Por Anderson Cássio de Oliveira Lopes
(Publicado originalmente em 25/02/2013)
A querela do escritor José Saramago contra
a Igreja Católica evidencia-se já no capítulo I
No
primeiro capítulo de As Intermitências da
Morte, o escritor português José Saramago perpetra, não sem uma boa porção
de humor, explícita crítica à Igreja Católica. Com efeito, o diálogo travado
entre o primeiro-ministro e o cardeal católico é vazado com fina ironia,
notadamente quando o cardeal declara que desde o princípio a igreja não tem
feito outra coisa senão contradizer a realidade; que a sua especialidade é usar
a fé como arma para neutralizar a natural curiosidade do ser humano; que sem
morte não há ressurreição, sem a qual, por sua vez, não há necessidade de
igreja... Decerto essa crítica seria muito mais verdadeira se voltada contra o
comunismo/socialismo de que era adepto o mesmo Saramago, porém este era exímio
em alfinetar e maldizer a religião e a
crença alheia, embora perfeitamente rombo e lapuz no
concernente à autocrítica das suas próprias crenças ideológicas...
De
qualquer sorte, cumpre ressaltar a presença de uma espécie de fio cômico a
perpassar a seriedade aparente deste diálogo entre a autoridade política e a
religiosa, de modo a infundir no leitor a certeza da tartufice da igreja, que –
na sua infatigável pugna por estabelecer-se e amealhar poder, dinheiro e
prestígio – abusa da boa-fé do povo crédito, sem hesitar em distorcer a
realidade e a verdade dos fatos, desde que com isso alcance os seus desideratos
seculares. Na teia prosística de Saramago, vislumbra-se que nem os graduados
representantes a própria Igreja Católica creem deveras em seus dogmas, mas
impõe-nos à população em geral, incapaz de, em seu próprio ser, encontrar o
conforto psicológico de que necessita. Resta evidente, no diálogo destacado,
que a igreja é muito deste mundo, é um fim em si mesma, e não um meio para se
chegar a algo maior em outra dimensão. O próprio Deus não é o fim último a que
se busca, mas apenas instrumento para a consecução dos objetivos terrenos dos
dirigentes eclesiásticos. O medo da morte e a angústia do fim, inerentes em
maior ou menor grau a todo ser humano, manipulados com extraordinária mestria
pelos religiosos, completam o arsenal abstrato e ideológico com o qual a igreja
logra sustentar o seu poder e autoridade. Por fim, conquanto a crítica e o
azedume de José Saramago dirijam-se diretamente à Igreja Católica, estendem-se
facilmente a todas as agremiações religiosas com penetração e influência
transnacionais.
Como a morte é tratada nesta obra de
Saramago
No
tratamento da morte, Saramago serve-se de diversos recursos de estilo, o
principal dos quais sendo a prosopopeia, figura de pensamento que consiste em
personificar, atribuir vida aos seres inanimados, fictícios, abstratos,
ausentes ou mortos. Essa personificação da morte lobriga-se logo no início do
romance, quando se diz metaforicamente, a propósito do fato de não haver
registro de óbito no dia primeiro de janeiro, que “já começava a ser chamado
por alguns graciosos, desses que nada respeitam, a greve da morte” (grifei). Todavia, a personificação
consubstancia-se em definitivo somente quando o diretor-geral da emissora de televisão
nacional recebe uma carta violeta assinada pela morte, na qual carta se anuncia
“o imediato retorno à normalidade”, ou seja, as pessoas voltarão “a morrer tal
como antes sucedia, sem protestos notórios, desde o princípio dos tempos até ao
dia trinta e um de dezembro do ano passado”. Abramos um parêntese para referirmos que a cor da
carta não é sem propósito, já que o violeta, com sua vasta simbologia,
significa também a passagem outonal da vida para a morte. Ainda na mesma
missiva violeta ao diretor-geral, a morte faz saber que alterará a sua
estratégia, dando um aviso prévio de uma semana a toda a gente “para pôr em
ordem o que ainda lhe resta de vida, fazer testamento e dizer adeus à família”.
A partir dessa carta ao diretor-geral, a personificação da morte ganha novos
contornos – em especial quando retorna três vezes a carta-aviso remetida a um
misterioso violoncelista, fato inusitado para a morte, que, intrigada, resolve
entregar pessoalmente a missiva – culminando na sua encarnação numa jovem e
bela mulher de 36 anos, que se veste como se realmente fosse mulher, hospeda-se
num hotel próximo à residência do violoncelista, compra um camarote para
assistir ao concerto em que tomará parte o dito violoncelista, enfim, a bela e
jovem morte faz por acercar-se dele, que possui 49 anos e vive sozinho com seu
cachorro. Enceta-se, por assim dizer, uma espécie de romance macabro e sensual
do músico com a morte encarnada, ao qual romance não faltaram nem sequer os vaivéns
e desencontros dos namoros comuns. O clímax ocorre quando a morte toca a campainha
da casa do violoncelista, supostamente decidida a entregar-lhe a carta fatal.
Ele atende, trocam os “boas noites”; ele a convida para entrar,
conversam, ele executa ao violoncelo, a pedido dela, a suíte número seis de
Bach. Dão-se as mãos. Ele pergunta-lhe se ela deseja um táxi. “Não, ficarei
contigo”, disse a bela morte encarnada, oferecendo-lhe a boca. “Entraram no quarto, despiram-se e o que
estava escrito que aconteceria, aconteceu enfim, e outra vez, e outra ainda.
(...) No dia seguinte ninguém morreu”.
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