o ato ou efeito de bulir, e bulidor, aquele que o pratica. Ou seja, temos palavras para designar tanto o sujeito (bully), como o verbo (to bully) e o ato decorrente (bullying). Acrescente-se que no desnecessário uso deste último anglicismo se fica só na referência ao ato, dificultando ou desnecessariamente estendendo textos, o que é feito não apenas corriqueiramente pela imprensa, mas também por gente importante.
Por exemplo, o filósofo e educador Gabriel Chalita, hoje deputado federal, quando vereador da capital paulista apresentou projeto de lei que "dispõe sobre ... medidas de conscientização, prevenção e combate ao bullying... (nas)... escolas públicas do Município...". No trecho que trata dos objetivos, o projeto inclui o de "orientar os agressores, por meio da pesquisa dos fatores desencadeantes de seu comportamento". Por que não usar bulimento e bulidores? Quanto à conscientização destes, é indispensável, pois muitos não percebem o mal que praticam.
A propósito, em site do governo dos EUA (www.stopbullying.gov), voltado para combate ao bulimento, uma das orientações consiste em levar bulidores efetivos ou potenciais a fazer a si mesmos esta pergunta: "Se alguém lhe fizesse a mesma coisa, você se sentiria incomodado?" O termo bulidor também se revela conveniente ao dispensar referência prévia a bullying, ou mesmo a bulimento.
O mesmo anglicismo também está onipresente em cartilha sobre o assunto lançada pelo Conselho Nacional de Justiça, com o título Bullying: Cartilha 2010 - Justiça nas Escolas, escrita pela psiquiatra Ana Beatriz Barbosa Silva. Aí bulidores são novamente chamados de agressores e, também, de opressores. Soube ainda que o ministro Marco Aurélio de Mello, do Supremo Tribunal Federal, escreveu um artigo intitulado Bullying - aspectos jurídicos.
Como se percebe desses exemplos e do noticiário em geral, há muita gente bulindo com o idioma português. Se este falasse certamente reclamaria do bulimento a que é submetido.
O deputado federal Aldo Rebelo, que pontificava como grande defensor da língua pátria - esse era o nome que tinha quando comecei a estudar -, esteve nos últimos meses muito ocupado como relator do Código Florestal, na Câmara. Gostaria de vê-lo de novo na ativa a defender o português no meio ambiente onde sofre a poluição de outras línguas.
E não só quanto ao assunto desse artigo, mas também para protestar contra algo mais grave, pois reconheço que bulir e seus derivativos não são muito conhecidos e, por isso mesmo, precisam ser difundidos. Trata-se da proliferação de anglicismos claramente desnecessários, como delivery, sale, off e muitos outros estrangeirismos.
Particularmente estranháveis são os nomes dados a edifícios nos anúncios de lançamentos de imóveis. Ainda no último fim de semana havia neste jornal nomes como Still, Grand Terrace e - inacreditável! - Tasty Panamby. Se traduzido das duas línguas de onde vem, o inglês e o tupi-guarani, este último significaria Borboleta Gostosa.
Já escrevi aqui sobre o mesmo assunto (Prédios com nomes de outro mundo, 6/5/2010) e, apesar do meu apelo, ninguém me explicou convincentemente os fundamentos desse fenômeno. Enquanto isso não vem, fico com as minhas versões. É gente que não dá valor à nossa língua. Ou talvez pense que morando em prédios assim denominados estaria a viver em outro país. Os nomes também podem ser cacoetes de arquitetos e marqueteiros, mas não inconsequentes no seu bulimento com a língua portuguesa.
Bilac, que a chamou de "última flor do Lácio", certamente lamentaria vê-la reproduzida com esses e muitos mais espinhos de outras espécies.
ECONOMISTA (UFMG, USP E HARVARD), PROFESSOR ASSOCIADO À FAAP, É CONSULTOR ECONÔMICO E DE ENSINO SUPERIOR”.

Em resposta, enviei ao Arthur este comentário:

Agradeço-te uma vez mais a atenção manifestada com a remessa desse texto.
Seria maravilhoso se a defesa da nossa querida língua portuguesa fosse feita por pessoas mais capacitadas para tanto. Um economista, ainda quando seja arrebatado amante da "última flor do Lácio", não toma a análise profunda da língua como centro de suas preocupações, razão por que a defesa que elabora não é isenta de contradições e equívocos. Por mais que as faculdades de Letras hajam-se tornado “usinas de diplomar analfabetos funcionais”, como diz, não sem alguma razão, um ilustre professor de Goiás, sempre há, aqui e além, um ou outro acadêmico autenticamente preocupado com a disseminação das boas soluções linguísticas do nosso idioma, tendo, outrossim, conhecimento de causa para formular uma defesa competente. No Brasil, vem faltando aos bons gramáticos espaço na grande mídia. Se bem que bons gramáticos, como Napoleão Mendes de Almeida ou Luiz Antônio Sacconi, estão a desaparecer por completo...
Examinemos algumas das anteditas contradições e equívocos: no artigo que tu me mandaste, Roberto Macedo, economista em questão, insurge-se contra o emprego de estrangeirismos desnecessários, mas o faz escrevendo, ele mesmo, vê só, anglicismos tão exoneráveis quanto os que pretende combater! Exemplo: “A propósito, em site do governo dos EUA (www.stopbullying.gov), voltado para combate ao bulimento, uma das...”. A palavra “site” é um anglicismo perfeitamente dispensável, pois o português possui, dentre tantos, o termo “sítio”, ajustadíssimo a substituí-la. Qualquer usuário da língua portuguesa medianamente instruído compreende que um sítio na grande rede é o mesmo que um “site da internet”. Considero, entretanto, admissível a fórmula “sítio na Internet”. Os portugueses, de uma maneira geral, preferem sítio a site, rato a mouse, e assim harmonizam, na medida do possível, os termos correntes na seara da informática com as palavras próprias da língua portuguesa.
Outro anglicismo prescindível é a ausência de margem especial para iniciar os parágrafos, típica da tradição inglesa e agora da grande rede, esta influenciada por aquela. Nada justifica, porém, esta adesão do economista, que escreve com margens inglesas.
Note-se, por outro lado, que Macedo emprega palavras estrangeiras sem o destaque de rigor nestes casos, de preferência o itálico ou o negrito. Além disso, ele abusa do verbo “ter” em várias passagens, como na seguinte: “Assim, seria surpreendente se a língua portuguesa não tivesse palavras próprias para descrevê-lo. E as tem”. Isso fez lembrar-me da crítica que Mendes de Almeida fizera ao conhecido verso de Drummond “tem uma pedra no meio do caminho”. No bom português, é necessário cuidar para que o verbo “ter” não usurpe as funções dos verbos “haver”, “possuir”, “deter”, nem os faça desaparecer...
Vejamos outra passagem do texto: “O meu (Houaiss) apresenta como significados de bulir: mexer com, tocar, causar incômodo ou apoquentar, produzir apreensão em, fazer caçoada, zombar e falar sobre, entre outros”. Não há explicação para o nome Houaiss vir entre parênteses. Mais uma: “Por exemplo, em casa, na escola e na rua alguém dizia ‘fulano buliu comigo’”. Depois da forma “dizia”, a pontuação de rigor exigiria “:”.
Que tais comentários não te induzam a crer que eu não veja com olhos benevolentes toda manifestação em defesa da língua, pois de fato assim as vejo. Quero, isto sim, apenas deixar patente que esta defesa deve ser cometida com competência e cuidado, sem contradições nem equívocos.
Um abraço.