domingo, 7 de maio de 2017

COMENTÁRIO LIGEIRO SOBRE O ROMANCE "VIDAS SECAS", DE GRACILIANO RAMOS


Por Anderson Cássio de Oliveira Lopes 
(Publicado originalmente em 25/02/2013)


Na obra Vidas Secas, a linguagem direta das personagens é caracterizada pela simplicidade – por vezes mesmo insuficiência – da expressão verbal. Com efeito, como os protagonistas da história são pessoas não alfabetizadas, e pretendendo dar-lhe maior realismo e verossimilhança, o autor pontua a narrativa com poucos diálogos, curtos, não raro apenas monossilábicos, salpicados de muxoxos e outras emissões sonoras não exatamente verbais, embora inteligíveis e capazes de estabelecer a comunicação – por vezes precária, sem dúvida, mas sempre é comunicação – entre os membros da família, e, eventualmente, entre estes e pessoas de fora do núcleo familiar, como o saldado amarelo, o fiscal de tributo e o proprietário da fazenda. Sinhá Vitória, repreendendo um dos filhos, diz: “Capeta excomungado!”; Fabiano, andando pelo alpendre, sozinho, diz: “Ecô! Ecô!”; os meninos, pressentindo a inevitabilidade do sacrifício da cadela Baleia, dizem: “vão bulir com a Baleia?”. Desta forma, observa-se que nos diálogos não há frases longas nem períodos compostos de orações subordinadas ou outras complexidades sintáticas, que, de resto, seriam incompatíveis com a ausência de formação acadêmica dos retirantes. Isso no discurso direto, pois, quanto ao indireto livre, predominante na narrativa, é por meio dele que vem à tona toda a angústia contraditória do monólogo interior de Fabiano, assim como as demais vocalizações necessárias à construção da obra. Neste caso, todavia, não se expressa, exatamente, a voz das personagens, mas a leitura destas feita pelo narrador, que diz o que elas diriam se pudessem ou soubessem fazê-lo.
Já a paisagem humana construída por meio da voz e das ações das personagens é, como não poderia deixar de ser, pautada pelas complexidades e contradições inerentes a qualquer sociedade humana, ainda que reduzida a poucos indivíduos isolados e macerados pela miséria e agrestia do ambiente em que vivem, como é o caso das personagens retratadas no romance comentado. Tome-se, por exemplo, o tocante capítulo da morte da cadela Baleia. Ela era estimada como se fosse pessoa da família (e o autor intensifica essa impressão conferindo-se nome próprio, coisa que deixou de fazer em relação aos filhos de Fabiano, mencionados apenas como filho Menor e filho Maior), mas foi assassinada pelo mesmo Fabiano. Claro que a cachorrinha estava doente e sofrendo, porém não costumamos sacrificar nossos parentes só porque adoecem ou sofrem. Por outro lado, o próprio Fabiano, alguns capítulos antes, dera evidente demonstração de nobreza de sentimentos (ou torpe pusilanimidade, a depender do ponto de vista), quando, tendo ao alcance de sua arma branca e sem possibilidade de defesa, o soldado amarelo que anteriormente lhe agredira e insultara de modo injusto, podendo, portanto, tirar desforra da violência sofrida, Fabiano, sofreando um impulso inicial, não apenas permite que o soldado amarelo vá embora incólume, como ainda lhe indica o melhor caminho a seguir.
Graciliano Ramos, na condição de intelectual socialista engajado, debruça-se sobre os graves problemas e contradições sociais do país – e do Nordeste em especial –, procurando ilustrar e denunciar, mediante o discurso e a ação das personagens, os conflitos e “injustiças” a seu ver presentes na sociedade. Na voz do fazendeiro, ele inscreve o estereotipado discurso do proprietário, identificado com o “capitalismo selvagem”, que “explora” acintosamente o empregado, defraudando-o em seus já parcos rendimentos; na de Fabiano, a fala da massa ignara, analfabeta, humilhada, sem acesso aos bens da cidadania, de todo desprotegida do Estado, que (ao invés de promover a “justiça social” e ser “benevolente”, como diz querer o discurso comunista) só se faz presente para cobrar tributos, como no episódio em que Fabiano tenta vender um leitão na vila. Na ação do fiscal de tributos, vê-se a sanha arrecadatória do Estado, ávido de tributar e sovina quando o assunto é beneficiar a coletividade.
No conjunto, o romance é uma grande denúncia da situação calamitosa em que sobrevivem, em estado de absoluta miséria, milhares de famílias habitantes na região do semi-árido nordestino, passando fome, sede e toda sorte de privações, abandonadas dos governos e maltratadas pela indiferença inclemente da natureza agreste.

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