Por Anderson Cássio de Oliveira Lopes
(Publicado originalmente em 25/02/2013)
As reflexões a seguir foram provocadas por este poema:
Brasil
mostra tua cada (autor: Ney
Matogrosso)
Eu estava esparramado na rede
Jeca urbanóide de papo pro ar
Me bateu a pergunta meio à esmo:
Na verdade, o Brasil o que será?
O Brasil é o homem que tem sede
Ou o que vive na seca do sertão?
Ou será que o Brasil dos dois é o mesmo
O que vai, é o que vem na contra mão?
O Brasil é o caboclo sem dinheiro
Procurando o doutor n’algum lugar
Ou será o professor Darcy Ribeiro
Que fugiu do hospital pra se tratar?
A gente é torto igual a Garrincha e
Aleijadinho
Ninguém precisa consertar
Se não der certo a gente se vira sozinho
Decerto então nada vai dar
O Brasil é o que tem talher de prata
Ou aquele que só come com a mão?
Ou será que o Brasil é o que não come
O Brasil gordo na contradição?
O Brasil que bate tambor de lata
Ou que bate carteira na estação?
O Brasil é o lixo que consome
Ou tem nele maná da criação?
Brasil Mauro Silva, Dunga e Zinho
Que é o Brasil zero a zero e campeão
Ou o Brasil que parou no caminho:
Zico, Sócrates, Júnior e Falcão?
O Brasil é uma foto do Betinho
Ou um vídeo da Favela Naval?
São os Trens da Alegria de Brasília?
Ou os trens do Subúrbio da Central?
Brasil Globo de Roberto Marinho?
Brasil bairro, Carlinhos Candeal?
Quem vê, do Vidigal, o mar e as ilhas
Ou quem das ilhas vê o Vidigal?
O Brasil alagado, palafita?
Seco açude sangrado, chapadão?
Ou será que é uma Avenida Paulista?
Qual a cara da cara da nação?
A
questão da “identidade nacional brasileira”, tão recorrente nas discussões da
intelectualidade do país desde que este declarou-se independente de Portugal, é
o motivo condutor desse poema de Ney Matogrosso.
O
“eu” lírico apresenta-se como “Jeca Urbanóide” que, do alto de sua ociosidade
improfícua, questiona acerca da “identidade” do brasileiro; questionar por
questionar, como quem procura matar a preguiça provocada pela desocupação, a
mandriice de quem pode dar-se ao luxo de ficar “de papo pro ar”, “esparramado”
numa rede; ou questiona porque, após a Independência, nunca envelheceu no
Brasil a voga da busca pela “identidade nacional”, uma das marcas de atitude
típicas de país colonizado que ainda não encontrara seu “autêntico” lugar no
mundo.
Seja
qual for o móvel do questionamento, o “eu” poético restringe-se às
interrogações, sem chegar a uma solução para o problema, exceto no que diz
respeito ao fato de, segundo o “eu” lírico, o brasileiro ser um torto que não
precisa de endireitamento, a exemplo de Garrincha e Aleijadinho. No mais, a
dúvida do poeta quanto à identidade nacional oscila entre as pessoas e
situações de maior contraste – econômico, político, social, de talento ou de
atitude – sem vislumbrar um meio tom a que pudesse atribuir, finalmente, a tão
almejada “identidade cultural brasileira”. Ou talvez a tenha encontrado na
impossibilidade mesma de conciliar (extraindo um meio termo) contrastes e
contradições tão irreconciliáveis como são aqueles apontados no decurso dos
versos, a exemplo da maravilhosa Seleção Brasileira de Futebol que fracassara
em 1982 (“Zico, Sócrates, Júnior e Falcão?”), em confronto com a horrível,
porém vitoriosa Seleção de 1994 (“Brasil Mauro Silva, Dunga e Zinho”).
Ao
ver-se na impossibilidade de decidir, aí mesmo está a decisão sobre a nossa
identidade: o Brasil é um país de contrastes e o brasileiro é o produto dessas
contradições aparentemente insanáveis. É assim que, indiretamente e por vias
tortas, emerge do texto uma possível resposta à conclamação feita no título do
poema, resultando, para o Brasil, uma cara contraditória, vincada pelas rugas
da miséria, do crime e da violência, mas maquiladas pelos batons das ilhas de
opulência e o ruges dos talentos isolados e fracassados.
Em
todo caso, não parece encerrar aqui a incansável busca pelo “ser brasileiro”
(até porque não são poucos os países ou povos do mundo que ostentam contrastes
e contradições semelhantes aos nossos), ao menos não no horizonte das próximas
décadas, ou enquanto houver intelectuais “de papo pro ar”, dispostos a
empreendê-la, alimentá-la ou forjá-la, num processo que denuncia inquietação
para com o fato da colonização e, mais que isso, denuncia aquilo que Nelson
Rodrigues tão bem definiu como o “complexo de vira-latas”.
Só
quando atingir certa maturidade enquanto nação, cessará essa busca desenfreada
pela “identidade”, cessando, conjuntamente, o complexo psicológico de povo
colonizado.
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