Por Anderson Cássio de Oliveira Lopes
(Publicado originalmente em 16/04/2012)
A articulação feliz entre linguagem e poder, por um lado, e a exploração das emoções humanas irradiadas da luta pela exitosa superação de grandes desafios, tendo por cenário e pano de fundo momentos de primeira relevância na história universal da humanidade, fizeram de O Discurso do Rei um dos filmes de maior sucesso cinematográfico nos últimos tempos.
(Publicado originalmente em 16/04/2012)
A articulação feliz entre linguagem e poder, por um lado, e a exploração das emoções humanas irradiadas da luta pela exitosa superação de grandes desafios, tendo por cenário e pano de fundo momentos de primeira relevância na história universal da humanidade, fizeram de O Discurso do Rei um dos filmes de maior sucesso cinematográfico nos últimos tempos.
A
relação entre linguagem e poder é bem conhecida e estudada há tempos, mas a
película em discussão inverte os termos tradicionais da questão. Normalmente,
admite-se que a linguagem seja fonte de poder ou, em termos mais precisos, que
o poder, dentre outros fatores, emane do domínio da linguagem. Aqui, poder não
é apenas a possibilidade de fazer algo, mas também, e especificamente, a
possibilidade de comandar pessoas, tomar decisões que atinjam suas vidas,
tê-las, enfim, sujeitas a essas decisões. Já a linguagem, por sua vez, cá não está
tomada como um simples mecanismo de comunicação, senão como instrumento crucial
ao estabelecimento dos vínculos de poder, notadamente em sociedades civilizadas
em que este advém menos da força bruta que da habilidade política e relacional.
A
inversão existente no filme reside no fato de que, tendo o rei George VI os
poderes institucionais inerentes ao título de rei e sendo reconhecido como
chefe de estado (embora não de governo) não só do Reino Unido, mas também de
outros tantos estados independentes ao redor do mundo (inclusive Austrália, Canadá
e Nova Zelândia), viu-se tal rei quase que impossibilitado de exercer suas
atribuições de chefe de estado, pois era tartamudo desde aproximadamente os
quatro anos de idade. Com efeito, sempre que houvera necessidade de falar em
público (e algumas vezes mesmo em privado), George VI, numa gaguez contumaz,
nada pronunciava, frustrando a expectativa dos milhares de ouvintes que
aguardavam suas palavras, em especial, a da esposa e das filhas, amorosas todas
elas, as quais muito torciam para que o pai e marido se desincumbisse a
contento da obrigação de realizar pronunciamentos ao povo inglês. Observa-se no
filme que, sem voz, o poder institucional como que se anula; sem uma linguagem
hábil que corporifique e ratifique o poder, este tende a desaparecer ou a tornar-se
ineficaz. George VI, também neste ponto, é o antípoda de Hitler, seu maior
adversário histórico, uma vez que o Führer chegou ao poder graças, sobretudo, à
eloquência de sua linguagem inflamada de nacionalismo, eufórica em seus
discursos entusiásticos prenhe de promessas grandiosas para o povo alemão – e
catastróficas para o restante da humanidade. George VI, sucedendo ao irmão mais
velho – que abdicara em face da pressão da puritana sociedade inglesa,
escandalizada ante a manifestada pretensão de casar-se com uma mulher duas
vezes divorciada e que levava vida dissoluta – chegou ao poder quase que sem
necessidade de pronunciar palavras. Porém, a Segunda Guerra Mundial era já uma
realidade que batia sombriamente à porta dos britânicos e, neste momento
capital da história inglesa e humana, deveria dirigir-se a seu povo,
conclamá-lo para a guerra inevitável, mostrar-se como um guia resoluto no qual
cada cidadão poderia depositar sua confiança. Linguagem e poder, neste
instante, deveriam casar-se, e a ausência de uma seria a anulação do outro. Com
a ajuda de um fonoaudiólogo (e posteriormente seu grande amigo) chamado Lionel
Logue, terapeuta heterodoxo mas competente, conquanto sem diplomação acadêmica
legal, George VI, naquele instante supremo em que era imperioso atingir pela
palavra o coração dos ingleses, superou todas as antigas e persistentes
dificuldades de fala intrínsecas aos tartamudos, falou com desenvoltura
razoável e solene e, com isso, não só encorajou os súditos para a luta feroz
que se lhes apresentava, como ainda assumiu com autêntico valimento os poderes
do rei, os quais ele possuía de direito, mas só passou a possuí-los
genuinamente quando os amalgamou à linguagem correspondente. O Discurso do Rei passa a impressão de
que, se não se revelasse capaz de pronunciar aquele discurso (linguagem) tão
reclamado pela premência da guerra, a condição real de George VI (poder) seria
posta em cheque, provavelmente a culminar numa destituição ou abdicação, o que
contribui para que o telespectador – tal como o cidadão inglês à época – passe,
mesmo sem dar pela coisa, a torcer pela superação pessoal de George VI e, por
isso mesmo, a vibrar, emocionado, quando ele vence com denodo e pertinácia tão
angustiante desafio.
Assim,
vê-se a existência de uma complementaridade inelutável entre linguagem e poder
no mundo civilizado, de modo que o poder materializa-se na linguagem, e esta,
por sua vez, impõe-se como esteio necessário daquele, seja como elemento de sua
constituição, seja como mecanismo de sua legitimação e efetividade.
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