domingo, 7 de maio de 2017

COMENTÁRIO RÁPIDO SOBRE O ROMANCE "AS INTERMITÊNCIAS DA MORTE", DE JOSÉ SARAMAGO


Por Anderson Cássio de Oliveira Lopes
(Publicado originalmente em 25/02/2013)

A querela do escritor José Saramago contra a Igreja Católica evidencia-se já no capítulo I

No primeiro capítulo de As Intermitências da Morte, o escritor português José Saramago perpetra, não sem uma boa porção de humor, explícita crítica à Igreja Católica. Com efeito, o diálogo travado entre o primeiro-ministro e o cardeal católico é vazado com fina ironia, notadamente quando o cardeal declara que desde o princípio a igreja não tem feito outra coisa senão contradizer a realidade; que a sua especialidade é usar a fé como arma para neutralizar a natural curiosidade do ser humano; que sem morte não há ressurreição, sem a qual, por sua vez, não há necessidade de igreja... Decerto essa crítica seria muito mais verdadeira se voltada contra o comunismo/socialismo de que era adepto o mesmo Saramago, porém este era exímio em alfinetar e maldizer a religião e a crença alheia, embora perfeitamente rombo e lapuz no concernente à autocrítica das suas próprias crenças ideológicas...
De qualquer sorte, cumpre ressaltar a presença de uma espécie de fio cômico a perpassar a seriedade aparente deste diálogo entre a autoridade política e a religiosa, de modo a infundir no leitor a certeza da tartufice da igreja, que – na sua infatigável pugna por estabelecer-se e amealhar poder, dinheiro e prestígio – abusa da boa-fé do povo crédito, sem hesitar em distorcer a realidade e a verdade dos fatos, desde que com isso alcance os seus desideratos seculares. Na teia prosística de Saramago, vislumbra-se que nem os graduados representantes a própria Igreja Católica creem deveras em seus dogmas, mas impõe-nos à população em geral, incapaz de, em seu próprio ser, encontrar o conforto psicológico de que necessita. Resta evidente, no diálogo destacado, que a igreja é muito deste mundo, é um fim em si mesma, e não um meio para se chegar a algo maior em outra dimensão. O próprio Deus não é o fim último a que se busca, mas apenas instrumento para a consecução dos objetivos terrenos dos dirigentes eclesiásticos. O medo da morte e a angústia do fim, inerentes em maior ou menor grau a todo ser humano, manipulados com extraordinária mestria pelos religiosos, completam o arsenal abstrato e ideológico com o qual a igreja logra sustentar o seu poder e autoridade. Por fim, conquanto a crítica e o azedume de José Saramago dirijam-se diretamente à Igreja Católica, estendem-se facilmente a todas as agremiações religiosas com penetração e influência transnacionais.

Como a morte é tratada nesta obra de Saramago

No tratamento da morte, Saramago serve-se de diversos recursos de estilo, o principal dos quais sendo a prosopopeia, figura de pensamento que consiste em personificar, atribuir vida aos seres inanimados, fictícios, abstratos, ausentes ou mortos. Essa personificação da morte lobriga-se logo no início do romance, quando se diz metaforicamente, a propósito do fato de não haver registro de óbito no dia primeiro de janeiro, que “já começava a ser chamado por alguns graciosos, desses que nada respeitam, a greve da morte” (grifei). Todavia, a personificação consubstancia-se em definitivo somente quando o diretor-geral da emissora de televisão nacional recebe uma carta violeta assinada pela morte, na qual carta se anuncia “o imediato retorno à normalidade”, ou seja, as pessoas voltarão “a morrer tal como antes sucedia, sem protestos notórios, desde o princípio dos tempos até ao dia trinta e um de dezembro do ano passado”. Abramos um parêntese para referirmos que a cor da carta não é sem propósito, já que o violeta, com sua vasta simbologia, significa também a passagem outonal da vida para a morte. Ainda na mesma missiva violeta ao diretor-geral, a morte faz saber que alterará a sua estratégia, dando um aviso prévio de uma semana a toda a gente “para pôr em ordem o que ainda lhe resta de vida, fazer testamento e dizer adeus à família”. A partir dessa carta ao diretor-geral, a personificação da morte ganha novos contornos – em especial quando retorna três vezes a carta-aviso remetida a um misterioso violoncelista, fato inusitado para a morte, que, intrigada, resolve entregar pessoalmente a missiva – culminando na sua encarnação numa jovem e bela mulher de 36 anos, que se veste como se realmente fosse mulher, hospeda-se num hotel próximo à residência do violoncelista, compra um camarote para assistir ao concerto em que tomará parte o dito violoncelista, enfim, a bela e jovem morte faz por acercar-se dele, que possui 49 anos e vive sozinho com seu cachorro. Enceta-se, por assim dizer, uma espécie de romance macabro e sensual do músico com a morte encarnada, ao qual romance não faltaram nem sequer os vaivéns e desencontros dos namoros comuns. O clímax ocorre quando a morte toca a campainha da casa do violoncelista, supostamente decidida a entregar-lhe a carta fatal. Ele atende, trocam os “boas noites”; ele a convida para entrar, conversam, ele executa ao violoncelo, a pedido dela, a suíte número seis de Bach. Dão-se as mãos. Ele pergunta-lhe se ela deseja um táxi. “Não, ficarei contigo”, disse a bela morte encarnada, oferecendo-lhe a boca.  “Entraram no quarto, despiram-se e o que estava escrito que aconteceria, aconteceu enfim, e outra vez, e outra ainda. (...) No dia seguinte ninguém morreu”.

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