domingo, 7 de maio de 2017

LINGUAGEM E PODER EM "O DISCURSO DO REI"


Por Anderson Cássio de Oliveira Lopes
(Publicado originalmente em 16/04/2012)


A articulação feliz entre linguagem e poder, por um lado, e a exploração das emoções humanas irradiadas da luta pela exitosa superação de grandes desafios, tendo por cenário e pano de fundo momentos de primeira relevância na história universal da humanidade, fizeram de O Discurso do Rei um dos filmes de maior sucesso cinematográfico nos últimos tempos.

A relação entre linguagem e poder é bem conhecida e estudada há tempos, mas a película em discussão inverte os termos tradicionais da questão. Normalmente, admite-se que a linguagem seja fonte de poder ou, em termos mais precisos, que o poder, dentre outros fatores, emane do domínio da linguagem. Aqui, poder não é apenas a possibilidade de fazer algo, mas também, e especificamente, a possibilidade de comandar pessoas, tomar decisões que atinjam suas vidas, tê-las, enfim, sujeitas a essas decisões. Já a linguagem, por sua vez, cá não está tomada como um simples mecanismo de comunicação, senão como instrumento crucial ao estabelecimento dos vínculos de poder, notadamente em sociedades civilizadas em que este advém menos da força bruta que da habilidade política e relacional.

A inversão existente no filme reside no fato de que, tendo o rei George VI os poderes institucionais inerentes ao título de rei e sendo reconhecido como chefe de estado (embora não de governo) não só do Reino Unido, mas também de outros tantos estados independentes ao redor do mundo (inclusive Austrália, Canadá e Nova Zelândia), viu-se tal rei quase que impossibilitado de exercer suas atribuições de chefe de estado, pois era tartamudo desde aproximadamente os quatro anos de idade. Com efeito, sempre que houvera necessidade de falar em público (e algumas vezes mesmo em privado), George VI, numa gaguez contumaz, nada pronunciava, frustrando a expectativa dos milhares de ouvintes que aguardavam suas palavras, em especial, a da esposa e das filhas, amorosas todas elas, as quais muito torciam para que o pai e marido se desincumbisse a contento da obrigação de realizar pronunciamentos ao povo inglês. Observa-se no filme que, sem voz, o poder institucional como que se anula; sem uma linguagem hábil que corporifique e ratifique o poder, este tende a desaparecer ou a tornar-se ineficaz. George VI, também neste ponto, é o antípoda de Hitler, seu maior adversário histórico, uma vez que o Führer chegou ao poder graças, sobretudo, à eloquência de sua linguagem inflamada de nacionalismo, eufórica em seus discursos entusiásticos prenhe de promessas grandiosas para o povo alemão – e catastróficas para o restante da humanidade. George VI, sucedendo ao irmão mais velho – que abdicara em face da pressão da puritana sociedade inglesa, escandalizada ante a manifestada pretensão de casar-se com uma mulher duas vezes divorciada e que levava vida dissoluta – chegou ao poder quase que sem necessidade de pronunciar palavras. Porém, a Segunda Guerra Mundial era já uma realidade que batia sombriamente à porta dos britânicos e, neste momento capital da história inglesa e humana, deveria dirigir-se a seu povo, conclamá-lo para a guerra inevitável, mostrar-se como um guia resoluto no qual cada cidadão poderia depositar sua confiança. Linguagem e poder, neste instante, deveriam casar-se, e a ausência de uma seria a anulação do outro. Com a ajuda de um fonoaudiólogo (e posteriormente seu grande amigo) chamado Lionel Logue, terapeuta heterodoxo mas competente, conquanto sem diplomação acadêmica legal, George VI, naquele instante supremo em que era imperioso atingir pela palavra o coração dos ingleses, superou todas as antigas e persistentes dificuldades de fala intrínsecas aos tartamudos, falou com desenvoltura razoável e solene e, com isso, não só encorajou os súditos para a luta feroz que se lhes apresentava, como ainda assumiu com autêntico valimento os poderes do rei, os quais ele possuía de direito, mas só passou a possuí-los genuinamente quando os amalgamou à linguagem correspondente. O Discurso do Rei passa a impressão de que, se não se revelasse capaz de pronunciar aquele discurso (linguagem) tão reclamado pela premência da guerra, a condição real de George VI (poder) seria posta em cheque, provavelmente a culminar numa destituição ou abdicação, o que contribui para que o telespectador – tal como o cidadão inglês à época – passe, mesmo sem dar pela coisa, a torcer pela superação pessoal de George VI e, por isso mesmo, a vibrar, emocionado, quando ele vence com denodo e pertinácia tão angustiante desafio.

Assim, vê-se a existência de uma complementaridade inelutável entre linguagem e poder no mundo civilizado, de modo que o poder materializa-se na linguagem, e esta, por sua vez, impõe-se como esteio necessário daquele, seja como elemento de sua constituição, seja como mecanismo de sua legitimação e efetividade.


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